Onze mapas para o tesouro

os meus livros de Maio
são onze mapas para decifrar (ou baralhar) o mundo

Tenho Jorge de Sena numa ponta, Júlio Pomar na outra. É o que vejo quando olho para a imagem com os meus onze livros de Maio: de uma a outra ponta. Acho que vamos precisar de um Atlas para ir de uma ponta a outra, um mapa para os demónios de Sena, para os requintes de beleza e malvadez das suas Novas Andanças do Demónio, outro mapa para entrar no labirinto de Júlio Pomar, Depois do Novo Realismo, nesse labirinto pelo qual deambula, com rigor crítico e ardor polémico, outro Pomar, o filho Alexandre.

E sim, tenho um Atlas. Tenho vontade de rir e chorar ao abrir o Atlas Histórico da Escrita. É o primeiro Atlas português da colecção que é deles. Este Atlas tem mapas, tem pedras, tem tábuas, argila, papiro e pergaminho, deslumbra-nos com a invenção da escrita. Foi o linguista Marco Neves que o escreveu e é – oh, meu Deus, estou mesmo contente! – um orgulho ter um Atlas, pensado, concebido, em Portugal. Ora aí está o meu patriotismo em ponta.

Peço a Eduardo Lourenço que me acalme. Em edição de capa dura, com fotos dele menino e moço, Eduardo Lourenço: A História É a Suprema Ficção, é o livro que lhe dá a palavra, numa entrevista armada e armadilhada por José Jorge Letria, com texto final de Mário Soares, homenagem no centenário do nascimento do escritor, em co-edição com a SPA, na mais antiga e muito querida parceria da Guerra e Paz, o fio da memória.

Que menino, do bibe aos calções, não precisa de mapa para ir à escola? Jorge Rio Cardoso, especialista na área da educação, dá esse mapa aos pais em Como Fazer dos Nossos Filhos Alunos de Sucesso, parceria (outra, que a Guerra e Paz não é orgulhosamente só) com a Cofina. Quem não tem mapa nem Atlas é Roz Parker, a antiga polícia, a quem a romancista Alexandra Benedict pede que descubra o enigma de Crime no Expresso de Natal: são 18 passageiros, 7 paragens, um assassino em série, com vendas para cima de um milhão de exemplares, dos Estados Unidos a Itália, passando pelo Reino Unido, França, Finlândia e mais dez países: é ver no mapa! E o mapa das revoluções de uma Europa em fogo, no fim do século XIX, está todo, ponto por ponto, no Manifesto Comunista, de Marx e Engels, que agora reedito, com um excitado texto meu, embirrento, a acompanhar.

Os clássicos, e agora deixem-me cantar, é que já não precisam de mapa. E Dizê-lo Cantando a Toda a Gente, junta todos os sonetos de Florbela Espanca, tal qual Joseph Conrad, sem mapas e olhos de marinheiro fechados, nos guia pelos oceanos da sua vida em O Espelho do Mar, traduzido pela primeira vez em Portugal: é autobiográfico, mas é ainda mais romance do que os seus romances. São os nossos Clássicos Guerra e Paz que fazem fronteira com a nossa Colecção de Biografias, agora enriquecida pela que o Nobel da Literatura, Romain Rolland, escreveu em A Vida de Tolstói. E sim, um dia teremos o Guerra e Paz dele publicado na Guerra e Paz nossa! Prometo.

E só me falta falar de guerra: ou estive eu a falar de outra coisa? E a guerra sim, precisa de mapas e mais mapas, que nem num atlas cabem. O alemão Ernst Jünger escreveu Tempestades de Aço, visão assombrada e arrebatada da violência na guerra. Jünger esteve mergulhado nas trincheiras da I Grande Guerra e a sua prosa transmite-nos, com estrondo e fúria, esse choque aterrador. Obra-prima, traduzida pela primeira vez em Portugal, é o sétimo volume da colecção Os Livros Não se Rendem, cujos exemplares, com o apoio da Fundação Manuel António da Mota e da Mota Gestão e Participações, chegam todos os meses a cada uma das 244 bibliotecas da rede nacional de bibliotecas públicas.

São, de ponta a ponta, os meus onze livros de Maio.

Manuel S. Fonseca, editor

Em Coimbra, com Carlos Fiolhais

É já na 5.ª feira. Quando baterem as 6 da tarde, na livraria Almedina, junto ao estádio cidade de Coimbra. Convido todos os meus amigos de Coimbra e arredores: venham à conversa. Eu não tenho grande coisa a dizer, mas só para ouvirmos Carlos Fiolhais já vai valer (muito) a pena. O tema é o meu livro: ou seja, vamos falar de chimpanzés que bebem coca-colas, do coração de um musseque em polvorosa, de canções do grande diá Kimuezo, de caranguejos em fuga no Morro dos Veados. Ai ué, bora lá, evocar a grande e eterna África.

O amigo morto

Em Tróia. Pedro Bandeira Freire, em pé, o Luís de Pina de gravata. Também estão, a Antónia, de óculos escuros, ladeado por mim e pelo Zé Navarro. O Pedro está a tapar o Zé Matos-Cruz.

Uma coisa é o amigo vivo, outra coisa, o amigo morto. O amigo vivo está aí, mas mesmo que não esteja hoje, estará amanhã. O diabo é o amigo morto. Há quantos anos não ouço a alegria frívola do amigo morto? Pior, há quantos anos não grito ao amigo morto a minha própria alegria fútil?

Por falar em gritar, o meu amigo Manuel Cintra Ferreira, crítico de cinema no Expresso e no Público, meu companheiro na Cinemateca e na SIC, era surdíssimo, de uma surdez implacável, mas fina. Ouvia tudo o que eu lhe dizia, lendo-me as palavras nos lábios: elas ainda não tinham saído e já ele as tinha ouvido. Contou-me, se calhar num dos Natais em que ceou em minha casa, que no Verão Quente da revolução, os pê cês o queriam doutrinar, roubando-o à UDP a que se acomodara. Era em Campo de Ourique, e vinham à Tentadora, a querer revelar-lhe a vermelhíssima e soviética verdade. O Manel usava um aparelho. Mas à mesa da Tentadora, mal os via aparecer, desligava logo o “casa sonatone”. Acenando com a cabeça, viajava pelo seu mundo cinéfilo e mágico enquanto “eles” peroravam. Quando se iam embora, despedia-os com um “adeus, vou pensar, camaradas”. Ele, que não tinha feito outra coisa, perante aquelas cabeças falantes, sem som.

E do Luís de Pina, que saudades da alegria frívola desse director da Cinemateca. Lembro-me: tinha uma namorada descontraída e despreconceituosa, que, em vez do “até à próxima”, se despedia de nós, desengraçados intelectuais fundamentalistas, com um escandaloso e nortenho “até à próstata”.  O Luís era do Boavista e tinha um amigo fanático que ia até aos treinos. Um dia, num jogo da Taça, um jogador da 3.ª divisão marcou dois golos ao Boavista. Logo o contrataram. Era uma nulidade. Nos treinos, o amigo fanático corria na bancada atrás do jogador falhado, a gritar, “anda, monte, anda monte”. O jogador vinha defender, ele recuava também, “anda monte”. E tudo isto dito com sotaque do Porto, carago, até que outro boavisteiro, interpela o amigo do Luís: “Ó senhor, o homem tem nome. Agora, monte, monte! Monte de quê, senhor!” E o amigo do Luís: “Monte de merda, que é o que ele é.”

E saudades das altas calinadas do João Bénard. A um jantar, sentado à mesa no Papaçorda, à espera da Isabelle Hupert, julga tê-la visto entrar e vai para ela, sem ver que era a mulher de uma diplomata português, “Mais quelle honneur, Isabelle, soyez la bienvenu”. A senhora, portuguesíssima, responde-lhe: “Que disparate, João, o que é que lhe deu!”. E ele, sem desarmar e ainda a sonhar que ela era a Huppert: “Et en plus vous parlez portugais!”

E, sem me esquecer do António Escudeiro, do Alface e do Dinis Machado, lembro-os a todos nesta história do Pedro Bandeira Freire, que eu e o António Setúbal, de tanta falta ele nos fazer, continuamos a celebrar em jantar mensal. O Pedro estava em Cannes e guiava um carro tão descapotável como ele. Saía do estacionamento do Palácio do Festival. Não sabia era, nesse aventuroso tempo sem gps, por onde sair. E parou. Atrás dele outro carro. E o Pedro, a coçar a calvície, a pensar. O condutor de trás, apressado, furioso, grita-lhe em sonoro português: “Cabrão do careca, tira-me o calhambeque da frente!” O Pedro, com a seráfica calma de São Francisco, sai do carro, vai ter com o outro, e pondo aquele sorriso que lhe encheu a cama de amores, diz: “Amigo, cabrão, sim, de certeza; mas careca, eu?” O outro, desarmado, “O senhor desculpe, não sabia que era português, pensava que fosse o cabrão de um francês!”

Ah, a frívola alegria dos meus amigos mortos!

Publicado no Jornal de Negócios

A Guerra e Paz faz 17 anos

Uma editora para maiores de 17

Dia 10 de Abril. Hoje a Guerra e Paz editores faz 17 anos. Para mim, é uma idade tenra e, até, concupiscente: quando eu era miúdo, os filmes para maiores de 17 eram a porta de entrada para o quarto escuro das grandes ousadias, para esses filmes em que se via ou dizia o que até aí era suposto não vermos, nem dizermos, fosse pela índole sexual, fosse pela alusão política ou religiosa.

A Guerra e Paz editores não precisou de ter 17 anos para dar a ler e dizer, com total liberdade, tudo o que quis dar a ler, do divino Marquês de Sade a D. H. Lawrence e à sua «Lady Chatterley» ao «Manifesto Comunista», dos rebeldes Marx e Engels, e «Mein Kampf», do odioso Hitler, ou o pequenino e feroz livrinho do ditador Mao. Isto, só para falar de flores eróticas ou tragédias políticas.

Aos 17 anos, a Guerra e Paz editores é – e continuará a ser – uma editora livre para escolher o que quer publicar. E queremos publicar livros que sejam uma grande aventura intelectual: as Novas Edições de Jorge de Sena, ou o nosso primeiro Atlas português, o «Atlas Histórico da Escrita», de Marco Neves. Queremos publicar livros que não se rendam: agora Isaiah Berlin e Thomas S. Kuhn, amanhã a «História do Fascismo», do grande Emilio Gentile. Sim, privilegiamos a aventura e a emoção. O lema rimbaudiano das «Iluminações» que também vamos publicar – a ciência, a elegância, a violência – não é estranho aos nossos 17 anos.

Hoje, 10 de Abril de 2023, é dia de beijos e abraços:
para quem aqui trabalha, o Ilídio, Zé, Carla, Américo, Inês, Mário, Maria José e Rita;
para os meus sócios, António Parente e Pedro Nabinho Henriques, por acreditarem, e para o Abílio Nunes e António Palma, que é como se fossem sócios;
para os nossos excelsos autores, com estrondoso aplauso;
para os nossos tradutores, revisores e paginadores;
para o nosso distribuidor, a VASP e para as combativas e resistentes livrarias portuguesas;
para as gráficas com que trabalhamos, sempre a Publito, também a DPS e a ACD;
para antigos trabalhadores e antigos sócios, a quem também devemos o que hoje somos.

E acima de tudo para os nossos leitores. Sem os leitores, sem a curiosidade insaciável deles, sem os incansáveis olhos que devoram páginas e se exaltam, choram, riem, sonham a ler os nossos livros, nós não valíamos dez réis furados. Que os vossos olhos nunca se cansem, que a vossa sede de emoção e de conhecimento nunca vos largue. Obrigado pelo vosso amor à Guerra e Paz.

Manuel S. Fonseca, editor

A viúva e a sua mala

Era a viúva e a sua mala, no aeroporto de Lisboa. Eu, sentado ao lado dela, no autocarro que nos levaria até à escada do avião. “E depois?” me perguntou ela na sua doce sintaxe brasileira. Disse-lhe que teríamos de subir a escada do avião carregando as nossas malas de mão. “Moço – desabafou, então – as saudades que tenho de viajar com meu marido. Nunca peguei mala. Ele na frente, carregando saco e eu, viu, como borboleta, lhe seguindo, falando, rindo, saltando. Ai, a saudade desse marido.”

E já suspendo a comunicativa viúva brasileira, para lembrar, não o marido morto dela, mas o estudo recente da Universidade de Pádua: a viúva, quando o marido morre, é como se lhe tirassem um capacete sufocante e húmido de cima. A viúva tem muito menos stress do que a mulher casada. O risco de depressão tomba ali uns 23%. O viúvo, esse sim, sofre: um camião de medo de ficar sozinho e abandonado, sem a sua última cuidadora. Já a viúva, consciente de que há um bom naco de vida depois do marido, vê na morte do impotente um alívio: desaparece o risco de ter de o limpar como quem limpa o rabinho a meninos.

E nem sequer vou fazer a maldade de arriscar uma analogia, vá lá, uma analogiazinha com a famosa aranha, a viúva negra. Mas recordo que a “viúva negra” seduz o macho, faz com ele amor, se assim se pode dizer, e logo a seguir o come, ou seja, devora, numa sequência de “meet, fuck, eat” irrevogável e irreversível.

E volto à saudade nordestina da minha viúva brasileira. Evocava os anos que viveu com esse marido, e vinham pelo mundo, viajando, carregados de malas para visitar o filho que agora está no Porto vindo dos Estados Unidos, ou o outro que mora em Paris. E a viúva desdobrava o seu amor por esse homem potente, que lhe fazia filhos e carregava, como Hércules, todas as malas. Estávamos ali, no autocarro que nos levaria ao avião, e a minha viúva brasileira, essa tez de pele que dá a mistura dos genes brancos, pretos e índios, voz musical, no rosto uma carga de alegria e esperança bem com a vida, que a Universidade de Pádua agora detectou em todas as viúvas, e só me saía a lembrança silenciosa da personagem da actriz Manuela de Freitas, no “Passado e o Presente” de Manoel de Oliveira. Já se esqueceram? A personagem da Manuela, uma viúva profissional, só se apaixonava pelos maridos depois de eles morrerem, para desespero do vivo marido com quem estivesse casada.

Perguntei à viúva nordestina, se vinha em viagem de luto desse viúvo prestável, límpido carregador de malas. “Moço, há quanto tempo, esse marido já morreu!” Demorou uns segundos e retomou: “Quem morreu, faz uma semana, foi meu segundo marido.” Eu ouvi e, meu Deus, agora que faço? Dou os pêsames? Já a minha viúva, com seu travo de samba baiano, se ria. Ri junto. “Como o moço se chama?” E eu disse, “Manuel como todo o português”. E ela: “Manuel, agora veja, esse segundo marido estava ao meu lado, levou a mão ao peito e tombou sem um pio.” E logo a viúva destressada abre o telemóvel e mostra a fotografia: “Veja, era esse negão, 34 anos, um cara a exalar saúde; eu com 60 e me morre nos braços.” E continuou a rir, como bem manda o estudo da Universidade de Pádua. “Ao seu lado?” remoí eu. “Manuel, seria muito pior se fosse ao lado de outra, né?!”

Com aquela sufocada timidez que qualquer Manuel tem ao lado de uma eufórica viúva brasileira, sacudi o macambúzio portuga que dorme em mim. Disse-lhe: “Em homenagem a seus viúvos, eu carrego sua mala na escada do avião, mas a senhora jura que não me pede em casamento.”

Publicado no Jornal de Negócios