Quem anda a comer Joyce?

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Ando a comer a “Madame Bovary”. Ora vejamos e toca a andar: não sou só eu.

Camélia, jovem francesinha de 14 anos, gosta de ler cinquenta páginas por dia. Quando entregue à devassidão da leitura, se lhe dá a fome, logo rasga bocadinhos de páginas, que mastiga com deleite, para apaziguar o ratinho que lhe rói o estômago. Mais e melhor, naqueles dias de extrema angústia adolescente, Camélia destaca cirurgicamente uma página inteira do livro e come-a com o mesmo ardor com que Aquiles incendiou a “Ilíada”. Pior, se lê uma página que não lhe agrada, come-a com voracidade canibal, o que, confessa, sempre lhe dá dores de barriga.

É provável que os pigmentos das cores, os aditivos estabilizadores e os elementos tóxicos associados ao papel e às tintas sejam ingredientes de dieta no mínimo irrecomendáveis. Mas nem isso impede Violette, outra francesa, de comer capítulos inteiros, hábito que lhe ficou de uma infância abusada, deixada em casa dias e dias com os irmãos, sem comida que se visse. Hoje, descamba na escatologia e come limpas folhas de papel higiénico.

Digam-me que é irreal e que é obsceno e eu indigno-me. Admiro os seres humanos que rivalizam com o peixinho-de-prata, parasita larvar que faz dos livros o seu menu diário. Todo o ministro da cultura devia ter a boca do peixinho-de-prata e passar o dia a comer livros, atacando-lhes a capa, perfurando em êxtase hermenêutico um túnel que levasse da página 2 à 159. Eis um programa de governo para Graça Fonseca: ser o peixinho-de-prata dos nossos livros. Aliás, o livro não é nada calórico, daí a elegância do peixinho-de-prata. Segundo os especialistas, a ingestão de 500 páginas, corresponde a meia caloria. Bem menos do que uma patanisca, arroz e feijão.

E passo de uma obscuridade a outra obscuridade: Marie Sochor, artista plástico-performativa, género muito apreciado por ministros, faz sessões públicas de ingestão de páginas da sua escrita, impressas em papel sem fermento, com tinta preta comestível. As mais apreciadas são as “pages à chier”, que me atrevo a chamar “páginas cagativas”. Não serei eu a lançar dúvidas sobre o valor laxante destes eventos.

E olhem, aí vem o livro lamber a boca subversiva do hip hop. Em delicado papel bíblia, Snoop Dogg, fez um livro para enrolar, “Rolling Words”. Capa em cânhamo, papel laminado, tinta não tóxica, tudo, mas tudo – ya, meu! – totalmente biodegradável, estas “Palavras Enroladas” são mesmo para fumar folha a folha.

Picasso não comia livros, mas deu, como Deus, a arte a comer ao seu cão salsicha, um Dachshund. Armava-lhe coelhinhos em papel, pintava-os e o Dachsund, cão esteta, chamava-lhes um figo.

Se chamei Deus ao parágrafo anterior, posso jurar que não o fiz em vão. Deus deu um livro a comer ao profeta Ezequiel. Está escarrapachado em Ezequiel capítulo 3, versículos 1 a 4: “Filho de ser humano, come este rolo, vai e fala aos filhos de Israel.” E disse-lhe Deus que o seu ventre ficaria saciado, o que Ezequiel confirmou: “Comi-o e na minha boca tornou-se doce como o mel.” Em verdade, em verdade vos digo, Jorge de Sena não teria sido o profeta que foi se não tivesse comido Fernando Pessoa, tal como o profeta do nosso século XXI, se o quiser ser, há de comer Pessoa e Sena.

Termino com um parágrafo heróico. O dinamarquês Theodore Reinking, em 1644, escreveu um tratado acusando os suecos da miséria da sua pátria. Foi preso e deram-lhe a escolher: ou era decapitado ou comia o manuscrito. Não hesitou: cozinhou as páginas num caldo de carne e comeu-o, salvando a vida.

Crónica publicada no Jornal de Negócios

Uma dedicatória de Sam Fuller

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Eram os tempos gloriosos da Cinemateca. Corriam, um à frente do outro, os meses de Abril e Março de 1988. Organizávamos então um ciclo dedicado a Samuel Fuller, dito cineasta de guerra, que tem num filme carteirista o seu melhor filme, o que tudo diz das ideias feitas e dos princípios da catalogação. Tocou-me a mim organizar o ciclo, a meias com o João Bénard – ou para melhor dizer, fui eu a metade que ele usou.

Com o Luís Miguel Castro fiz este catálogo, que nunca mais estava pronto. Já o ciclo ia adiantado e catálogo viste-o! Veio Fuller à estreia, e voltou a outras sessões, e catálogo está quieto. Já éramos amigos, fizemos festas, uma em casa do actual decano do cinema português, o magnífico António da Cunha Teles. Já Fuller era da família, amigo também da Antónia e talvez lhe tenhamos dito que para o ano haveríamos de ter um filho, que por acaso é a minha filha. O catálogo é que continuava de parto adiado.

Quando o livrinho chegou, corremos a pedir-lhe o autógrafo, e ele deixou-nos esta dedicatória tão bem zangada de ainda nem lhe termos dado um exemplar desta obra renitente.

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A boca de Boris Vian

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Boris Vian arranca um sorriso genuíno a Miles Davis

Vejamos, é a boca de Boris Vian. Durante 15 dias não se lhe ouvirá um som, sequer um sussurrado ai. Morreu-lhe o pai. E agora, que já vos dei a notícia, acrescento: não morreu, mataram-no. Eis o que cala Boris Vian: o pai foi morto a tiro, por intrusos, em sua casa, a vivenda provincial da família.

Paul Vian era e não era o pai de Boris Vian. Herdeiro de uma pequena fortuna, dava festas de cem pessoas, prodigalizava aventuras. Merecia hedonicamente o dinheiro que tinha, semeando felicidade. O lendário colapso da bolsa de 1929 deixou-o descalço.

Descalço ou nu, não se encolheu: alugou a grande vivenda aos Menhuin, cujo filhinho seria o prodigioso violoncelista Yehudi Menhuin, e mudou-se para os anexos do caseiro. Poucos anos mais e voltaram as festas. Meteu tantos livros, teatro, música e boémia na cabeça de Boris, que já era o melhor amigo, o pai que, tivessem-no tido Salazar, Malcolm X ou Mao Tsé-tung, muitas chatices se teriam evitado. Eis o pai que dá lições de boémia, o pai a quem se encosta a cabeça adolescente.

Mas vejamos de novo a boca de Boris. Está colada a um trompete. Foi o pai arruinado que lho comprou numa Feira da Ladra. Por influência de Menhuin, quem sabe, Boris que estudou matemática, latim e grego, quer ser músico. Que outra coisa pode ser um miúdo com o reumatismo cardíaco que o médico lhe descobriu?

Agora olhem outra vez para a boca de Boris Vian, para o sorriso bonito, de tão gentil ironia, com que fala ao dono das Edições do Escorpião. O homem está, como eu, aflito com as contas da editora. A pandemia desse tempo fora a tropa nazi que deixara devastada a França, entretanto libertada. Vian casara com Michelle e vivia já em Paris. Tocava em hot clubes e conhecera Duke Ellington. Tivera um filho para quem escreveu uns “Contos de Fadas para Uso de Pessoas Medianas” e tinha na gaveta dois romances. “Queres um bestseller? Eu dou-te um bestseller!” disse ele ao editor escorpião.

E deu. Em dez dias, escreveu um policial, que assinou com o pseudónimo de Vernon Sullivan, para fazer justiça à trama e às personagens da cidade de Buckton, no sul dos Estados Unidos da América. O protagonista era um mestiço que, nesses anos 50, de segregação, se fazia passar por branco e se vingava, desenfreado, da morte do irmão, assassinado por ter dormido com esse tabu supremo, a mulher branca. “Cuspirei nos vossos túmulos” era o livro de cujas páginas transpirava violência com amarescente odor a sexo.

E vejam, já a boca de Boris Vian está em tribunal, acusado de ultraje aos bons costumes, por incitar adolescentes a actos de deboche e sadismo, até por o romance ter sido encontrado, aberto em página de incendiária violência, em cenário de crime, o de uma rapariga morta pelo amante num hotel de Montparnasse.

Autor do livro bandeira que é “A Espuma dos Dias”, em vida a boca de Boris não voltará a saborear mais nenhum êxito literário. A fina tristeza da morte do pai corre nele como rio subterrâneo. Afinal os assaltantes traziam a braçadeira da Resistência, parlamentaram com o pai, as mulheres da casa meteram-se pelo meio, e eles mataram-no com uma rajada. De que o acusariam?

E vejam o rictus feroz na boca de Boris Vian. Tem 39 anos e assiste ao visionamento do filme tirado de “Cuspirei sobre os vossos túmulos”. Levanta-se em cólera contra o que vê e uma síncope dá cabo do seu coração. Vai a enterrar no cemitério onde está o pai. Os coveiros estão em greve e têm de ser os amigos a baixar o caixão e a cobrir de terra o sorriso, boca e corpo de Boris Vian.

Crónica Publicada no Jornal de Negócios 

Documentos para a História

Este post vem direitinho da Guerra e Paz para a Página Negra. E eu vou já visitar a Feira do Livro que aqui nos prometem.

História Feira

Documentos para a História de Portugal, de Angola e do Mundo
FEIRA DO LIVRO

 Os que não conseguem lembrar o passado condenam-se a repeti-lo. George Santayana

Dê a mão ao passado – é uma grande forma de entrar no futuro. Fazemos-lhe um desafio: venha passear, virtualmente, nesta grande Feira do Livro, uma feira temática cheia de documentos chave para o aprofundamento da História de Portugal, da História de Angola e da História do Mundo. Temos 44 livros editados pela Guerra e Paz, que tocam aspectos particulares (como o Bunker de Hitler) ou oferecem retratos gerais de períodos históricos, caso da Revolução de Outubro ou da Breve História da Angola Moderna.

Temas candentes e polémicos como a Escravatura ou Quem é Fascista cruzam-se com documentos terrivelmente vitais como o Mein Kamp ou o Pequeno Livro Vermelho. Um livro pungente como Os Filhos dos Nazis ou um livro de Memórias escolhidas de um comunista português vão estar ao lado de ensaios sobre a natureza da História como o é A ideologia Afrocentrista à Conquista da História e essa obra que se interroga sobre o Triunfo do Ocidente. Revisitam-se aqui os dois dias 25 que marcaram a nossa democracia em Capitão de Abril, Capitão de Novembro, viajamos, em Muros, pela estranha vontade de clausura que por vezes assola a humanidade, e chegamos a essa bifurcação maior dos nossos dias, aquela que decidirá o nosso futuro e o dos nossos filhos, no ensaio inteligente e prospectivo que tem por título EUA versus China: Confronto ou Coexistência.

É uma grande Feira. Tem autênticas pechinchas, com livros que chegam a ter 40% de desconto. E, para completarmos a sua felicidade de leitor, a cada compra de dois livros oferecemos um exemplar do livro de fotografias de Picasso, do seu cão e de algumas das suas telas, belo álbum do fotógrafo americano David Douglas Duncan. Dois livros da Feira, seja qual for o preço, e o álbum com que comemorámos os 40 anos da morte de Picasso é seu.

Em louvor dos palhaços

Uns palha­ços, todos! É tão fácil, hoje, des­pe­jar os polí­ti­cos pelo cano do esgoto. Palha­ços, arlequins, jokers, encan­ta­do­res de ser­pen­tes. E eu peço ao José Tiny, admirável ilustrador destas pobres crónicas, que desenhe aqui um, demagogo, trumpiano e com um par de botas. Mas con­fesso já: não con­sigo cal­çar esse fácil par de botas. Talvez os políticos não sejam os palhaços que sempre são na conversa de café ou tasca.

E se tiver de con­fes­sar, con­fesso tam­bém: quis ser tudo na vida. Adolescente, sonhava em Luanda que, depois de vir a Por­tu­gal fazer a univer­si­dade – digres­são que ima­gi­nei como um rega­bofe boé­mio – voltaria à minha cálida colónia como can­tor de banda rock: e isto era eu, que tenho uma orelha de Van Gogh para a música, a sonhar ser can­tor. Quis ser tão aventureiro como Lord Jim, comprei uma camisa à Dr. Jivago, tive outra, de marca Regojo, igual à de Eusébio e imitei-lhe os penalties, bola para um lado guarda-redes para o outro. A pro­fes­sora pri­má­ria via-me Papa, um Jorge Ber­go­glio avant la lettre.

Só há uma coisa que nunca quis ser. Mesmo nos tem­pos de punhi­nho no ar, um pé no catolicismo pro­gres­sista, todo teologia da libertação e, logo a seguir, a espalhar-me ao comprido num maoismo com pós de Pol Pot e o sal mais snob de Sorbonne Paris VII, se andei em incen­di­a­das e africanas manifs de poder popu­lar, em verdade vos digo: nunca quis ser “um político”.

Escrita, rádio, cinema, televisão, quis tudo e quis “fazer coi­sas”, projectos, movimentos empresas, e já estive na fundação de quatro. Eis a ilusão que não me abandona: “fazer coi­sas” é o maior sinal de coragem de uma vida. Mas nunca quis ser político.

E toda­via lembro-me. Aos dez anos, estava numa aula do 1º F, minha pri­meira turma do Liceu Sal­va­dor Cor­reia, quando soube que tinham assas­si­nado John F. Ken­nedy com uma bala na cabeça. Uma peque­nina e ino­cente como­ção tocou os 20 e tal miú­dos que nós era­mos. JFK já era um homem ter­ri­vel­mente adulto aos nos­sos olhos meni­nos. Mas havia nele uma magia que o impedia de ser o velho que, para nós, seria qualquer pes­soa com a idade dele. JFK tinha uma ambí­gua juven­tude: vinha-lhe do físico, que o fazia pare­cer um júnior do Ben­fica de Luanda; vinha da fran­cesa ele­gante, quase yé-yé, quase Syl­vie Var­tan, que era a namo­rada dele. E vinha, sobre­tudo, das ideias que eram o único cha­péu dele, num tempo que odi­ava cha­péus. Nas ideias de JFK havia lai­vos do “Sgt. Pepper’s” que ainda estava para vir. Ou do “I can’t get no satis­fac­tion” que JFK nunca ouviu cantar.

Ao con­trá­rio do que, quei­xi­nhas e duvidosamente, can­ta­ram os Pink Floyd, precisamos de edu­ca­ção e de pro­fes­so­res que não dei­xem os kids alone, pre­ci­sa­mos de ciên­cia e de tec­no­lo­gia, de cren­ças e valo­res, mas para ter­mos mesmo um mundo novo precisamos de polí­ti­cos, pre­ci­sa­mos do san­gue, suor e lágri­mas dos Churchills, pre­ci­sa­mos dos sonhos dos Luther Kings, pre­ci­sa­mos que um tipo de fati­nho, quase um puto, cató­lico e adúl­tero, se ponha em bicos de pés e grite por cima do muro sinistro, “Ich bin ein Berliner”.

Hoje, não há nin­guém que os com­pre. Chamam-lhes palha­ços: todos uns palhaços! Mas por tudo o que vi e pas­sei, a única coisa que vou con­ti­nuar a jurar a mim mesmo é que sem palhaços não há demo­cra­cia. Por mais exan­gue que a patética demo­cra­cia pareça estar, por mais vírus que lhe queiram enfiar na boca engelhada e triste, Merkel, Costa, Passos ou Marcelo, Macron ou Boris Johnsson, mão esquerda ou direita, “fazem-lhe coisas”. A esse risco chamo coragem: nessas mãos que arriscam e mexem revejo-me.

Crónica publicada no Jornal de Negócios

O Bem e o Mal

O pai morrera e ele nunca mais almoçava. O caixão era paupérrimo, uma coisa dickensiana ao lado da qual caminhava a aflita dor da mãe. O futuro Charlot, vinha atrás da urna do pai e do pranto da mãe. Para distrair a fome, ia mimando, caricatural, o sofrimento materno. Tão expressivo que o irmão soltava gargalhadas. Toda a criança é cruel, dir-se-á. O futuro diria que ele era mau como as cobras.

Há outra morte a atravessar-lhe biografia e obra. O primeiro filho de Chaplin nasceu mal-formado e morreu após três dias de angústia. Duas semanas depois, sem indulgência, Chaplin fazia testes a actores para o que seria o filme-querubim a que chamamos “The Kid”. Fê-lo como quem se cura com o próprio veneno.

Ignóbil foi também a inspiração de “The Gold Rush”. O brutal rigor de um Inverno isola um grupo de pesquisadores de ouro. Para sobreviverem comem os cadáveres dos que vão tombando. Depois de ver o que Chaplin fez com esse material, até nem me parece estranho que Cristo em Canaã tivesse transformado a água em vinho. Como se convertem tragédias em comédias, que estranha alquimia transforma a crueldade em angelical inocência? A maldade é, aposto, um ingrediente essencial. Vejamos.

“Mau como as cobras” foi o que disseram quase todas as mulheres de Chaplin. Numa altura em que as ligas puritanas marcavam Hollywood homem a homem, uma menor, Mildred Harris, clamou estar grávida dele. Sem poder arriscar o escândalo, o genial Chaplin casou-se. Estava à espera dela no registo e vendo chegar a juvenil figura não resistiu a um comentário sibilino: “Sinto um bocadinho de pena dela.” Não era caso para menos, em dois anos estavam divorciados e ela acusava-o, provavelmente com inteira verdade, de crueldade mental. Mas sem esses dois anos de tortura de Mildred será que Chaplin teria algum dia criado “City Lights”?

Reincidiu. Lembram-se da Lita Grey do “The Kid”? Tinha 12 anos. Aos 15, Chaplin chamou-a para ser a estrela de “The Gold Rush”. Ainda chegou a filmar, mas Lita descobriu-se, de repente e não por acaso, em estado interessante. Novo casamento urgente e obrigatório, nova tragédia pessoal. Chaplin abandonou-a num palácio dourado, enquanto se locupletava em infidelidades que incluíam a actriz que a substituiu e uma amiga que Lita lhe apresentara. A declaração de Lita no divórcio foi histórica: acusava Chaplin de todas as crueldades e mesmo de uma heterodoxa abordagem à relação sexual que a lei californiana condenava. Era, de frente ou de costas, mau como as cobras.

A desumanidade de Chaplin explica a humanidade da sua obra? O facto é que as tragédias, próprias ou alheias, foram o capital cómico dos seus filmes. O narcisismo, o ressentimento, a perversidade, a mesquinhez, a infidelidade geraram obras-primas. Atrevo-me: só do mal pode vir algum bem.

Uma noite no Soho

Esta foi uma crónica escrita num tempo em que se podia ir ao cinema. E em que se podia ir aos bares. Um tempo em que havia uma boémia descomandada, desregrada. Trago esta crónica de volta, amarrada, quase amordaçada, no dia em que me dizem que já se vai poder ir ao cinema. Talvez a um bar. Desde que não se vá, como faziam Francis Bacon e Lucian Freud, a cavalo.

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Bacon e Freud

Hoje não vou ao cinema. Iria, se me prometessem que lá estavam Francis Bacon e Lucian Freud. Digo-vos quem são. São dois tipos que se revoltaram contra o futuro. Haverá quem diga que são ou eram dois pintores e eu, com a arrogância dos ignorantes, insisto: eram dois tipos sentados pantagruelicamente no presente. Comiam o presente, embebedavam-no e fodiam-no como quem respira, desvairado. Jogavam nas corridas, andavam à porrada, mergulhavam em champagne e caía-lhes o corpo exausto nas cavalariças, ao lado dos cavalos que tanto amavam.

Se eram amantes? Se isso não meter sexo, eram. Bacon, descendente do filósofo homónimo e empirista, era homossexual dia e noite, com vincada preferência por homens mais velhos que lhe arriassem forte e feio. Freud, neto do seu psicanalítico avô, era mais novo treze anos e preferia afundar-se na primordial e perlada fonte feminina. Caroline Blackwood, mulher de Freud durante parte dos anos de vida louca com Bacon, dizia: “Jantei quase todas as noites do meu casamento com Bacon. Ah, e também almocei.”

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Bacon, por Freud

Sim, gostavam de jogar nos cavalos, de se atirar sem rede para os bares do Soho e frequentar vigaristas, ladrões, putas, chulos e mais gente prendada, mas o cimento dessa vida gelatinosa era a paixão pela pintura figurativa que cultivaram como flor de preço.

Ora lembrem-se: aquele tempo era um tempo que prometia arte abstracta para toda a santa e imóvel eternidade. E Bacon, primeiro, e Freud com ele, sentaram-se no presente, com o passado entre as pernas, pintando retratos de pessoas, nus com chapéu, papas aos gritos, meninas com cão branco, a carcaça de um boi no talho. Tenho de dizer: estilhaçaram o raio do futuro. Ainda há dias, seis anos, que interessa, o “Três Estudos de Lucian Freud”, em que Bacon pintou o amigo num delicado equilíbrio de luz e ouro, atingiu o francamente estúpido recorde de 120 milhões de euros, o que, a meu ver, já é mesmo gozar e humilhar o futuro.

Na arte e nas noites do Soho, e ai de quem veja alguma diferença entre uma coisa e outra, o que os uniu foi um paradoxal optimismo niilista. Tinham os músculos carregados de energia, de uma força nietzschiana, amoralíssima. Queriam, por junto, luxo e luxúria: pintavam, comiam, bebiam, esmurravam e eram esmurrados como quem faz amor. E eu, hoje, afinal, já nem preciso de ir ao cinema.

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Freud, por Bacon

Vaidade e presunção, e não me arrependo. Entrevista de um editor

A revista Fluir, revista digital de literatura e artes, entrevistou-me, na minha lamentável condição de editor, para o seu número 5. A revista, que é dirigida por José Pacheco, já existe desde Setembro de 2018 e tem colaborações admiráveis. Quem me entrevistou foi a Ana Cristina Marques. Deixou-me de cara à banda quando me disse que Arturo Pérez-Reverte, num dos seus romances, fala em Lisboa com um editor português chamado Manuel Fonseca, cuja maior virtude, interpreto eu, é a sua bela e álacre mulher.  Eis a única coincidência. Seguem-se sete respostas a sete perguntas.

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O editor em animada e hilariante actividade. Na foto, além do editor rouge, Pedro Norton, Fernando Alvim, Pedro Bidarra e Henrique Monteiro

  1. A edição em Portugal compensa, ou é um esforço vão, ou obriga a mentir-se a si mesmo?

Compensou a Ulisses ter ido a Tróia, ter sido cativo dos Ciclopes, amarrar-se a um mastro para escutar a voz Teresa Salgueiro das sereias? Eis a razão pela qual ando nisto, voltar de consciência tranquila a reencontrar Penélope todas as noites e ganhar um dia a improvável imortalidade. É o que se leva da caverna editorial, que dividendos, viste-os – em 14 anos, zerinho, zero euros!

  1. Se pudesse escolher, teria preferido ser um editor no estrangeiro, ou continuaria a sê-lo entre nós?

Mal deixei de gatinhar, tinha eu cinco aninhos, deslarguei-me deste jardim à beira Atlântico plantado. Quis ser um Europeu errante em África. Voltei, com o rabo entre as pernas e um queixume brando. Seria ingrato negar agora, como Pedro três vezes a Cristo, a Pátria que me voltou a abrir os braços. Até porque houve um erro em que nunca laborei: nunca desertei da língua portuguesa em que edito.  Essa língua é o fio de Teseu, e um bocadinho de tesão, que me leva por este borgesiano labirinto de falas, escritas, livros, babélicas estantes, unindo o miúdo que gatinhava a esta terceira idade em que agora moro. Não saberia estar de pé em nenhuma outra língua

  1. E o que se faz é sobretudo apostar no que garantido, ou é possível dar a conhecer obras novas?

Mais do que apostar, quis inventar. No melhorzinho que porventura tenha feito estão alguns livros que inventei. Inventar um livro para Agustina juntando-a a Paula Rego, inventar com a Dona Mécia um livro de um Sena de escárnio e mal dizer involuntariamente ilustrado pelo próprio, atribuir a Pessoa o seu As Flores do Mal, inventar nos Livros Amarelos a rara, ou talvez única, colecção comparativa do mundo. E se os deuses deixarem que eu tenha descoberto um poeta – peço-vos que leiam Eugénia de Vasconcellos e logo João Moita – um filósofo, um romancista, aí está o que me poria de debruçado Narciso sobre o primeiro charco de água num primaveril dia de chuva.

  1. Considera-se um escritor que, paralelamente edita, ou um editor que, por vezes, também se quer dedicar à escrita?

Eu desconsidero-me. Já se viu pelas respostas anteriores que deambulo como gado transumante pela pastagem editorial. A escrita é uma leveza nefelibata, que um livro de devoção, tantas vezes lido em voz alta pela minha mãe, Alice Amália, ainda hoje me inspira. Eu sou um caso perdido de derrame melodramático, empolgam-me histórias de mártires, de barcos arrebatados pelas gigantescas ondas de homéricas tempestades, de náufragos seminus em ilhas tropicais. E que saudades tenho do herói que nos dias de adolescência prometia a mim mesmo ser. Já se vê, que sou um caso óbvio de incumprimento.

  1. O que o levou a tornar-se editor? Trace-nos em algumas palavras a aventura que terá sido a génese da Guerra e Paz.

Aprendi a fazer livros com João Bénard da Costa, na Cinemateca. Quando deixei a SIC, num acordo que os deuses inspiraram a Francisco Pinto Balsemão, decidi que já tinha uma linda idade para fazer da minha tão proveitosa vida o que bem entendesse. Juntei um mais um e deu dois, eu e a Guerra e Paz. Cá estamos. Foi vaidade, presunção e muita amizade. Os meus primeiros sócios foram os meus amigos de infância.

  1. Há um romance (O Franco-Atirador Paciente, de Arturo Pérez-Reverte) em que o autor o transforma numa personagem. Como se sente ao ver-se representado nas páginas de um livro? Essa personagem revela alguma coisa do homem Manuel Fonseca e da sua circunstância, ou é uma mentira? E se alguém se propusesse passar a obra para cinema, aceitaria fazer o papel?

Quem é esse editor de que Arturo Pérez- Reverte fala? “O” editor, em sentido abstracto? Eu mesmo, Manuel, o que muito me honraria por não conhecer Arturo, nem ele me conhecer a mim, o que suporia uma maravilhosa intriga, na qual Trump e Putin teriam de estar certamente envolvidos? Seja como for, eu, como actor, só entrarei num filme realizado pela vossa colaboradora Joana Pontes, a única a quem confiaria o supino talento dramatúrgico que ainda ninguém descobriu em mim.

  1. O que tem a Guerra e Paz na manga?

Gostava de anunciar um romance de António Lobo Antunes, mas a editora dele era capaz de levar a mal. Anuncio a Fotobiografia de Jorge de Sena. E, muitíssimo a sério, anuncio um livro político e filosófico essencial: vou publicar um livro de um sinólogo, Porquê a Europa, Reflexões de um Sinólogo, que tem tudo que ver com o mundo em que um vírus nos fez entrar: se o mundo que aí vem vai ser liderado pela China, o que é verdadeiramente a China? Que violência intestina é a sua, que feridas e guerras arrasta do passado? É um livro a que fiquei preso como a uma inescapável tragédia ficaria também.