os pântanos do Lousiana

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Estes dois dão-se intei­ros e físi­cos ao manifesto

True Detec­tive foi a bon­dade que a tele­vi­são ame­ri­cana nos deu no já remoto 2014. Vi os oito epi­só­dios segui­dos em três dias. Matthew McCo­naughey e Woody Har­rel­son são pro­di­gi­o­sos. Nic Piz­zo­latto escreveu-lhes falas assom­bro­sas de boas, mas eles — a cara e o olhar fecha­dos de McCo­naughey, o corpo a abandalhar-se de Har­rel­son — dão-se intei­ros e físi­cos ao mani­festo. São dois polí­cias a ten­tar des­co­brir um serial kil­ler. Mas num Lou­si­ana de ritu­ais bizar­ros, natu­reza sinis­tra, escu­ri­dão nii­lista, nos pân­ta­nos do Lou­si­ana um crime não é só um crime, um serial kil­ler não é só um serial kil­ler.

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Uma via­gem impi­e­dosa, uma escu­ri­dão niilista

Sim, é uma via­gem impi­e­dosa ao mais fundo da pobreza e degra­da­ção huma­nas, mas com uma, diga­mos, “fór­mula” admi­rá­vel, muito bem cal­cu­lada: é uma via­gem de 17 anos para se des­co­brir um crime que são mui­tos cri­mes, uma via­gem que corre em duas linhas para­le­las, a linha de um pre­sente cínico, em que os dois detec­ti­ves brancos são sis­te­ma­ti­ca­mente inter­ro­ga­dos por dois ines­cru­tá­veis detec­ti­ves negros, e a linha de um pas­sado activo, de inves­ti­ga­ção enér­gica, hard-boiled, cheia de surpresas.

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Dois ines­cru­tá­veis interrogadores

True Detec­tive é uma série que fala bem, com o bri­lho de um dema­gogo ate­ni­ense (porra, estou a falar de Demós­te­nes). True Detec­tive é uma série que filma quase tão bem como fala, com um ner­vo­zi­nho e plano-sequência que fazem sus­pi­rar um Scor­sese, if you know what I mean.

True Detec­tive canta tão bem que me ale­gra: não é só a can­ção do gené­rico que toda gente já canta nos auto­car­ros e no metro de Lis­boa (estão a dizer-me que não can­tam, que não ouvi­ram? Devem estar a brin­car comigo!), são tam­bém as outras can­ções da banda sonora. Por exem­plo, aqui em baixo esta “Train Song” (vêem como se canta no metro e em toda a linha de Cas­cais!) que fecha o segundo epi­só­dio, ou ali em cima, aquele “Angry River” que me inunda o vazio que não con­fesso, a fechar o oitavo e último epi­só­dio desta pri­meira temporada, que devia ter sido a última. Terem depois feito uma sem Matthew e sem Woody, mais valia que tivessem ficado quietos.

Um slow de sábado à noite

 

Eu tive os meus anos Steppenwolf. Eram – serão sempre – os Steppenwolf. Tinham o som único, ácido, de The Pusher ou Born To Be Wild. Mas podiam ser estranhamente líricos como é aqui o caso. Eram cantados pela voz bluish de John Kay, magnífica, cheia, que de vez em quando se chegava à boca da noite e nos cantava assim, arrastando-nos e arrastando-me para slows de oh, meu Deus, é que nem me quero lembrar.

Ardíamos tão devagar nos slows de sábado à noite.

Corrina, Corrina, em boa verdade, não era uma canção deles. Roubaram-na a Bob Dylan. Mas, de a cantarem como a cantaram, é na deles que o meu pobre corpo se lembra e ressuscita.

Corrina, Corrina,
Gal, where you been so long?
Corrina, Corrina,
Gal, where you been so long?
I been worr’in’ ’bout you, baby,
Baby, please come home.

I got a bird that whistles,
I got a bird that sings.
I got a bird that whistles,
I got a bird that sings.
But I ain’ a-got Corrina,
Life don’t mean a thing.
Corrina, Corrina,
Gal, you’re on my mind.
Corrina, Corrina,
Gal, you’re on my mind.
I’m a-thinkin’ ’bout you, baby,
I just can’t keep from crying.

Cheirei, inalei, ou eu não fosse já eu

Ah, bom Deus, a nostalgia que se me atravessou. Foi há uns quatro ou cinco anos, estava a ver o Tree of Life, do Malick, e não é que no Texas, na small town onde também o filme se passa, irrompe um magnífica carro a despejar nas ruas o DDT da minha infância. Ah, Malick de um raio, que subiste cem metros na minha já tão alta consideração. Explico tudo já a seguir. 

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Eis o bicho que deitava fumo

Eu já dizia eu. E cor­ria como o Man­tor­ras, essa nos­tál­gica gazela de Catete. Eu cor­ria, ruas de Luanda, entre a Fer­nando Pes­soa, a Alberto Cor­reia e a Almeida Gar­rett. Às vezes, a per­der o fôlego, até ao Largo Cesá­rio Verde. A topo­ní­mia é mais men­tirosa do que a lua e esses nomes euro­peus eram nomes de ruas de São Paulo da Assump­ção de Loanda, cidade afri­cana que a esqua­dra bra­si­leira de Sal­vador Cor­rêa de Sá e Bene­v­ides reti­rou à mão pirata e holan­desa para a devol­ver à restau­rada nacional­i­dade por­tuguesa, quando Angola não tinha, ou se jul­gava que não tinha, nenhuma.

Quando o eu que já era eu cor­ria, eram tam­bém out­ros os fumos do tempo, mas ainda não eram esses os que me faziam cor­rer. Não obs­tante, o já meu peque­nino eu era mesmo pelo fumo que cor­ria. Por nuvens dele como vão ver.

Aqui há atra­sado, descobriram-se 750 novos insec­tos em todo o mundo. Julgo que, naque­les ale­gres dias dos anos 60, se imag­i­nava exi­s­tirem alguns 4 mil­hões de espé­cies. É, para qual­quer espí­rito decente, uma obs­cena e múlti­pla ame­aça. Mos­cas e mos­qui­tos eram sinón­imo de doen­ças, febres altas e palúdi­cas, malá­ria, tifo, o diabo e delí­rios a qua­tro e a mato. Qua­tro mil­hões de espé­cies é muitís­sima espé­cie e, se não se podiam exter­mi­nar todas, era legí­timo exter­mi­nar algu­mas. Em Luanda, para epi­fâ­nica ale­gria do meu tão peque­nino eu, exterminava-se a mos­qui­tada com DDT. O DDT, acho que nem seria pre­ciso dizê-lo, é o napalm dos insec­tos, o cheiro a vitó­ria das man­hãs da minha infância.

O DDT vinha num carro que entrava pelos dias de sol incan­des­cente, sem Valquí­rias impe­ri­ais nos alti­falantes. Um carro só, com bizarro depó­sito atrás, anun­ci­ado pelos gri­tos das sen­tinelas do bairro que nós éra­mos: “Carro do fumo, carro do fumo!” E o DDT, indis­cu­tido pes­ti­cida, saía espesso, em nuvens glo­riosas, imac­u­ladas. Enquanto as mães, já arma­das em classe média, cor­riam a fechar as chei­ro­sas casas de ale­crim e alfa­zema, nós, mais lum­pen do que peque­nino bur­gue­ses, tirá­va­mos as cami­sas e mer­gul­há­va­mos naquele algo­dão doce. Bebía­mos DDT, respirá­va­mos DDT. O Dicloro-Difenil-Tricloroetano entrava-nos pelos poros, nari­nas, robus­tos pul­mões, enquanto à nossa volta os inimi­gos, não sei quan­tas espé­cies de insec­tos voa­do­res, ras­te­jan­tes, tom­ba­vam sem remis­são. Mor­riam. Massacre.

A vitó­ria era certa. Tería­mos dado cabo deles, da mosca tsé-tsé, da barata repe­lente, do mos­quito rai­voso, se não tives­sem, claro, proi­bido o DDT, o cloroben­zeno que valeu o Pré­mio Nobel da Med­i­c­ina ao suiço que lhe desco­briu as letais qualidades.

Cada mês que passa, inven­tariam-se (ups!) 750 novos insec­tos. Calcula-se que daqui a 445 anos esteja fechada e rig­orosa­mente selada a cat­a­lo­gação de todos as espé­cies inven­tadas ou por inven­tar. Serão vários mil milhões de espé­cies e domi­na­rão o mundo. Proi­bido o DDT, nada pode deter o tri­unfo sibi­lino dos artró­po­des. Mas nem o que a con­venção de Esto­colmo proi­biu, nem tão pouco 445 anos de insen­sata cat­a­lo­gação não insec­ti­cida, me podem negar ou rou­bar o que o “eu que já era eu” exper­i­men­tou na Luanda de guer­ras pes­ti­ci­das: eu ina­lei, eu chei­rei! E tinha o suave e doce cheiro da vitória.

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A festa

A porta do paraíso

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Se aos 20 anos, no escuro do cinema, quisesse deslizar a mão acima do joelho, por baixo da tua saia, não te levaria a ver, de Terrence Malick, “Tree of Life”.

É um filme complicado e simples. Filma a infância de três miúdos, pai e mãe, no Texas dos anos 50. Filma-lhes o medo e a alegria, vida e morte. Nos filmes habituámo-nos a que a vida faça sentido. Neste, o sentido das personagens não cabe nem se resolve na vida deles. Mas é um filme belo e simples como a mão sobre a redonda doçura de um joelho.

“Tree of Life” tem sede e fome de sentido: sede cósmica; fome metafísica. Não lhe basta filmar uma família. Filma – como o Kubrick de “2001”, dirão e mentem – a origem delirante de céu e terra, a luz bruxuleante, quase nada, onde começámos (que é o nada? o que é começar?) até à obscena explosão de vida a que chamamos natureza. É um turbilhão exaltante, mas já não é tão simples: tiro a mão, retrais o joelho.

Repito: a matéria de “Tree of Life” é o sentido. A de “Apocalypse Now”, lembram-se, era o rio; a de “Eyes Wide Shut” a impotência. Malick filma o infilmável: o sentido da vida, da dor, da felicidade. Aceitemos a ilusão de que o centro do filme é Jack, o irmão mais velho. Jack diz palavras terríveis à ausência de sentido. Trata-a por Tu maiúsculo e, quando procura a graça, sufocado de fé como Job na Bíblia, diz-lhe “Quem somos nós para Ti?” Mas o que deveria perguntar é “Sem Ti, o que é que nós somos para nós?” O silêncio desse invisível Tu, Deus talvez, é pavoroso e o vazio deste “pedaço” de filme é de uma espantada complicação.

“Tree of Life” não conta uma história. Malick começa a filmar as suas personagens onde “East of Eden” ou “Rebel Without a Cause” as deixaram nos anos 50. Elia Kazan e Nicholas Ray já tinham contado as histórias de amor e ódio ao pai, desejo da mãe, mortais ciúmes de um irmão. Malick filma sobre as ruínas e fragmentos desses “clássicos”: exibe o cruel tiro dum irmão no dedo doutro irmão, mostra o nariz do rapaz que cheira e acaricia e lingerie da vizinha. Filma o perplexo Sean Penn como se o presente dele fosse uma mão e o passado lhe escorresse pelos dedos entreabertos. Presente que o passado infecta de sentido.

“Tree of Life” precisa da cara amargurada do pretensioso Sean Penn para nela desaguarem as cenas familiares dos anos 50, troços de home movie em que até a felicidade é filmada com a aura da infelicidade. Mas glória de “Tree of Life” é a cara de Brad Pitt, pasmosa criação de pai abraâmico, e é a cara de Hunter McCraken, o miúdo que, no belíssimo desenho da infância de Jack, desenha a nostalgia da inocência e a patética vontade do paraíso. Ou não fosse a porta do cinema a porta do paraíso a que se acolhe uma mão, a lisa pele de um joelho.

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Keith Richards

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Têm de ler “Life”, a biografia do Keith Richards. Emba­lei, ina­lei e o diabo a qua­tro, quando de repente o gajo, meu kota, me diz que foi o avô Gus a dar-lhe as dicas para o ensi­nar a tocar gui­tarra. Tudo numa única lição: tocas a Mala­gueña e és músico, não tocas e vai-te des­pir que a gente já te atende.

Ainda pen­sei que era uma bou­tade, mas bem mais à frente no livro, percebe-se que o Keith sendo mais de se des­pir do que de fran­ce­sis­mos, volta, ves­ti­di­nho e ao pé do ado­rado avô, a servir-se da mesma refe­rên­cia: tudo o que há para se apren­der está na puta desta can­ção. Um puto inglês dos anos 50 apren­deu a tocar gui­tarra com uma can­tiga mexi­cana a suar nos­tal­gia de Málaga por tudo o que é poros. E não foi o Ins­ti­tuto Cer­van­tes nem o raio que o man­dou apren­der assim. Foi o saxó­nico ou lá o que é avô dele: por gos­tar e saber do que gostava.

Isto não vai lá com sub­sí­dios nem com cara feia, isto vai lá com amor e com gajos bons.

Mãe dele é gato

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São cam­peões. Cam­peões da ino­va­ção, da rein­ven­ção, do empre­en­de­do­rismo. Não há pai para miú­dos des­tes. E quem faça fine bou­che a jogar sno­o­ker neste tabu­leiro lim­pi­nho, olha, mãe dele é gato, como se dizia na minha rua Alberto Correia, na Vila Alice, cidade de São Paulo da Assumpção de Loanda.
Áka, cabeça desses mininos, então, nos deixa buelos!

confissões de miúdo

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Naquele tempo, o meu tempo, quando um tipo era alei­jado jogava à baliza. Era um tempo em que, estando por inven­tar a pala­vra defi­ci­ente, ainda se dizia alei­jado. O medo da poli­o­mi­e­lite pai­rava no ar. Phi­lip Roth, no seu “Nemé­sis”, mos­tra esse inde­ci­frá­vel ini­migo. Não se sabia donde vinha, nem como che­gava.

A polio podia, dizia-se, come­çar na praia ou num pic­nic, com um pico, um prego fer­ru­gento, um espi­nho enve­ne­nado que se espe­tasse no cal­ca­nhar. Era o que, mal lidos, diziam os páli­dos Reader’s Digest que nos che­ga­vam com atraso. Não tínha­mos sequer noção da morte: tínha­mos era medo de ficar para­lí­ti­cos. E de ter de jogar à baliza.

 

Tempo e silêncio

Pode até dizer-se que pes­soas como ela não mor­rem. Mas morrem. Ou viajam: para a cidade das noi­tes ven­to­sas. A cidade onde já não se movem os pon­tei­ros do reló­gio, “a cham­ber deaf to noise, and blind to light.”

No dia em que Cesá­ria Évora mor­reu, a 17 de Dezembro de 2011, foi esta a can­ção que eu quis ouvir, a canção dela de que mais gosto: “tempo y silen­cio”, que ela can­tou um dia, e não vol­tará a can­tar, com Pedro Guerra.

Há dias, o Luís Osório lançou-me o repto – queria saber que canção era a minha canção.  É esta. E lá está no mural fb dele.