Crepúsculo e aurora

Sem desprimor, podias ter sido bem melhor, meu caro 2018. Os livros foram um tormento, minados por uma crise subterrânea e clandestina. O nosso Escrever é Triste está suspenso à espera de um boca a boca ressurreccional. E eu saio do Expresso, desse A Vida Dá o que o Cinema Tira, de que tanto gostava. Bem sei, bem sei, mea culpa
Só agora, já no fim, arrependido, tentaste redimir-te. Sem desprimor, não leves a mal, mas podia ter sido melhor, meu caro 2018. Só te perdoo por me teres aberto os olhos e me teres mostrado que ninguém é nada na vida se não tiver também uma Página Negra.

É tempo de despedida. Que venha 2019. E, afinal, reconheço-te, 2018, um mérito: puseste-me na mão um estandarte de paixão. Já não me lembrava de atacar com tanto optimismo um ano como agora parto para cima de 2019. Com uma alegria de Chalana, com a fé de uma Joana d’Arc. Parto para outra aventura de escrita. E a minha Guerra e Paz avança para uma parceria que não se envergonha da sua ambição. Já digo, logo digo. Agora é tempo de celebrar o adeus e o novo dia. Crepúsculo e aurora.

A mulher que ri

De há uns anos para cá, todos os anos são anos de despedida, de irremediável adeus. Este ano, disse adeus a Jorge Adib. Meu amigo brasileiro, alto quadro da Globo, um desses belos e ágeis dinossauros que fez a primordial televisão de antigamente. Gostava, pelo puro prazer de me agradar, de dizer bem dos programas que eu produzia e, agora, dos livros que eu editava. Nunca deixarei de o lembrar – a ele e a minha muito mais jovem amiga Marise Caetano – com ternura incondicional

W-LA

à Marise, ao Jorge

Terá sido por causa das ostras? E não juro, porque os camarões vermelhíssimos, espalhados sobre uma cama de gelo, iam, à velocidade da luz, dos olhos para o palato. O velho Westwood Marquis tinha então o melhor brunch de domingo de Los Angeles. Aos veludos, talvez roubados a bordéis de excelência do século XIX, juntava um pianista igualzinho ao grande Countie Basie. Um tipo nostálgico sentia-se ali em sua casa.

Nostálgico como eu, quem lá veio almoçar comigo foi Jorge Adib, director da TV Globo, quase um filho, diziam-me, do fundador, esse Roberto Marinho que, um dia, correu com a polícia da ditadura brasileira, que viera à redacção da Globo prender uns comunistas: “Fora daqui, quem trata dos meus comunistas sou eu!”

Jorge Adib, como Roberto Marinho, podia tolerar os seus comunistas e detestar ditaduras, mas gostava das mulheres. Tinha, diga-se, a suave arte de falar com as mulheres.

Mas deixo o Jorge sentado com a querida Marise Caetano, a brasileira mais escandinava que conheço, amante de neve e frio, e viajo aos meus vinte anos, à primeira vez que percebi o que era falar com as mulheres. A coisa passou-se no Hexágono, sofisticada pastelaria do Lobito.

Estava com um amigo tão taranta como eu e um ex-capitão do exército português que andara aos tiros na Guiné e trazia nos olhos azuis, e nos cabelos negros, que o 25 de Abril desgrenhara, uma tristeza dos diabos. Julgo que andaria a querer redimir em utopia o que já saboreara de medo, angústia e morte. Ao lado da nossa mesa revolucionária sentaram-se três vezes vinte anos de mulheres bonitas. Eu e o meu amigo crescemos em feromonas e olhares fulminantes. Elas viraram as costas. Havia uma, de olhos verdes, cabelo moreno onde se podia ficar preso a vida inteira. O nosso ex-capitão disse-lhe a mais banal das frases. Misturou um conselho – que o “molotof” era a sobremesa da casa – com um galanteio sincero sobre a cor esmeralda dos olhos dela. Um minuto, juntámos as mesas, e três jovens mulheres dedilhavam as suas harpas de sombras, contando-nos os sonhos de vida que tinham. Soube, pela boca de um capitão, depois de Abril, que se podia falar às mulheres. Se isto não é a revolução, o que será a revolução?

E volto à sala onde deixei o Jorge e a Marise. A nossa atenção concentra-se, agora, numa outra mulher, uma mulher só, nem feia, nem bonita, sentada duas mesas à frente da nossa. Foi o radar infalível da Marise que a detectou. Viu-a chegar e ir buscar duas, três ostras. Viu que as comia com vagar e sem preconceito. E viu-a voltar para mais três, talvez seis. A partir daí, a mulher só, de peito discreto, pernas altas a que uns saltos altos emprestavam autoridade, experimentou tudo: das blueberry pancakes aos cogumelos selvagens embrulhados em gruyère e fitas de bacon fumado a macieira, da salada de lagosta ao feijão preto com ranchero sauce e abacate ao lado.

Não havia, na mulher só, indícios de voracidade. Comia à imperceptível velocidade do movimento de rotação da terra. Imagino que os alimentos se integrassem, com a mesma harmonia que se diz das esferas, nos tímidos seios, nas rosáceas ancas, nas meias luas do competente rabo.

O Jorge levantou-se: “Manuelzinho, pô, vou falar com essa mulher”. Foi e disse-lhe: “Senhora, creia-me admirador eterno do prazer com que come. Serviu-se 25 vezes. Não veja na contabilidade outra coisa que não seja o meu mais sublime e deliciado espanto. Nunca um brunch me soube tão bem.” As gargalhadas da mulher foram a explosão de júbilo a coroar um repasto real. As ostras podem ser boas, mas a mulher que ri é muito melhor.

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O sexo de Schiele

Poucas maneiras de acabar o ano me parecem mais justas e mais belas do que visitar as mulheres de Egon Schiele. Pudesse eu, e estaria agora, a 31 de Dezembro deste ano de 2018, a rever em Viena o que de Egon Schiele pudesse devorar. Esta é a revisitação nostálgica de uma viagem de 2017, a convite da extinta revista Epicur.

Sciele saias

Entra-se em Egon Schiele pela mulher de saias levantadas. A saia pode ser verde ou vermelha, mesmo azul, mas a paisagem que revela tem sempre as quatro impronunciáveis letras dessa coisa que outro pintor disse ser a origem do mundo. O sexo feminino, essa palavra de quatro letras que é a mais proibida, a mais subversiva de todas as palavras, abre-se e murcha, oferece-se e nega-se, incha ou seca, em centenas de telas de Schiele. Arrisco: durante um terço da sua vida os olhos de Schiele estiveram especados, ou melhor, avidamente enfiados numa juvenil, madura ou decadente vulva.

Quero, em defesa do meu bom nome, dizer aos meus leitores que estou a falar de arte. Falhei a vernissage por ter perdido o avião e pude assim, no dia seguinte, olhar descansado e sem falsos pudores para a exposição de Egon Schiele que o Albertina, um dos mil museus de Viena de Áustria, ofereceu ao mundo.

É um museu ecléctico, o Albertina, em cada piso uma exposição. Quando eu lá fui, desta vez, de elevador, fui da sala “Monet a Picasso” para a mostra de Arte Contemporânea, que junta Anselm Kiefer, Andy Warhol e o rato Mickey de Gottfried Helnwei. Um lance de escadas levou-me de Egon Schiele à mostra “De Poussin a David” e um cinéfilo como eu, antes de chegar à cave, tinha de se embasbacar com a colecção de fotografias da Cinemateca de Viena.

Orgulhemo-nos patrioticamente. Há uma mão portuguesa a sustentar tanta arte. Emanuel Teles da Silva, descendente pela parte da mãe dos Condes de Tarouca, filho do Embaixador português, tornou-se cidadão austríaco e conselheiro de Carlos VI, tutelando com devoção a educação da infanta Maria Teresa. A infanta não foi, depois de ser coroada imperatriz, insensível a tão esmerados cuidados pedagógicos, correndo o rumor de ter gratificado o mestre com a regular contemplação da mesma frondosa paisagem que Schiele obsessivamente pintou, tarefa que o conde Silva-Tarouca terá executado com discrição e reserva antónimas da tortura, convulsão e rasgada exuberância do pintor. A exuberância que mais se reconhece ao conde português foi então a da conversão do edifício que é hoje o Albertina num palácio para sua residência.

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Schiele não pintou palácios, mas pintou paredes de casas pobres. O que me deliciou foi que as pintou com a mesma deformação, as mesmas cores, a mesma intensidade com que pintou o sexo das suas modelos. São paredes vivas e em drama, como as mulheres nuas que levantam as saias, às vezes muito, como Schiele faz questão de escrever nos títulos que deu a cada uma das suas obras. Levantam muito as saias e abrem desmesuradamente os olhos, com excepção da mulher que se masturba, um dedo tão mais tacteante quanto os olhos se cerram.

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Há outros nus no Albertina, mas nenhum se compara aos nus em ferida de Schiele. Basta subir ao piso de cima e ver os rabos femininos que os impressionistas pintaram entre ervas e árvores. Há neles um naturalismo sem metafísica, quase um retrato. No piso de baixo, Schiele deforma, aumenta, confronta-se, convulso, com a visceralidade da realidade.   Quando se trata da mulher nua, eu diria que é muito melhor estar um piso abaixo do que um piso acima.

Egon Schiele foi um pintor austríaco. A sua obra fez-se, no essencial, entre 1910 e 1918, ano em que a gripe espanhola o palmou da vida e o levou para o inferno que é a morte. Em menos de dez anos, olhos postos onde já disse, arrancou a ferros a imortalidade.

A vingança de Marilyn

 

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É mentira! E se me voltarem a perguntar, voltarei a dizer que é mentira. Marilyn, em The Misfits, não interpretou personagem nenhuma. Vingando-se de Arthur Miller, o marido com que estava a romper o seu terceiro casamento, foi só ela mesma, ela, a própria, ao longo desse filme maldito de tantas maldições confirmadas ao longo dos 58 anos que já passaram.

O genérico final do filme desmente-me: está lá escrito que a personagem de Marilyn se chama Roslyn Taber. Começamos por vê-la a tentar memorizar as falas que vai dizer ao juiz para se divorciar e não demoramos muito a saber que foi stripper, perdendo no bar duma cidade perdida o que os homens supõem que as mulheres perdem por eles ganharem, quando ganham, alguma coisa. Que se lixe o genérico, não há personagem nenhuma: The Misfits, como qualquer filme, mente com os dentes todos, e se os filmes têm dentes!

The Misfits é um filme de John Huston. Quem o escreveu – porque embora nestes tempos tão visuais custe reconhecê-lo, os filmes são escritos – foi Arthur Miller. Escritor, dramaturgo, se algum dia no século 30 alguém se lembrar dele há-de ser, se ainda houver raiva masculina, por ter sido marido de Marilyn. A mesma raiva que, agora, me faz ser injusto.

 

Miller era dono de uma mente literária e convencera-se que Marilyn nunca tivera um papel à sua medida. Via, como todos os literatos, mal cinema. Bem lhe podiam mostrar o Gentlemen Prefer Blondes do Hawks ou o Seven Year Itch do Billy Wilder que ele sempre os veria sem os ver.

O que ele via era a Marilyn que tinha à frente dos olhos. Via o ciclone emocional do casamento deles. Via, de Marilyn, a insatisfação voluptuosa, redonda e carnal, tão infantil às vezes, via a invulgar dualidade cartesiana que era a alma e o corpo dessa mulher.

Era isso que via, e foi o que Miller escreveu. Quando leu o script, Marilyn não gostou do espelho. Se calhar, adivinho eu, já se tinha visto assim e já se tinha visto melhor. E vingou-se.

A conselho de Truman Capote, Marilyn fora aluna de Constance Collier, actriz britânica e shakespeareana, e aprendeu com ela que não tinha teatro dentro de si. Katharine Hepburn, Bette Davis, até mesmo Lauren Bacall, tinham teatro, colocação, dicção. Ela não. O que tinha, e a professora Collier lhe mostrou, era fragilidade, a súbita luminosidade de um raio de sol, a beleza subtil de uma labareda no meio da noite. Coisas que não enchem um palco, mas fazem a felicidade da câmara de cinema. Como em The Misfits.  Filmada por Huston com um soft focus que a faz irreal, Marilyn paira no ar como pólen e a voz com que diz as falas é de uma ingenuidade de jardim-escola.

Passara tudo por Marilyn: abusos, violência, droga, humilhação. Mas nesse filme, em frente à câmara, Marilyn era só a imagem da inocência depois do pecado, a virgindade que, afinal, nunca se perde. E deixem-me dizer-vos: santo Deus, o que a inocência e a virgindade podem ser tristes.

 

A grande alegria do Natal é a sua tristeza

Este é um longo artigo. Publico-o com prazer e pena. O prazer que me deu o convite do meu editor do Expresso, Miguel Cadete, para o escrever. A pena de ser, simbólica e nataliciamente, a minha despedida do Expresso. Despedida que se cumpre, em definitivo, com a publicação da crónica que sai hoje, sábado, dia 29 de Dezembro de 2018. A última. Saio por decisão minha, e para uma aventura que anunciarei no começo de 2019. Quando, para a semana que vem, publicar aqui a última crónica, a que sai este sábado, direi o muito bem que do semanário que acolheu a coluna “O Cinema Dá o que a Vida Tira” e de Francisco Pinto Balsemão tenho e quero dizer.

San Luis
Meet Me in Saint Louis

A grande alegria do Natal é a sua tristeza

O primeiro perfume de Natal foi um perfume de estábulo. Se quisermos ser fiéis ao evangelho segundo Lucas, diremos que foi numa manjedoura que nasceu o Jesus Menino, por estar então Belém como a hotelaria de Lisboa no Verão, com uma ocupação de cem por cento, não havendo lugar para a grávida Maria e para o abnegado José, nem sequer em hospedarias bed and breakfast. Para infelicidade da parturiente não se tinha ainda inventado a modalidade airbnb.

Era de noite e, no divino estábulo a que o casal se abrigou, estariam recolhidos os rebanhos, que a imaginação popular transfigurou em burro e vaquinha, parelha ainda hoje presente em qualquer presépio que se preze. Dir-se-á que é um cenário estranho e humilíssimo para o nascimento de um ungido, de um príncipe messiânico, mas temos de convir que tudo nesta história roça uma hiperbólica estranheza.

A mãe do menino era Virgem e Virgem ficará, por séculos e séculos, tendo concebido por obra e graça de um espírito, naturalmente santo. Um anjo veio em sonhos sossegar a rude e básica relutância de José, pai putativo, eventual carpinteiro a quem tanta fantasia procriadora não deixou de fazer alguma espécie. Para efeitos de figuração, aquele penetrante espírito terá assumido a forma de uma imaculada pomba, de um fulgurante raio de luz ou, para consolo da teoria da suspeita freudiana, de um sopro ou subtil rabanada de vento – fascinantes hipóteses pelas quais só mesmo a minha especulativa mente escolástico-hollywoodiana digna interessar-se.

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Pesadelos de Tim Burton

O triunfo dos bichos

Ia falar dos Reis Magos, mas ponho rédea curta no meu digressivo nomadismo temático e centro-me no estábulo e no meu editor, Miguel Cadete. Pediu-me ele uma reflexão sobre os filmes de Natal. Fui ver a oferta dos cinemas e canais televisivos e a presença de animais ou monstros, de Grinches, Shreks, e Gremlins é ufana, pujante e significativa. Não vale a pena evocar a catwoman natalícia que, no “Batman Returns”, foi a Michelle Pfeiffer de outros tempos – estamos a falar de outra coisa. E nem sequer devemos compará-los a “The Nightmare Before Christmas”, de Tim Burton, todo chocalhado a ossos ou viscosa geleia de fantasmas, goblins, zombies, vampiros e lobisomens. Os filmes a que me refiro são de uma geração diferente: não há Menino Jesus de espécie alguma naqueles filmes tocados por uma distanciação do humano que esfrega ombros, para não dizer beiços, numa quase animalidade. Como diriam os virginais camaradas maoistas dos meus tempos revolucionários de Angola, esta natalícia escolha da bicheza, em última instância, não é inocente.

É assim nos filmes, mas é também assim na vida. Nem que o diga de cócoras, abraçado aos meus próprios joelhos e encostado a uma parede, mas tenho de o dizer desta forma brutal: os cães erradicaram o Menino Jesus do Natal. Há para aí dez anos, tive a alegria, primeira e última, de ler uma edição de domingo do Washington Post. Nesse ano, dizia o Post, os americanos espatifaram, e deixem-me escrever por extenso, cinquenta e quatro mil milhões de dólares. Gastaram-nos em anti-depressivos caninos, bem como em cirurgias ortopédicas e sessões de spa para cachorros (vamos ladrar-lhes, vamos ladrar-lhes, meu caro Centeno).

O cão de estimação arreganhou os dentes e arrebatou, no lar moderno, o lugar do filho. Alguém disse, depois de um pastrami, palitando os dentes e a sair do Katz’s Delicatessen, no Lower East Side: “… o filho, esse ersatz do animal de estimação.” Ainda tinha a dolorosa frase a cicatrizar em mim e eis que mordem ao Menino Jesus: mais de 56% dos cães eram, há dez anos, comprados no Natal. Compra ou prenda sopradas por um espírito santo de orelha, eis que o pet chega a casa e é deitado nas aveludadas palhinhas. À volta desse presépio, ajoelham-se o pai de estimação e a mãe de estimação. Está reconstruída a Sagrada Família e a televisão debita “Alvin e os Esquilos” ou “Angry Birds, o Filme”. Não se ouve, no pesadelo climatizado dos apartamentos, o grito da rua. Em pleno Times Square trocadilha e ecoa o grito de um obsoleto sem abrigo: “A nation under dog.”

Carol
Jim Carey é Scrooge

Quem inventou o filme de Natal?

Felizmente sei que o PAN, com o seu primígeno e requintado perfil filosófico, já percebeu que ironizo, nesta pobre escrita que, em verdade, em verdade vos digo, vai de rojo atrás da metáfora e da incipiente parábola. O que eu quero dizer não foi o que eu disse. Aqui está o que queria dizer: Charles Dickens inventou o filme de Natal! Ponho um ponto de exclamação nisto e já ouço o reparo mordaz: é falso, é falso, Charles Dickens morreu vinte e dois anos antes dos irmãos Lumière terem inventado o cinematógrafo!

Concordo, é verdade, não se desse o caso da verdade se deixar, por vezes, inundar por ondas de dúvida metafísicas. Charles Dickens, antes de morrer, deixou escrito o argumento do primeiro, do último e de todos os filmes de Natal. É um livrinho, umas 150 páginas singelas, chamado “A Christmas Carol”, que carrega o subtítulo “A Ghost Story of Christmas”, e de que é protagonista um riquíssimo Ebenezer Scrooge, que tem no coração um pólo norte e na mente o desprezo pelos pobres e pelo mundo. Digamos que esse livro é como uma mesa de cirurgia. Dickens amputa ao ventre natalício o fígado religioso, criando e dando autonomia ao espírito de Natal, que logo aterra noutro corpinho secular, moralizante, comovente, grávido de generosidade e melhores intenções – é o corpo dos nossos dias. Sai Jesus e entra a boa vontade.

Não foram só as adaptações literais, e contam-se já nove, a últimas das quais, assinada pela Disney, em 2009, com o desconexo Jim Carey, que tanto é o malvado e ganancioso Ebenezer Scrooge, como é cada um dos três fantasmas que o vêm atormentar e resgatar. A ideia e a alegoria de “A Christmas Carol” é uma mancha que alastra por dezenas de outros filmes e serviu até de base à transformação desse implacável Scrooge político, que era o florentino analista e maquiavélico conspirador Marcelo Rebelo de Sousa, no omnibondoso presidente que humanizou Portugal, amado até pelos comunistas e, porventura, pelas manas do Bloco.

Estou quase a conseguir dizer o que quero dizer. Há mais Menino Jesus no poema do vagamente pagão Alberto Caeiro, que vê o Jesus menino descer à Terra num meio-dia de fim de Primavera, do que em todos os filmes de Natal de Hollywood e dos outros estreitos arredores onde também se fazem filmes. Os grandes filmes de Natal são dickensianos e paz na terra aos homens de boa vontade. Começo a repetir-me: Jesus, menino ou moço, nem vê-lo.

Há quem, usando o chamado argumento hitleriano, diga que isso se deve ao facto de os judeus terem dominado Hollywood e, tolerantes de espírito, encantados pelas festas familiares cristãs, pelo saturnino calor com que as fogueiras e lareiras alegram as casas, quererem por simpatia celebrar a quadra e o cheirinho que da quadra estava no ar, trocando o odor do bíblico estábulo inicial pelo aroma de bolos e peru assado do século XX.

E é verdade que o tão judeu e ainda mais genial Irving Berlin escreveu as belas canções de Natal de “Holliday Inn”, dançadas pelas dúcteis pernas judias de Fred Astaire. Berlin, aliás, escreveu também a canção das canções, “White Christmas”, para o filme homónimo que o olho judio do severo Michael Curtiz realizou e o desajeitado judeu Danny Kaye interpretou. E para não falar apenas de clássicos da idade de ouro de Hollywood, “Elf”, talvez o filme natalício mais popular deste século (2003), tem realização de Jon Favreau e foi escrito por Daniel Berenbaum, ambos judeus.

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Jimmy Stewart, o suicida de It’s a Wonderful Life

 Paz na Terra e boa vontade

   Ora, nem tudo o que parece é – exactamente o que Galileu Galilei quis dizer quando se saiu com o célebre Eppur si muove, com que bem lixou para a posteridade o Papa e o Santo Ofício. Essa sanitária celebração da quadra natalícia desligada da Natividade não é um exclusivo de produtores e realizadores judeus, estando presente no mais esmagadoramente natalino dos filmes, “It’s a Wonderful Life”, obra a que o italiano Frank Capra, de catolicíssima e pecadora educação, deu sublime realização.

É certo que logo num dos primeiros planos do filme de Capra há uma conversa celestial entre dois asteróides. O argumento do filme classifica-os como dois anjos da mais elevada estirpe, mas eu sempre acharei, salvo desmentido pessoal e por escrito de Frank Capra, que são, um, o Senhor Deus nosso criador, e o outro, pelo buraco negro que nele se adivinha, o honesto e perplexo José, esposo de Maria. Estão ambos preocupados com as orações que lhes chegam. As orações são uma espécie de código morse que permite aos humanos mandar mensagens clandestinas para o céu, fazendo lobby anti-meritocrático na tentativa de alterar as leis naturais; as orações que os estelares ouvidos de Deus e São José escutam, no começo desse filme de Capra, são todas a rogar pelo inexcedível de virtuoso que é a personagem de Jimmy Stewart. Sequela avant la lettre do caso BPN ou BES – que sei eu! –, Jimmy Stewart está à beira da falência e vê recusado um empréstimo por um banqueiro scroogiano. (E não, malta de esquerda letrada, a expressão banqueiro scroogiano não é nenhuma tautologia!)

Seja como for, alheio a esta minha imprecação estilístico-ideológica, Jimmy Stewart decide suicidar-se e eis que cheguei onde queria chegar: há outros filmes de Frank Capra com o Natal a servir-lhes de paisagem de fundo, caso de “Meet John Doe”, sendo o suicídio, no caso o de Gary Cooper, o laço temático que o ata a “It’s a Wonderful Life”. Esse laço que os ata aos dois é um laço natalício e dickensiano.

Se chamo Dickens ao caso é porque, celebrando a quadra, foi ele que nos ensinou a desembocar, como o comovente “It’s a Wonderful Life” desemboca, na porta do happy-end decorada a azevinho e redentora boa vontade. Cumprida a regra dos três actos de toda a boa ficção, superados os obstáculos que constroem a trama, Dickens e os filmes que ele inspirou, judeus ou cristãos, abrem-se a um angelismo que predispõe ao humaníssimo abraço, a agradáveis expansões libatórias e a um cândido consumismo. Que o humano abraço esteja em vias de extinção, substituído pelo afago e enroscanço do animal de estimação é só uma contingente nota de rodapé.

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O Evangelho segundo Pasolini

Uma natividade de papelão

Estava a escrever tudo isto, ia agora, enfim, falar dos Reis Magos, e avassala-me um anseio de justiça. Do fundo de mim mesmo, há uma voz rebelde que clama: “Diz a verdade Manuel S. Fonseca.” E a verdade nua e crua é que a morte de Jesus é estarrecedoramente mais bela e mais cinematográfica do que o seu nascimento. Não é que o cinema não tenha tentado recriar o presépio, narrar a anunciação, a ida de Maria e José para Belém, o precário parto, a ameaça de Herodes, a luz da singela estrela que guia reis e pastores, os bem-aventurados de espírito. Do “King of the Kings”, de Cecil B. DeMille a “The Greatest Story Ever Told”, de George Stevens, passando pelo tão popular “Ben-Hur”, o cinema tentou e falhou. Papelão e pastelão.

Há mil Paixões, mil mortes de Cristo e – valha-me Deus, que não é de mal-entendidos – Jesus morre sempre tão bem. Já o seu nascimento é adramático porque os principais elementos de tensão, a presença do Pai ou do Espírito Santo, a concepção de Maria, são de infilmável invisibilidade, a menos que seja Godard a traduzi-los para a contemporaneidade, com o escândalo e a blasfémia do seu “Je Vous Salue Marie”, ainda assim um filme mais mariano do crístico.

No “Il Vangelo Secondo Matteo”, Pasolini foi quem esteve mais perto de restituir, com um olhar de medida escassez poética, o que no nascimento de Jesus possa haver de transfiguração e espiritualidade. Há quem diga que o fez por ter o rigoroso olhar marxista dos anos 60 e 70. Diria que também o ajudou o ascetismo das personagens e do cenário, a pedra transmontana dos casebres – a lembrar, às vezes, o “Trás-os-Montes”, de António Reis – como o ajudou a sua imensa fé nos grandes planos, na candura firme dos olhares e no silêncio. E não vás daqui, Pier Paolo Pasolini, a dizer que não louvei, assim, a tua superior e esquecida humildade de poeta.

Fanny and Alexander
Fanny e Alexandre

Qual é a maior alegria do Natal?

Mas vejamos: corrida esta prosa a cães e morte, não deixa de ser Natal e, Deus seja louvado, nem o PAN há-de morrer, nem a gente deixará de almoçar e querer ver um filme a seguir e outro na noite de Consoada.

A um amigo, eu diria, vê o “Fanny e Alexandre”, de Ingmar Bergman. Como quando vamos ver o mar e as águas estão perladas de pequeninas cristas brancas, assim “Fanny e Alexandre” está perlado de pequenas angústias, todas revestidas pelas mais variadas alegrias, as puras, as nostálgicas, as infantis, as risonhas e maliciosas. O jantar de Natal culmina com a mais prodigiosa celebração da flatulência que o cinema já imaginou. Um velho tio, para gáudio dos sobrinhos meninos, tem a arte de soltar um poderoso peido contra uma vela, rasgando, no escuro das escadas onde se esconderam, uma miríade de estrelas que nos resgatam do tédio e conferem ao desprezado traseiro humano a mesma dignidade mágica que qualquer Messias gostaria de conferir à humanidade que queira salvar.

E não me venham dizer que há, em “Fanny e Alexandre”, sexo a mais para uma noite de Natal. A consoada é efusiva e quem tenha uma casa grande, de preferência duplex ou com bons arrumos, sabe bem do que falo. A vontade de abraçar, de beijar, a comunhão mística que nos lança num amplexo universal, se as autorizamos à mente e ao coração, como diabo poderemos proibi-las a tudo o que no nosso térreo corpo o sangue irriga?

Mesmo “Eyes Wide Shut”, essa perversão kubrickiana para que foram arrastados Nicole Kidman e Tom Cruise passa-se, afinal, no Natal. E lembro essa preciosidade de 1966, a preto e branco, que dá pelo nome de “Le Pére Noel a les Yeux Bleues”. Filmou-o um transgressivo, breve e suicidário Jean Eustache. Jean-Pierre Léaud é o protagonista. Quer comprar o sobretudo dos seus sonhos e para arranjar a massa de que qualquer sonho é feito, aceita vestir-se de Pai Natal e fazer fotografias de rua com quem passa. Descobre que as raparigas, que para ele, antes, nem uma pestana abriam, agora se encostam à sua fofice de Pai-Natal e que não se importam que ele deixe as suas mãos natalícias deambular festivamente pela alcantilada geografia do corpo delas.

Já não tenho espaço para continuar a falar de perversões, nem, bem sei, para falar dos Reis Magos. Regresso, por isso, à inocência de quem tem filhos para criar. Se querem deixar-lhes uma ferida incurável, que eles guardem em humaníssima carne viva, legado de um imaginário de ternura, um módico de bondade, um fraterno amor pelo humano nosso vizinho, ponham os vossos filhos ao colo e vejam com eles “The Sound of Music”, “Mary Poppins”, o “E.T.”, o “Elf”, “The Muppet Christmas Carol”, o “Home Alone”, até o “National Lampoon’s Christmas Vacation” ou “The Polar Express”. Se eles já não se sentam ao colo, atirem-se ao “Die Hard”, ao “About a Boy”, ao “Batman Returns”, ao “Harry Potter”.

Mas se me deixam, como as raparigas a Jean-Pierre Léaud, meter a mãozinha, a minha pessoalíssima escolha é “Meet Me in Saint Louis”. Um pai de família é promovido na empresa e anuncia à mulher e filhas que, depois do Natal, partirão para a grande Nova Iorque, deixando a cidadezinha de Saint Louis. Esse é o último Natal que as quatro filhas passam com os amigos, os amores, os vizinhos que as mimam, essa intrincada rede de sentimentos e júbilo da pertença que as liga à cidade, ao bairro, à rua onde nasceram e crescem. E, tendo ficado lá fora, no jardim, os desolados bonecos de neve, quando no calor do quarto, uma das irmãs, Judy Garland, canta à maninha mais nova o “Have Yourself a Merry Little Xmas”, toda a turbulenta e antecipada emoção da despedida, da perda, do tempo que passa, tombam sobre as personagens e sobre nós. Judy Garland canta e diz que next year all our troubles will be miles away… Derrama-se no filme e do filme uma tristeza de seda. Choro eu, choramos todos: é Natal e a maior alegria do Natal é a sua tão belíssima e nocturna tristeza.

Publicado no Expresso

São Paulo, Prisão de Luanda

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Carlos Taveira e eu cruzámo-nos no Lobito, em 1975, em casa da Mitas, minha colega, professora no Liceu do Lobito. Cruzámo-nos no que foi uma reunião quente, com aquela incendiada veemência que havia nas reuniões de crítica e de auto-crítica, se bem que essa conversa não fosse uma reunião formal. Mas eu estava já num processo de corte do cordão umbilical que me ligava ao meu anárquico maoísmo, descrente de tudo o que cheirasse a MPLA e com a mesma absoluta necessidade de viajar e ir estudar para o estrangeiro, que sentira durante o fascismo tépido de Marcello Caetano.

Carlos Taveira assistiu a essa conversa e lembra-se. E eu lembro-me de um jovem atento, com aquele ar de Che Guevara que todos então tínhamos, mesmo se uns mais do que outros. E nunca mais nos voltámos a encontrar, mesmo se ambos passámos o dia da independência, 11 de Novembro de 1975, em fuga, na mesma cidade de Novo Redondo, ambos temendo que Luanda pudesse cair e que, com os sul-africanos a virem a galope do sul, acabássemos às mãos deles e da Unita. E ambos acabámos separados e sem contacto, afinal, em Luanda, em 1976, esse ano de cinza e chumbo em que a independência se converteu numa mortalha da liberdade, da pluralidade de pensamento, de qualquer das utopias – e eram várias – que batiam nos ventrículos de uma juventude que podia ter dado tanto a Angola.

Os arados de 42 anos lavraram o tempo, esfacelaram ideologias, rasgaram-nos pessoal e sentimentalmente, e levaram até a Mitas, nosso ponto de referência e encontro. E eis que me chega um livro do Canadá, um romance de temática angolana, original, riquíssimo de linguagem, surpreendente de estrutura, com o forte sabor de quem na mesma boca mistura marufo e uma aguardente velha. Pergunta atrás de pergunta, descobrimos, como se revelássemos um velho rolo de uma velha máquina fotográfica, quem éramos e o que nos tinha juntado e separado.

Ao romance de Carlos Taveira hei-de publicá-lo a seguir, mas antes, depois de descobrir que ele tinha sido preso pela DISA, na mesma altura em que eu saí definitivamente de Angola, e sabendo que ele registara a memória dos anos de prisão que viveu, desafiei-o – para não dizer que o intimei – a publicar e a publicar já este livro, a que ele chamou, com simplicidade, São Paulo, Prisão de Luanda, título que na sua singeleza evoca gritos, medo, suores frios, mas também coragem, estoicismo e fé.

É com este livro que a Guerra e Paz começa o ano de 2109. Por uma razão muito forte. Este livro não é um livro do passado. Este livro é um livro que quer construir o futuro. Tudo nele nos convida ao conhecimento sereno da História e a olhar o futuro sem raiva, sem rancor, mostrando que a grandeza humana pode ser de tal ordem que sobrevive à tortura, à brutalização moral, à degradação mais extrema. Essa luz, a luz da vida, luz de amor, luz de finíssimo humor, está presente em São Paulo, Prisão de Luanda, impondo-se com uma tranquilidade, uma aceitação do mundo e das suas mil diferenças, dando-nos uma inesquecível lição. Este é um livro para todos os angolanos lerem; este é o livro que todos os portugueses que viveram a experiência de Angola têm de ler: no sobressalto do passado, um indisfarcável sorriso de esperança no futuro.

Estrela tracejante no céu de África

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a solidão de Duvall

O cinema era o Avis. Um ano depois já se chamava Karl Marx. Juro que foi lá, à meia-noite, no Natal de 1974, que vi “Tomorrow”, adaptação de um conto de Faulkner. O artista, como ainda se dizia, era Robert Duvall, solitário agricultor que dá guarida a uma mulher tão grávida como abandonada.

Estava em Luanda, cidade em chamas, engajado no caminho das pedras da independência. Aos 21 anos sentia-me tão só quanto só se pode estar. A família fora um out of Africa que lhe dera. Nem pai, nem mãe, estava por minha conta. Sobravam, da herança colonial, uma dúzia de amigos cujas cabeças rolavam à velocidade da guilhotina na Revolução Francesa. Mortos pela guerra? Nem mortos, nem estropiados. Eram apenas nomes inconsoláveis que a ponte aérea para Lisboa abatia ao activo. Para nós, que ficávamos, passavam a indesculpáveis defuntos.

No meio desse fogo amigo e inimigo, nasceu, modesto mas abnegado, o Natal de 74, o meu primeiro e verdadeiro Natal angolano. Acolheu-me uma família africana, tripulada pelo cuidado e pelo amor de um inenarrável patriarca. Entre irmãos, irmãs e meio-irmãos seriam seis, mais primas e primos, pai e mãe, como só nas grandes sagas familiares. Eu, branca cara pálida, era só mais um filho. A geleira, como numa família lindamente mulata se chama a um frigorífico, era de todos: “Aqui não se pede, abre-se e tira-se.”

Vivíamos de esquemas, contrabandeando do Puto vinho, couves e bacalhau. Naquela Consoada tive a melhor das ceias. De vez em quando, as rajadas das AK escreviam pontos de interrogação nessa noite de uma estrela. O assobio de um morteiro não bastava para parar as conversas que se enchiam de promessas, juras e choros, ceia tão delicada e intensa. Os discursos, meu Deus, o gosto que tínhamos nos veementes discursos. Podiam apontar-nos uma pistola à cabeça e continuaríamos a discursar, engajados numa alegria feroz, vaidosa e dramática.

Não sei se no meio dos discursos, se na solidão em que encontrei Robert Duvall no cinema Avis, dei comigo a pensar: quem sabe se em vez do verdadeiro Cristo ser Marx – como diziam os nossos discursos e a ponta de cada espingarda – quem sabe se o verdadeiro Marx não será este Cristo anunciado por uma estrela tracejante no céu vermelho de África?

Pouco me interessava a resposta, tão inquieto fiquei com a pergunta.

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outra sagrada família

Publicado no Expresso

Meus Kambas: Eugénia de Vasconcellos

Eu já tinha dito, aqui, que Meus Kambas era uma varanda pequenina, com porta para a cozinha, que eu arranjei aqui, na Página Negra. Tenho hoje, a minha segunda visita, a poeta Eugénia de Vasconcellos. Não vem sozinha. Traz Veneza com ela. E bastava que trouxesse o perfume da sua escrita, sofisticada, riquíssima sempre, tão inovadora e desabrida como a de O quotidiano a secar em verso, tão contida e às vezes de um agónico êxtase, como a de Sete degraus sempre a descer, os seus dois últimos livres de poemas, que são da melhor poesia dos últimos anos publicado em Portugal. É um orgulho sentá-la a esta mesa.

EV

 

UM PASSO AO LADO
Eugénia de Vasconcellos

Veneza. Turistas em corrente infinda em grupos de dezenas avançam pelas ruas, as malas de quatro rodas low cost batem nas pedras e degraus. Todo o dia. E tomam conta das pontes e das praças para incontáveis selfies de canal à frente, canal ao lado, no centro do canal, da praça, ao centro da sala do palácio, da torre, da tela, da gôndola. Têm gorros com um enorme pompom e usam ténis. Fazem fila.

Há uma fila de cinquenta japoneses, alguns de máscaras hospitalares, para entrar no Florian.

Um passo lado, do outro lado, se fossem à salinha pequena do Gran Quadri, à esquerda de quem entra, quatro mesas e um balcão, não teriam máscaras, só café moído na hora – a melhor bica da minha vida e isto não é dizer pouco. Forte. Creme espesso. A perfeição das manhãs em chávena pequena.

E os restaurantes venezianos nas ruas de maior trânsito… são chineses. Pizza e pasta intragáveis de gordura pré-cozinhada. Basta olhar para perceber. E os menus com fotografias dos pratos plasmados nos vidros das janelas.

Mas um passo lado. Ruas vazias. Roupa nos estendais. Pombos dormentes. E filas só de copos altos de spritz, ao balcão do fim da tarde, nenhuma outra língua para além do italiano, nem um gorro de pompom maior do que o rabo de um coelho, nem um, as mulheres usam kubankas de raposa ou do que for, Laras Antipovas com Zhivagos a tiracolo ou de serviço, deslizam de saltos altos e casacos compridos de deixar a PETA à beira de um ataque de nervos.

À direita e à esquerda, tudo é belo. Até o estaleiro de gôndolas, acidental e fechado, longas pranchas de madeira amontadas a tomar nevoeiro como se fora sol.

Uma igreja aberta há mais de doze séculos, caída e levantada como nós, pias cheias de água benta, água suficiente para tanto mal, e nem um crente nem um visitante, e mesmo assim um mistério de velas acesas. Um passo ao lado, colado, viveu um alquimista e sobreviveram-lhe as pedras inscritas a claros símbolos enterradas nas paredes amarelas. Vielas estreitíssimas e decadentes. Belas na sombra húmida que nenhuma luz rasga. Pátios inesperados atrás de portões altos. Belos ao céu descoberto do tempo.

Nos edifícios, medalhas a torto e a direito: aqui viveu x, ali escreveu y, ali morreu z. As pessoas passam, as casas ficam. As ruas. Morrer, antes, parecia-me um escândalo, tinha a cabeça formatada em Cesário Verde, ai se eu não morresse nunca e eternamente buscasse a perfeição das coisas. Merda para isso. A eternidade não precisa de mim para nada.

Nem há Bach suficiente para nos salvar por muito que aqui cresça na acústica perfeita das igrejas. A beleza não salva ninguém nem quando os Tintoretto são mais do que os pintores de rua e as gaivotas se passeiam, de asas fechadas, passo a passo, a cabeça altiva, como orgulhosos cães sem dono.

Porém, na casa onde Peggy viveu, ainda está uma Maiastra de Brancusi. Essa ave cujo canto, não há romeno que o não saiba, resgata da escuridão quem a ouça.

Eugénia de Vasconcellos, Veneza, Natal de 2018

EV-V