
Não sei se comece pelo Paul, se pelo John. Se calhar começo por The Beatles. Todos. Os píncaros da fama de 1963 já iam no zénite. O papa Paulo VI sucedera a esse poço de bondade que foi o conciliar João XXIII e as miúdas inglesas, longe do meu saudoso catolicismo desse tempo, pensavam que se tinha havido um papa John e outro Paul, seria natural e legítimo que o próximo se chamasse Ringo.
Circunlóquios à parte, estão os quatro Beatles, em 1963, dentro de uma carrinha, na escura noite do Inverno britânico. Tinham saído de um concerto – andavam nisso há seis meses – e iam sossegar a adrenalina num hotelzeco de estrada em Doncaster. De repente, a carrinha começa a guinar para a direita. Lennon endireitou os óculos e berrou ao motorista: “Ó meu, qual é a tua. Isto aqui não é o Continente. Em Inglaterra guia-se pela esquerda!”
A carrinha volta ao trilho, mas cem metros à frente, nova guinada. E daí em diante, entra em vinte minutos de um ziguezague do Marão. Ringo, mostrando o seu fundo popular e cristão, começa a cantar o Pai Nosso. Paul, que ia ao lado do motorista escreve no vidro húmido quatro letras: HELP. Até que a carrinha sai mesmo pela direita, estanca e nem mais um pio. O motorista, num acesso ecológico anti-fóssil e avant la lettre, tinha-se esquecido de meter gasolina.
Lembrem-se, não havia telemóveis. O assistente daqueles descomandados golden boys, não hesitou, meteu-se no meio da estrada, saltou, agitou as mãos e parou um camião. Os Beatles sentaram-se como puderam, e ala que se faz tarde, encostadinhos a um camionista que passou, desde aí, a acreditar em extraterrestres.
Aos pobres, minha Nossa Senhora, acontece sempre pior! A mim. Fui a New Orleans, a um mercado de televisão. Ia com o Zé Navarro, trabalhávamos juntos nos tempos dinossáuricos e mágicos da SIC. O vôo atrasou-se, perdemos ligações e ficámos sem malas. Chegámos, era meia-noite, com o estado de espírito de Sócrates na noite em que Teixeira dos Santos aceitou o resgate da troika. Saquinho de cabine na mão entrámos num táxi que nos devia levar ao, julgo eu, Royal Sonesta Hotel, mesmo à entrada do French Quarter. Apanhámos um motorista num estado de excitação de um urso na floresta a quem está a escapar a presa.
Já na auto-estrada, acende os máximos e cola-se à traseira do táxi da frente, que levava, não os Beatles, mas uns seis loiríssimos manos de uma televisão sueca. À Ringo, rezei uma catolicíssima ave-maria. O Zé, numa ousadia lennoniana, diz-lhe: “C’mon, man. Keep cool!” Mas, surdo, cego e mudo, o taxista urso não largava a presa.
Em plena auto-estrada o táxi dos suecos parou – o nosso também. E estavam ali, no meio da auto-estrada americana, à uma da matina, os dois taxistas aos gritos de fuck e motherfuck, a trocar perdigotos gordos por essas bocas que se escancaravam a dois centímetros uma da outra. Tornava-se anacrónica a velha expressão, “Ó Ilda mete os putos na barraca, que vai haver porrada no beco”: o facto é que, dois taxistas, seis suecos, dois tugas, espalhados pelo fracote alcatrão, na noite americana, e não chegou a haver porrada na auto-estrada. Tinha havido entre eles, adivinhámos, um qui pro quo na fila de espera do aeroporto e a perseguição ainda continuou até que o táxi sueco escolheu uma via alternativa. Foi o mais estupidamente perto que me lembro de ter estado de levar com um daqueles lustrosos camiões americanos e ter ido para as pastagens celestes sem ter primeiro provado os crispy camarões fritos de uma poboy sandwich, esse prodígio da cozinha cajun.