Sim, sou marxista

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Gosto eu bem mais de Karl Marx do que todos os marxistas juntos. Anafado, cabelos desalinhados, que o faziam parecer um urso, vejam-no com as filhas, num picnic no Hyde Park: teriam comido ovos verdes e bolinhos de bacalhau se a condessa Jenny, sua mulher, ou Helene, a governanta, soubessem fazer ovos verdes ou bolinhos de bacalhau. Comeram, riem-se, correm pela relva até que Marx desafia as filhas a atacarem um castanheiro e limparem-no das maduras castanhas que o enfeitam. Atiram-lhe pedras e Marx um pau apanhado no chão. Roda-o com o braço direito e lança-o com uma força e um grito de Tarzan. Ri-se de possesso, as filhas com ele. Pagará o desabrido excesso: durante uma semana, de braço ao peito e pachos de água quente, não conseguirá escrever uma linha de “O Capital” ou de uma qualquer “Crítica à Economia Política”. Abençoado castanheiro.

Ouçam-no trovejar nas reuniões políticas em que se reúne com ajudantes de alfaiates, tipógrafos, encadernadores e tanoeiros numa miserável sala de Greek Street, no Soho, em Londres. Troveja Marx e a mim parece-me ouvir a combinação tonitruante dos meus amigos Pedro Bidarra e Henrique Monteiro, nas jantaradas do blog colectivo Escrever É Triste, uma espécie de Internacional literário-gastronómica com que tentamos imitar a Primeira Internacional, a que Marx deu gritos, gás e prosa.

E já volto às filhas. Marx, que devia na mercearia, perseguido por credores, incapaz de pagar a renda de casa, prendava as meninas, as suas Jenny, nome da mulher que deu a todas as filhas, com aulas de piano e de canto, desenho e línguas. Tê-las ido levado a debutar ao Baile da Ópera de Viena se lá vivesse e não na capitalista Londres que, magnânima, o recolheu, dando-lhe a liberdade que Berlim, Paris e Bruxelas lhe recusaram. Não conheço ninguém com tão apurado sentido de classe como Marx, nem em Cascais, e muito menos o meu amigo Pedro Norton, que é bem lá de casa, mas desenhou no peito, garrafais, as letras SLB, o que o autoriza, se for de tronco nu, a entrar na Festa do Avante, a única festa de debutantes que terá lugar em 2020.

Querem contradições? A casa das contradições é o peito de Marx: apreciem-lhe o gosto pelas boas garrafas de vinho do Porto que lhe mandava o seu amigo Engels; escutem esse estoirar a massa assim que um dedo dele aflora uma libra, que Engels lhe expedisse; espreitem o entalanço em que meteu Engels, obrigando-o a reconhecer a paternidade do filho que ele, Marx, fizera à governanta. Ora Engels, filho de um industrial, vivia com Mary Burns, operária, de incansável ardência irlandesa e ruiva – esta parte, sou eu a sonhar – e vivia em afrontosa maridança, o que fazia Marx e a sua condessa Jenny  revirarem os olhinhos. Pior, juntaram a irmã de Mary à festa, cobrindo aquela bela luta de classes com o véu francês que dá pelo nome de ménage à trois. Quando Mary morreu, de repente, aos 40 anos, Marx despachou o assunto com uma nota breve e descuidada, deixando o preconceito prevalecer sobre a gratidão que devia a Engels. Arrependeu-se e pediu-lhe perdão, depois.

E eis a fraqueza em que mais me identifico com Marx, quase meu kamba, se nos tivéssemos conhecido em Luanda: ele e eu queríamos enriquecer com dinheiro rápido e fácil. Em duas cartas, Marx jura ter jogado na Bolsa, em “fundos americanos e, em especial, em acções inglesas que estão a crescer como cogumelos este ano” tendo arrecadado 400 libras. A estes actos de guerra chama Marx “subtrair dinheiro ao inimigo”. É a minha luta marxista diária.

Crónica publicada no Jornal de Negócios

Feira do Pensamento e da Filosofia

Já sabem que eu sou só um eco da Guerra e Paz editores. Eles dizem e eu repito. Se estivesse nos vossos sapatos, ia a correr fazer estas compras. Que por acaso até podem e devem ser feitas de pés descalçados e em casa.

Eis o melhor da humanidade: o pensamento. E já acrescento: a liberdade de pensamento. Contra todas as velhas ditaduras, a de Salazar e a de Estaline, contra obscurantismos trump ou bolsonarianos, contra o insidioso e camuflado controle da ditadura chinesa o pensamento humano tem-se erguido e continuará a erguer-se, arrebatado, cristalino, inspirador.

O livro ama o pensamento. O livro nasceu, aliás, da aliança da linguagem e do pensamento. A Guerra e Paz orgulha-se de acolher no seu catálogo um vasto conjunto de títulos que nos oferecem rasgadas avenidas de liberdade, de reflexão, de interrogação sobre nós mesmos, sobre o sentido da vida e do universo. A começar por esta Apologia de Sócrates, em que Platão nos apresenta um filósofo, o seu mestre, que inaugurou essa ideia de que é dentro de nós mesmo que o processo de conhecimento se inicia e se estabelece que a razão é  só a razão nos pode guiar.

Juntámos esses livros e, neste tempo que devia ser o da Feira do Livro de Lisboa, criámos esta Feira do Pensamento e da Filosofia. Oferecemos-lhe 22 livros. Por preços de que nem vamos falar. E aos leitores cujas compras atinjam ou ultrapassem os 30€, ainda lhes oferecemos um livro gigantesco, de 30 por 30 cm, a edição de luxo de Fama e Segredo da História de Portugal, de Agustina Bessa Luís, os últimos exemplares da que foi a primeira edição publicada pela Guerra e Paz.

Temos nestes 22 títulos, livros de filosofia clássica, como a Breve História da Filosofia Moderna ou os Estudos sobre Heidegger, que teve o Prémio Pen Clube, mas temos também livros de filosofia política (Como Ser um ConservadorMemórias de Raymond Aron), filosofia da saúde (Testamento Vital), livros de intervenção social como os polémicos Destruir o Fascismo Islâmico e A Ideologia Afrocentrista ou Combates pela Verdade.

E queremos mesmo oferecer-lhe dois livros que ainda não chegaram às livrarias e estão em pré -compra. Um é o Porquê a Europa, Reflexões de um Sinólogo, um livro de amor à China e de veemente crítica ao actual poder, um livro que se interroga sobre as razões pelas quais a autonomia individual e a liberdade política foram sufocadas na cultural chinesa.

O outro, que só chegará ás livrarias a 26 de Junho, é Na Farmácia do Evaristo, de Fernando Pessoa, um texto quase desconhecido do grande público, um conto filosófico e político, na linha de O Banqueiro Anarquista, centrado numa tentativa de golpe de estado, que ocorreu em Lisboa, a de 18 de Abril de 1925. O que pensam as personagens de Pessoa de um golpe de estado? É legítima a insurreição de tropas que juraram fidelidade a um regime e à sua lei? Será toda a revolução uma traição, uma «aleivosia»? O que teria Fernando Pessoa escrito sobre o 25 de Abril se ainda estivesse vivo?

Esta é uma Feira para se pensar! Oferecemos 22 livros em que se encontra a serena alegria da descoberta. De Deus ao cérebro, num exame da consciência e da mente, dos cuidados do corpo à vertigem do suicídio, são livros que nos dizem e juram que o mundo é uma coisa estranha, afinal. De uma intensa beleza também.

Quatro Livros do Dia

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O mais remoto antecedente da Feira, em 1930. Ainda se chamava Semana do Livro. No Rossio

São coisas da minha Guerra e Paz, editores. Eu sou só um veículo de transmissão. Mas as três fotos das velhas Feiras do Livro são enternecedoras.

Feira do Livro, 1931, no Rossio

Se a vida tivesse seguido o seu curso previsível, hoje, Lisboa estaria a inaugurar a sua Feira do Livro. Debaixo deste calor perfeito, uma multidão despreocupada caminharia pelo Parque à procura, sempre à procura, uns de pechinchas, outros de obras-primas esquecidas, outros de pequenas jóias da edição.

De uma forma simbólica, neste tempo em que os sinais simbólicos a todos nos tocam, a Guerra e Paz editores quer juntar-se a essa memória da Feira do Livro de Lisboa e oferece, não só a Lisboa, mas a todos os portugueses, a possibilidade de levarem para casa um (ou todos) estes quatro Livros do Dia, com um desconto de 50%:

O Físico Prodigioso de Jorge Sena, na mais bela das edições, com 20 ilustrações originais de Mariana Viana;
A Tabacaria, de Álvaro de Campos, em cinco línguas, caixa de madeira, fotografias de Pedro Norton;
O Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, com prefácio de Vasco Graça Moura e ilustrações originais de Rogério Ribeiro;
Minha Mulher, a Solidão, uma perturbadora viagem pelas derivas eróticas de Fernando Pessoa e heterónimos.

Para quem anda à procura: são pechinchas, obras-primas e, sem falsa modéstia, são pequeninas jóias da edição. Para honrar e celebrar uma tradição que as fotos das Feiras do Livro dos anos 30, cedidas pelo Bruno Pacheco, testemunham e quase nos faz chorar. Viva a Feira, vivam estes quatro livros do dia.

A Feira, ainda no Rossio, em 1933

Dois cêntimos de infância

Gosto muito deste texto – também tenho direito a gostar mais de um ou outro dos meus textos. Neste, visito o que já é só memória, congelada recordação. Tudo, a casa, o bairro, as coisas e os lugares da minha infância, soprou-os o vento da História. Mesmo os rostos, amigos ou hostis, dispersou-os em diáspora e solidão um inclemente ciclone tropical. 

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Num ápice, o filme salta da eufórica multidão de um rodeo para o silêncio da vasta pradaria que uma desgarrada árvore não chega a interromper. Assim começa “Lusty Men”, de Nicholas Ray.

Robert Mitchum é um cow-boy que vive da espúria arte dos rodeos. Doma cavalos, laça bezerros e monta touros. Nos intervalos, mulheres. Nessa tarde que parecia ser de glória conhece os cornos do infortúnio. Entrou na arena de corpo vaidoso e resplandecente camisa branca. Quando, no final da curta cena, o voltamos a ver, o corpo cansado já arrasta uma perna coxa. É um aleijado num mundo que os nega e rejeita.

Um minuto de filme, o tempo da glória. Abruptamente, da multidão, dos altifalantes do estádio, das incontidas ovações, Nicholas Ray tira-nos e atira-nos para uma paisagem imensa e vazia. Um silêncio de poeira, grilos e cigarras, um consumido resto de Verão, seco e estéril. Vemos o mesmo Mitchum que é já outro Mitchum. Caminha em direcção a uma casa abandonada.

Há, entre o homem oscilante e a casa decrépita, uma antiga familiaridade. Os passos de Mitchum são os passos envergonhados de quem, vencido, regressa a casa. Um cadeado ferrugento fecha o portão da cerca, já Mitchum sobe os degraus do alpendre e empurra a porta que não cede. Este coxo Ulisses, que nem a desculpa de uma Penélope tem, volta-se e sabemos pelos admiráveis e brandos olhos dele o bem e a dor, a dor e o bem, que lhe faz contemplar a interminável pradaria.

Dá a volta à casa e, de repente, pára. Pára porque um fragmento, esplêndido fragmento do passado, lhe iluminou as memórias. Afasta com o pé um esquálido arbusto e, como só um miúdo sabe ser clandestino, rasteja para debaixo da estrutura em que assenta a casa. Lá por baixo, no sujo e mágico pó do tempo, as mãos tacteiam um tesouro: a revista de quadradinhos, a criancice de um revólver inútil, uma velha bolsa de tabaco onde em miúdo guardava moedas. Encontra dois cêntimos, tantos anos depois.

Dois cêntimos de infância podem ser a infância toda, intacta. Procuro no bolso os meus dois cêntimos e falo por mim: não tenho a sorte de Mitchum. Não voltarei a essa intacta infância. Não sujarei a camisa branca rastejando para baixo da casa dos meus pais. Não voltará às minhas mãos o trémulo revólver de um Natal angolano.

Criado, eu e um milhão de portugueses, na casa errada da História, não tenho lugar a que possa regressar e dizer, como Mitchum, “quase nada mudou na casa” ou “dormi neste quarto”. Fez 59 anos este 4 de Fevereiro de 2020: outros homens saíram debaixo do que nem eram casas para me ensinar que a minha casa não era a minha casa. Uma espessa camada de História, de gerações inocentes em busca da sua liberdade, sepultou os segredos que escondi na casa dos meus pais. Não se rasteja para tão fundo. Aos coxos da História não se dá o consolo de dois cêntimos de infância.

O horror do humano ao humano

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 Se o erotismo é uma forma de aristocracia, então Anatole Dauman é um príncipe da Renascença. Há três décadas entrevistei-o no Expresso, o jornal que durante mais décadas teve a paciência de me aturar, quatro em intermitência.

Dauman fora o prestigiado produtor de “Hiroshima, mon amour” de Alain Resnais, da perturbadora “Mouchette” de Robert Bresson, do sexuado “Masculin, Féminin” de Godard, das “Asas do Desejo” do sorumbático Wenders, para ir a jogo só com ases.

Conversámos no histórico Avenida Palace. Assentava-lhe bem a nostalgia do cenário. Vestia-se com uma elegância de faubourg Saint-Honoré, segurando um copo de vinho como se fosse um ceptro de imperador. Falava devagar, procurando as palavras por disciplinado amor à retórica e para se consolar com o som do que dizia. Pensei: há seres humanos que têm no narcisismo a maior virtude.

Parte eslavo, parte judeu, francês de cérebro, Dauman era sempre estrangeiro e no fio da navalha. Os filmes que produziu situam-se nos limites de amor e morte que, cúmplices, roçam já pelo crime.

Começo por “Nuit et Brouillard”, de Resnais. A noite e o nevoeiro desse filme, que faz da escuridão humana e das cinzas dela a sua matéria, leva-nos aos campos de concentração, dez anos depois do genocídio. Filma-se a paisagem bucólica de Auschwitz, a rasteira vegetação que cresce, o parvo sol distraindo-se por um fio de estrada: nem gritos, nem sangue, nem as cinzas de um osso ou da carne que já foi um braço, o ansioso seio do amor. Nada, ninguém, diria de forma mais horrenda a inutilidade do crime nazi do que a silenciosa amoralidade da natureza. Os carris sem uso, outrora de nocturno vómito, cães e medo, estão agora cobertos de ervas sopradas pela indolente brisa do Verão. Dizem que a Natureza tem horror ao vazio, mas o que ali se vê é o horror a um humano que a Natureza se obstina a apagar depressa.

Outro filme, de extremo horror do humano ao humano, foi o “Império dos Sentidos”. Dauman pediu ao realizador, o japonês Oshima, uma “tourada de amor”. Com sangue, vermelhíssimos quimonos, uma faca e uma estocada de morte.

Nessa história de ilimitada paixão entre uma criada de hotel e o dono dele, os amantes atacam o corpo um do outro como um exército um território ou o canibal a sua presa: atacam a boca, o sexo, a menstruação, o estrangulável pescoço. “O que sentes?” perguntam. E quando sussurram “não te posso ver sofrer!” é só para ir mais longe, buscar a inenarrável alegria da dor. Nesse filme, que tanto ensinou ao Arcebispo de Braga quando eu o programei na RTP 2, amor rima com morte, sexo com sangue.

Ascese, protestava Dauman, sentado na nobre decadência do Avenida Palace. A ascese de Van Gogh foi a de cortar a própria orelha. A dos amantes do “Império dos Sentidos” culmina na sufocada morte e no corte cerce desse apêndice que num homem é o ramo e os seus frutos.

Fazia amor por amor de fazer amor

 

 

Eberh
Isabelle de Isabelle e de cavaleiro árabe

É que é um cabrão de um deserto! Eis o que um, e logo outro dos meus amigos, me disse. Falavam do confinamento destes dias, dunas de clausura, deserto de quarto, sala, cozinha, batidíssimo pela fina areia doméstica. Ora, ninguém conheceu o deserto como o conheceu Isabelle Eberhardt.

Isabelle tinha a cara desses rapazinhos que a natureza pinta com beleza de menina. Aos dez anos –seis, talvez –, a paixão dessa menina suíça do século XIX já era o deserto. O tutor, talvez pai ilegítimo, ensinou-a a escrever: tanto lhe ensinou matemática, geografia e química, como a aritmética e a geometria dos poetas, de alguns filósofos.

Isabelle só escrevia sobre esse Sáara que nunca vira, mas que a obcecava. Tinha visões do Mahgreb como os nossos pastorinhos de Aljustrel, concelho de Fátima, tiveram visões da Senhora lá do céu. Isabelle lia tudo, correspondia-se com militares e políticos do deserto, escorpiões até, a camuflada víbora-cornuda do deserto argelino. Não se lhe conhecendo bonecas como a boneca sem uma perna que Agustina guardou da infância e um dia me mostrou na sua casa do Gólgota, desta menina sabemos que escreveu, em idade de bonecas, com pseudónimo tão macho com as calças e o casaco que vestia. Igual aos marinheiros de Cronstad, que o miserável escorpião chamado Trotsky assassinaria, fotografou-a de marinheiro vestida um fotógrafo, o mesmo que a levaria, aos vinte anos a finalmente conhecer o deserto. E logo o Sáara se ajoelhou, agarrado às pernas de Isabelle, numa doentia declaração de amor, que é a forma do deserto amar, como sabe quem leu com olhos de ler “O Principezinho”.

Para fúria e ranger de dentes da colónia francesa – e se eu sei como rangem os dentes coloniais – o tão bonito rapazinho que era esta menina de vinte anos vestiu-se de árabe, de homem árabe, albornoz e turbante, e casou com um deles, mergulhando no deserto, em caravanas que se roçavam pelo perigo, pela intriga, pelo golpe de um punhal, tanto ou mais aventureira do que o poeta Rimbaud, traficante de armas e escravos nos desertos etíopes. Aprendeu a língua, converteu-se ao Islão e adoptou o nome de Si Mahmoud Saadi: só como homem podia ter a liberdade das aventuras que vivia com homens, mesmo se fosse, depois, a mulher que nela se escondia a deitar-se e dormir com eles. E tudo os árabes lhe aceitaram, haxixe, álcool, a desregrada vida sexual – fazia amor por amor de fazer amor –, acolhendo-a mesmo na Qadiri, uma irmandade sufi, sem ter de passar pelos habituais ritos iniciáticos.

Temendo que Isabelle, de albornoz e turbante, fosse agora espia e agitadora, as autoridades coloniais francesas encomendaram a sua morte. Atacou-a, estava Janeiro de 1901 exangue, um árabe, com um sabre. Um golpe na cabeça, outro que quase lhe levou um braço, Isabelle sobreviveu. O árabe garantiu no tribunal, e não serei eu a desmenti-lo, que fora Deus a ordenar-lhe o ataque.

Isabelle vagabundeou então por oásis, desertos e montanhas, fez amizade com generais da Legião estrangeira e, rosto afável do colonialismo, quis aproximar militares e o povo árabe. Com malária, talvez sífilis, sem dentes, regressou ao casebre do marido, o árabe da sua vida, na noite em que uma enxurrada, tudo levando à frente, a levou também a ela, para vaguear nesse outro deserto que é a morte. Tinha 27 anos. Encontraram o seu corpo, de cavaleiro árabe vestido, enterrado na lama e nos destroços. Viveu em sete o que em cem anos ninguém vive: a absoluta solidão do deserto, um nomadismo que tem na morte a sua única certeza.

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Isabelle, toda maruja

Crónica publicada no Jornal de Negócios

Dar a volta por cima

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António das Mortes, Glauber Rocha

Vi “António das Mortes” no cinema Flamingo, no Lobito. A autoria é do sincrético Glauber Rocha, tão matador de cangaceiros que fez um filme para matar Corisco, outro para matar Coirana. Mal sabia, nesse ano de independência, quem era o brasileiro que filmava sangue como só Godard filmou sangue e que encostava cada cena a canções que, ali onde elas cantavam, qualquer um chorava.

“António das Mortes”, também chamado “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, tinha muitas canções. Uma, “Dar a Volta Por Cima”, é inesquecível. Se algum dia tiver de ajudar alguém que precise de ajuda mas não queira que lhe dêem a mão, estenda-lhe essa canção. Parece críptico: mas basta ouvir os versos falando de um homem de moral que morde a poeira do chão e percebe-se logo.

António é jagunço, assassino: a soldo de coronéis para matar cangaceiros descomandados. O Brasil do passado, talvez, e Deus queira que não, o Brasil do futuro. Como o jagunço, também o cangaceiro pode ser um criminoso a mando. Só que, quando deixa de servir um senhor, o cangaceiro continua criminoso e converte-se num telúrico espírito livre. O cangaceiro brota do seco Nordeste como o mais obstinado dos arbustos. O crime dele agarra-se ao sertão, à crespa paisagem. A sede dele sabe onde encontrar a sobrante, rara, gota de água. O cangaceiro é gémeo de uma Natureza miserável e inóspita. Comungam a escassez, o desapossamento.

Uma sebenta capa cinzenta a cobrir-lhe o corpo vasto, espingarda assassina colada à mão, António, que em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” já matara Corisco, herdeiro de Lampião o príncipe dos cangaceiros, volta agora e volta para matar Coirana, o último rebelde. Porque lhe pagam. É um jagunço: serve os que têm, matando os que nada têm. É esse o maniqueísmo antropofágico do filme de Glauber. Como num western cruel de Peckinpah. Com mais música, uma música inocente e impiedosa, camiliana. De cordel.

Quando a voz do sambista, que dava pelo estranho nome de Noite Ilustrada, canta “dar a volta por cima que eu dei, quero ver quem dava”, vemos António na sua estrada de Damasco, no meio de camiões de luz, a sofrer a conversão e a mudar de campo. Os negócios de política passam a ser com os outros, os dele só com Deus, o Deus místico dos que nada têm.

Na única, brevíssima conversa que tive com Glauber devia ter-lhe perguntado porque é que a lágrima que no cinema do Lobito juro ter visto António chorar, nunca mais a encontrei ao rever o filme. Glauber ligara do hospital para a Cinemateca, a dias de morrer tão jovem. Atendi-o por acidente e ouvi-lhe mais a nítida respiração arfante do que a longínqua voz. Não o podia cansar.

Ainda hoje procuro a lágrima que António das Mortes chorou só para mim num cinema de Angola. Uma lágrima de dois lados. De um lado penitência, do outro, esperança.

Cinemateca: três doces sobressaltos

A Cinemateca Portuguesa abriu uma diferente sala de projecção. Desfilam palavras e palavras que falam de imagens. O Nuno Sena convidou-me e eu, que à Cinemateca nada recuso, juntei textos e fiz esta colagem. Parece quase novinha em folha.

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Cinemateca: o meu jantar de despedida, com o Cintra Ferreira nos seus sonhos, o João Bénard e eu em ameno jogo de mãos, o José Manuel Costa virado a esquerda

No princípio não era só o Verbo. Era o Verbo e era a Lata em que se enrolava, como a coleante víbora do paraíso, o nitrato ou acetato do filme. Naquele tempo, em verdade, verdade vos digo, a Lata era o Pão de que se alimentavam as nossas descuidadas bocas. No princípio, nesse verdadeiro Génesis, que foi o nascimento da Cinemateca Portuguesa – rabinato e papado que me perdoem –, a Lata, a sagrada Lata fazia o papel do Pai Celestial que provê aos biquinhos das aves do céu e faz crescer os lírios do campo. A Lata era o Verbo, a sala de cinema o seu templo.

Lembro-me de ter ouvido, não sei se há dias, se há vinte anos, uma professora com um decote deleuziano a falar da sala de cinema, espaço e tempo e coisa e tal. O decote cerzia a sala toda em rizomas, suspensão e movimento. Deixo-me morrer devagarinho nesse decote desconstrutivista e, já de olhos fechados, recordo três doces sobressaltos épicos da minha pequena vida de programador de cinemateca.

Um espectro que assombra a humanidade

De repente, com a boca a saber-me a madalenas, lembro-me do Grande Auditório da Gulbenkian na noite em que, mil e duzentas pessoas a transbordar das cadeiras, balcão e plateia em overbooking, o João Bénard subiu ao palco para apresentar, em sessão dupla, o Nosferatu de Murnau e o Nosferatu de Herzog.

Nosferatu
Nosferatus, o de Herzog, à esquerda; o de Murnau, à direita

Era a Cinemateca transplantada para a Gulbenkian e parecia o costume, uma sala contente de o ver e ouvir, à espera de imagens e de movimento. Veio o escuro e veio a avassaladora mudez do filme de Murnau, num tempo em que as cinematecas ainda projectavam filmes mudos sem música. A surpresa do total silêncio para uma plateia sem hábitos desse cinema, sem o hábito dos gestos desmesurados de Max Schreck o mais nosferatu, o mais vampiro que um actor algum dia se deixou filmar, fez a sala tossir, pigarrear.

Normalmente, abafados pela banda sonora, no cinema não nos ouvimos. Ali, a sala ouvia-se: mexer o rabo na cadeira ouvia-se, engolir ouvia-se, bater as pestanas também. E a sala, nervosa de se ouvir, frente a um ecrã de sombras, medo e silêncio, começou a rir-se. Foram os primeiros vinte minutos de cinema mudo mais memoráveis, caóticos e irrespeitosos de que me lembro: até que o filme de Murnau, sinfonia silenciosa, raptou os risos, as gargantas e os catarros, os rabos inquietos e, dos anos 80 em que estavam, levou os espectadores para os anos 20.

Nada se compara à experiência que é o espectáculo de uma sala a render-se a um filme, uma sala a descobrir o sublime em gestos que, sem a confiança da entrega, seriam ridículos, mil e duzentas pessoas desconhecidas, odiosamente diferentes, com o sangue gelado pela nocturna silhueta de um vampiro que só pode ser vencido pela gloriosa luz da aurora. Uma sala e é a humanidade toda junta, irmanada, no canto escuro, esconjurando os mais assombrosos espectros.

Tinham mães que os amavam

E saio da Gulbenkian. Chama-me à sala da Cinemateca, Luís de Pina, que por ser dela director era meu director também. Chego e vejo que a calva e resplandecente cabeça de Luís de Pina paira sobre um tormentoso mar punk.

Já voltaremos à sua cabeça. Antes, deixo-vos com uma pérola de filosofia social: desiludam-se os proactivos, não cria comoções sociais quem quer e, às vezes, nem quem pode.

O João Bénard concebera um megalómano Ciclo do Cinema Musical. Sonhávamos com plateias a cantar e dançar o Singin’ in the Rain. Entre as obras-primas escolhidas para ovação e aclamação, o João deixou escorregar um filme mais recente, piscadela de olho a uma minoria juvenil, que se vestia de negro e primava pelo brilho metálico.

The Great Rock ‘n’ Roll Swindle
The Great Rock ‘n’ Roll Swindle (Julien Temple, 1980)

Era o The Great Rock ‘n’ Roll Swindle e foi programado para a então única sala da Barata Salgueiro, de uns compostinhos 250 lugares. O que aconteceu foi tudo menos composto. O filme era o dos alucinantes Sex Pistols de que faziam parte o malcriadíssimo e mal-cheiroso Johnny Rotten e o negramente lendário Sid Vicious.

De repente, duas da tarde no arabizante palacete da Cinemateca, da rua emergem vagas também malcriadíssimas e mal-cheirosas. Onda a onda, iam-se acastelando miúdos e miúdas de furiosos cabelos espetados, farpas negras ou de cores néon, mil brincos a rasgar orelhas. Vestiam de negro, um negro que de luto nada tinha.

Comiam pastéis de bacalhau, arroz que a mãe de algum fizera (tinham mães que os amavam, claro), e bebiam litrosas de tinto. Punks. Estávamos, até à rua, inundados de punks. Já tínhamos visto meia-dúzia. Descobríamos que eram um exército e não cabiam no cinema.

A Cinemateca não tinha telhados de vidros, mas eram de vidro as portas da sala. A pressão das botas negras da infantaria punk fez-se sentir. O nosso porteiro teria pouco mais de metro e meio. A ele podia eu gabar-me, mas não muito, da minha altura; voluntariei-me para parlamentar à massa ululante. Observaram-me com curiosidade entomológica: um coro de arrotos e outros flatos fez-me recuar.

Com o seu amável corpanzil de Robert Mitchum, surgiu o Luís de Pina. Olhar e palavras doces, apelou à compreensão ciclónica dos punks portugueses. A um ligeiro movimento de alívio e aparente conciliação seguiram-se ultrajantes manifestações de alegria que compreendiam homéricas cuspidelas e – volto a ver aqui a calva cabeça – uma escura bota a cruzar os ares, visando o meu director. Não sei o que é que eles respiravam, mas os vidros ficaram aflitos e embaciados e o da bilheteira estalou com estrondo. A alegria punk é assim, física, corporal, sem dualismos cartesianos: o corpo é a alma. Chegou a polícia, o sossego do cassetete.

As primeiras imagens do filme mandaram a sala ao chão. O que lá dentro se berrou, lá dentro ficará para sempre, e o triunfo da escatologia que se seguiu teve de ser lavado durante uma semana. Sim, era o público entregar-se, espontâneo, a um filme! Não há doutor nem engenheiro social que invente uma comoção daquelas.

Ave-maria cheia de graça

E volto ao decote deleuziano. Sai dele, como a língua do Espírito Santo, Jean-Luc Godard, exemplo supremo da alta costura francesa. Filmou, da Virgem Maria, uma estranha anunciação. Chamou-lhe Je vous Salue, Marie e não há, no Portugal de 1985, distribuidor que lhe pegue. Pegou-lhe a Cinemateca que o está já a exibir. Entremos na sala.

Je Vous Salue, Marie
Je Vous Salue, Marie (Jean-Luc Godard, 1985)

Entrámos e veja-se: o caldo entornou-se. Um jovem católico virou-se para o chefe de polícia e disse-lhe em tom de desgarrada: “Gostava que fizessem isso à sua mãe?” Ó meu amigo, palavras não eram ditas e já o até então polidíssimo agente lhe enfiava uma gravata que, vi eu, fez o ar dos pulmões do jovem bater no tecto da sala.

Tossia ele, tossia toda a velha sala da Cinemateca. Krus Abecassis, lendário presidente da Câmara, prometera escaqueirar tudo se a Cinemateca se atrevesse a exibir o filme. Fomos perguntar ao João Bénard, que era quem mandava em nós, se nos atrevíamos. O João foi claro: “Nessas coisas sou uma senhora séria. Ora, como sabem, senhora séria não tem ouvidos.”

Preparámo-nos para o combate. Se de algum lado estava, a Graça estava do nosso lado. João Bénard era de um catolicismo doce que lhe impregnou o olhar e a escrita toda a vida, logo a ele que, tanto mudando, em nada de essencial algum dia mudou. Sentíamo-nos, por isso, legitimados para passar um filme que mostrava o desejo de gravidez e o bendito ventre cujo fruto talvez fosse Jesus.

Éramos democratas, mas não éramos parvos: armou-se um dispositivo de Aljubarrota. Vigilância da PSP e dois dos nossos projeccionistas, o Grave e o Gigante, tipos que combinavam volume de boxeur com altura de defesa-central, a filtrar entradas no rendilhado portão da rua. Vendiam-se dois bilhetes por pessoa, o que frustrou as encantadoras virgens que quiseram comprar a lotação do cinema.

A sala era um ovo cheio. Gente no chão e no ar uma dúbia excitação, misto de primeira comunhão e noite de núpcias. Fez-se escuro: a volúpia das imagens aflorou a tela e os jovens católicos pularam em ave-marias e salve-rainhas, subindo ao palco a esbracejar contra as sombras blasfemas.

As luzes reacenderam-se iluminando um belo e poético caos. Enquanto nós gritávamos aos jovens Savonarolas que Je vous salue, Marie era a apologia da Imaculada Conceição, um filme sobre o mistério da mulher que, entre tormento e dúvida, aceita uma violenta graça e sobre o homem, José, que se torce de ciúmes, mas por amor confia, os velhos cineclubistas, com danada nostalgia comunista, apontavam à polícia os insurrectos: “É aquele… e aquele.” Era um mundo às avessas: velhos esquerdistas bufavam à polícia e um miúdo, com vozinha de copo de leite, gritava-lhes: “Pides.”

Num arroubo místico, um dos rapazes desmaiou. Ajoelhou-se ao lado dele uma menina de calças de xadrez. Era bonita e parecia que, segurando-lhe a mão, rezava. Com vontade de rezar com ela, ainda pensei: “Vês, meu anjo, como ser virgem é estar disponível!”

Saberia ela que, assim, na sua ajoelhada angústia, rimava com a imagem de Myriem Roussel no filme apóstata de Godard, repetindo prosaica e séculos depois, o poético mistério mariano?