Pessoa e Salazar: para acabar de vez com as dúvidas

Juntei os trapinhos com Fernando Pessoa… perdão, juntei os textos de Fernando Pessoa sobre Salazar, no livro Que Salazar era o Salazar de Fernando Pessoa? Leiam, garanto-vos que não se vão arrepender. A jornalista Fernanda Cachão entrevistou-me para o CM. É uma antecâmara do que vão encontrar no livro.

Começo por lhe fazer a pergunta que aparece na contracapa do livro: Fernando Pessoa foi alguma vez salazarista?

 Se por salazarismo entendermos os 40 anos de ditadura, o cortejo de presos políticos, torturas da PIDE, guerra colonial, que hoje podemos e devemos imputar a Salazar, Fernando Pessoa, que nada disso viveu ou conheceu, nunca foi salazarista. Morreu três anos depois de Salazar chegar a Presidente do Conselho e decretar o unipartidarismo da União Nacional e plebiscitar a Constituição de 1933. É aqui que começa o que podemos designar politicamente como salazarismo e é exactamente esse quadro que alerta Fernando Pessoa, começando então os textos de Pessoa sobre Salazar a ser ácidos, satíricos e até violentamente ofensivos para o ditador.

 Qual a razão fundamental para reunir os textos do poeta sobre o ditador?

 É uma tradição da Guerra e Paz editores organizar antologias temáticas de Pessoa, sobre viagens, sobre sexualidade, sobre Cristo. Salazar é uma das figuras maiores, inarredável em vida e inarredável depois de morto, do nosso século XX. Ter o nosso maior poeta do século a comentar com minúcia a acção e os acontecimentos políticos desses anos de revolução e ditadura é de uma enorme riqueza. Tanto mais que podemos assim assistir, a partir de um olhar privilegiado, ao nascimento da figura política de Salazar e ver a sua evolução, tantas vezes feita com base em processos manhosos (as demissões sucessivas de Salazar, por exemplo). Do berço político ao trono tirânico, está tudo neste livrinho de Fernando Pessoa sobre Salazar.

 Salazar é frequentemente considerado o espírito tacanho que governou Portugal 40 anos. No entanto, existem algumas coincidências de pensamento entre Fernando Pessoa e Salazar, quer partilhavam, por exemplo, um “profundo cepticismo quanto à capacidade intelectual da multidão”, uma visão pouco politicamente correcta para os padrões actuais? 

 Mas o que pensam hoje os grandes dirigentes políticos sobre a massa dos cidadãos? Se não fossem tão escrutinados, será que não manifestariam de forma mais ostensiva algum desdém pela turba? Pessoa e Salazar, nesse fim dos anos 20 do século passado respiravam o ar de um tempo em que as vanguardas, tanto as comunistas como as fascistas, se substituíam ao povo nas escolhas, nas decisões e nos discursos. Por outro lado, a ideia de que Salazar fosse pura e simplesmente um tacanho é errada e não nos deixará perceber as razões da sua longevidade no poder.

 No texto “trata-se de governar estas bestas”, Fernando Pessoa escreve que “o primeiro dever do patriota é ver claro o que é a sua pátria”. Qual a actualidade do pensamento político de Pessoa? 

 O pensamento político de Fernando Pessoa é o da defesa de um feroz individualismo. Se ele estivesse vivo, hoje, por certo abominaria essa amalgama do identitarismo em que se quer dissolver cada ser humano. Seria talvez um anarquista de direita. Nalgum momento poderia, com o seu espírito libertário, votar na Iniciativa Liberal. Mas o grande valor dos textos deste livro está na sua riqueza histórica, na forma como Fernando Pessoa recusou o totalitarismo, reconhecendo-o imediatamente quer no fascismo, quer no comunismo. Poucos intelectuais europeus, mesmo os muito posteriores a ele, carregadinhos de informação, foram capazes de ter essa lucidez.

 No texto, escrito em 1933, “Não há opressão em Portugal”, Pessoa classifica a ditadura como liberal e menospreza, por exemplo, a censura na imprensa, mas em 1935, no ano em que morre, dois anos após Salazar ter assumido a liderança do governo, lamenta, por exemplo, “a venda a retalho da alma portuguesa” e escreve o poema ‘António Oliveira Salazar’ (“Bebe a verdade /E a liberdade, /E com tal agrado/ Que já começam / A escassear no mercado”). O poeta antecipa rapidamente o que está por vir?  

Fernando Pessoa, durante quatro anos, de 1928 a 1932, como milhões de portugueses, saudou o ministro das finanças que Salazar foi, como um ministro competente e com resultados que ele percebia como bons, como a imprensa internacional, em particular a inglesa, os saudou também. Mas foi sempre reticente quanto à passagem do “contabilista” a estadista. Diria que a percepção da tirania, que Salazar torna transparente com o partido único e com a montagem do aparelho autoritário, amargurou o último ano de vida de Pessoa – são de uma grande desolação os seus últimos textos – e precipitou a sua morte. Cereja em cima do bolo, se assim se pode dizer, a forma como Salazar concebe o papel da literatura, e de toda a criação artista, fazendo dela um instrumento servil do Poder e da sua moral, revoltou e tirou forças a Pessoa, que decidiu não mais escrever, por não querer escrever num quadro a que ele chamou “sovietismo de direita”.

 A “desilusão”, precipitou a morte do poeta, como diz, ou a doença associada ao consumo de álcool?

 Não sou um conhecedor profundo da biografia clínica de Pessoa, mas sabemos hoje como os traumas afectivos assombram e têm consequências somáticas. Que Pessoa rejeitou, pessoal e vivencialmente, o crescimento e densificação do autoritarismo de Salazar, nas roupas cada vez mais sinistras do Estado Novo, não tenho dúvidas. O artigo que ele escreveu a contestar o ataque e proibição da maçonaria é a sua última resposta vigorosa. Depois, segue-se a queda, ele já não vai à entrega do Prémio ao seu livro “Mensagem”. Adivinhava porventura o discurso que Salazar ali ia fazer e no qual, seguindo a “regra soviética”, como lhe chama Pessoa, Salazar praticamente determina o que um escritor “deve escrever”. Daí em diante, Pessoa fecha-se num casulo de amargura.

 O texto ‘Chamamos-lhe por vezes jesuíta’ fala precisamente do papel da literatura e antecipa de uma forma absolutamente lúcida questões como quem o poderá substituir e quem o poderá derrubar. O pensamento de Fernando Pessoa reflecte de alguma forma o de alguma elite da altura?

 Sim, Pessoa sonha, em 1935, com o derrube de Salazar e aponta até as forças que o podem fazer: “um movimento revolucionário das esquerdas”. Não sou historiador, mas creio que, nesse tempo, entre as elites, mesmo as elites económicas, que acusavam Salazar de “bolchevismo branco”, a ideia de derrubar Salazar seria, pelo menos na teoria, apetecível: ainda não estava distante a memória dos golpes e contragolpes que infestaram a história da República.

  Pessoa e Salazar não poderiam ser maiores antónimos…

 Sim, basta compararmos a obra de cada um. Do lado de Salazar, a construção de uma sociedade fechada, monopartidária, em que o seu ascetismo asperge todas os aspectos da vida, do lar à literatura devota, do trabalho às relações sociais. A criação de Salazar é devota. Do outro lado, Fernando Pessoa constrói uma obra plural, em que florescem personalidades tão distintas como Álvaro de Campos ou Alberto Caeiro, cruzando o lúdico com o dramático e por vezes épico ou trágico. A criação de Pessoa é lúdica, impregnada de prazer.   

O que é que mais o surpreendeu nestes textos políticos de Pessoa?

Eu sou um leitor de Pessoa que privilegia nele um lado lúdico. Magistral e dramática que seja, a construção da heteronímia releva também do gosto de Pessoa por brincar como o menino que em muitos aspectos nunca terá deixado de ser. A família diz isso mesmo, que ele divertia os sobrinhos a fingir-se bêbado, a fazer de pássaro pousado numa só pata. O que acho extraordinário na sequência destes textos sobre Salazar é ver apagar-se em Fernando Pessoa o menino e inundarem-se os textos de uma lucidez crítica que caminha do vigor dos anos 20 para o desânimo de 1935.

Ler Livros em Noites de Lua Cheia

Fernando Pessoa apontou uma falha ao professor Salazar: disse que ele não tinha cultura literária e que isso o transformava num «cadáver emotivo». É essa a transcendência dos livros: romances, poemas, contos transbordam de emoção e dão-nos inteligência afectiva, fazendo-nos crescer em sensibilidade e humanidade.

Eis o que a Feira do Livro de Lisboa pretende ser, uma festa emotiva, plena de dramas e epopeias, de comédia também, porque nada há de mais humano do que o riso. E a Guerra e Paz editores é parte dessa festa. Nos pavilhões A 50, 52 e 54 oferecemos aos nossos leitores cerca de 50 clássicos, do humor de Dom Casmurro, de Machado de Assis, à anti-epopeia que é a Moby Dick, de Herman Melville. Venha ler connosco Conrad, Eça, Camilo, Oscar Wilde, Flaubert ou Jane Austen.

Oferecemos-lhe também as nossas colecções às cores, os Livros Brancos, com a Carta do Achamento do Brasil, os Livros Negros, com O Solilóquio do Rei Leopoldo, de Mark Twain, os Livros Amarelos, colecção que junta autores, e os Livros Vermelhos, com uma novidade nesta Feira, o livro De Raça, de Rachel Khan, autora francesa, filha de um negro e de uma branca: vítima das armadilhas activistas, a autora pergunta de que raça é, jurando que «somos todos crioulos».

Que Salazar é o Salazar de Fernando Pessoa é outra das nossas novidades, o livro em que Pessoa acompanha, de 1926 a 1935, cada passo de Salazar, escrevendo sobre ele e sobre cada um dos seus actos políticos. São textos de uma inteligência política e psicológica admiráveis.


Os Números da Guerra de África, do tenente-coronel Pedro Marquês de Sousa, é um manancial de informação que vem preencher uma lacuna: pela primeira vez estão reunidos todos os números dos três ramos das Forças Armadas, nas três frentes, Guiné, Angola e Moçambique. Um livro de referência para o futuro.

O Atlas Histórico do Médio Oriente é outra novidade nesta Feira. O caos e crise a que assistimos no Afeganistão só veio reforçar a necessidade de visitarmos a História e reconhecermos as raízes profundas dos conflitos desse centro nevrálgico da tensão mundial. Indispensável.

Desaparecida, romance do estreante Ricardo Lemos, vencedor do Prémio Nacional de Literatura do Lions de Portugal, vai ser apresentado na Feira. Desparecida é também o nome de uma aldeia, ou talvez seja, mais do que uma aldeia, talvez seja um Portugal imaginário, que descobrimos pela força das narrativas, lendas e sonhos. Um primeiro grande romance.

Outra revelação romanesca é O Sonho de Amadeo, do romancista brasileiro estreante Leonardo Costa de Oliveira. Venceu o Prémio Literário da UCCLA-CM Lisboa, história de um homem que acorda sobressaltado depois de ter sonhado que foi assassinado com um tiro no peito. Mas quem, se é que alguém, o assassinou?

E o nosso livro do ano, nesta Feira, é Entre a Lua, o Caos, o Silêncio, a Flor, a mais completa antologia da poesia angolana já feita: livre, abrangente, da poesia oral das línguas angolanas aos poetas contemporâneos. Um monumento de 700 páginas oferecido às gerações futuras.


Da nossa colecção de poesia, a Roupão Azul, de Ana Paula Jardim, vencedor do Prémio de Poesia Glória de Sant’Ana, junta-se o Livro da Perfeita Alegria, terceiro livro de Eugénia de Vasconcellos na Guerra e Paz.

E por fim, viajamos à Lua. Vamos à lua com a cientista francesa Fatoumata Kebe, que esperamos ver em breve na tripulação de uma das viagens da Agência Espacial Europeia. Kebe escreveu A Lua é um Romance um livro apaixonado, em que a ciência nos dá a conhecer todos os segredos e faces escondidas da Lua, revisitando todos os mitos, narrativas e efabulações de séculos sobre a Lua. Um livro sedutor para ler em noites de Lua Cheia.


Guerra e Paz editores, Feira do Livro de Lisboa, 2021

Bufaria e cortesia

Juan Garcia Pujol, o homem que enganou Hitler

Publicado no Jornal de Negócios, há umas boas semanas, Entretanto, meteram-se as férias e coisa e tal, e só agora dei com estes amenos espiões.

Vejam, a bufaria, hoje, é praticamente uma cortesia. Durante anos esteve de cadeirinha, macia, administrativa, na Câmara de Lisboa. Deu, com uma gentileza de chá e torradas, os nomes de organizadores de 50 manifestações a Embaixadas de países amigos e inimigos, democracias e ditaduras.

Lembro: bastou a Anna Sage ter vestido uma saia rosa, para ser a “Lady in Red”, na noite em que levou ao cinema o gangster John Dillinger, bufando a digressão recreativa ao FBI, que à saída do filme crivou de balas esse Robin Hood de bancos, impedindo-o de ser ele a assaltar, com outra glória, o BES. A Câmara de Lisboa, inocente, é a nossa “Lady in White”, culminando a tradição de casino, bufaria barata e alta espionagem da nossa capital, que remonta à Segunda Guerra Mundial.

E não minto se disser que pode haver um impulso idealista no deceptivo espião. Tenho os olhos no catalão Juan Pujol Garcia. Cresceu na Guerra de Espanha. O pai, burguês, educara-o no pacifismo e no bom senso da democracia. Forçado à guerra pelos republicanos, foi telegrafista para não dar um tiro. Acabou prisioneiro dos fascistas. Libertou-o um padre: já parecia velho aos 25 anos e ficou com uma velocíssima aversão ao fascismo e ao comunismo.

Deus, se for Deus, voa, eis o que sabemos com tanta certeza como sabemos que Hitler, por ser Hitler, faria a guerra. Pujol quer combater Hitler. Vai à Embaixada inglesa, em Madrid, e oferece-se como espião. É bom que saibam, Pujol desistiu dos estudos aos 13 anos: trocara tudo por um curso de avicultura. Se alguma coisa sabia, era de galinhas. Os ingleses devolveram-no à capoeira.

Não desiste. Urde um plano tortuoso. Oferece-se aos alemães. Convencerá, dessa maneira, os ingleses da sua utilidade. Diz aos nazis que tem um passaporte diplomático e que pode viajar e espiar em Inglaterra. Em pouco meses inunda os nazis com informações do Reino Unido.

Pujol viajou tanto à Inglaterra como eu já fui à Tasmânia. Está entre Lisboa, o Estoril e Cascais. Quem sabe se inspirado pela sombra de Fernando Pessoa, inventa heterónimos. Trabalham para ele, do território inglês, 23 espiões. Um venezuelano, embarcadiços, uma mulher que por não ser bonita é muito discreta… Há, num verso de Herberto Helder, uma máquina de fazer maçãs – a cabeça de Pujol era uma máquina de fazer espiões. Inventa-os, dá-lhe uma biografia, e com os mapas de guias turísticos e os horários dos caminhos de ferro ingleses, regala os nazis de informações. Todas falsas, mas povoadas de verdades que as credibilizam. Inventa um comboio de barcos ingleses em direcção a Malta e a marinha nazi, os insondáveis submarinos, vêm polvilhar o Mediterrâneo, logo seguidos pelos ingleses.

Um catalão enche os mares com uma informação falsa e o MI5 já o procura por toda a Inglaterra. Pujol e a mulher vão bater-lhes à porta, em Lisboa. Levam-no para Londres e, de boca aberta, chamam-lhe Garbo, o melhor dos actores.

Agora, dúplice, serve a causa que quer. E é Pujol, na roupinha de Garbo, que convencerá Hitler: o dia D será em Calais. No dia 6 de Junho, horas antes da invasão, autorizado por Eisenhower, avisa os nazis que vai haver um desembarque na Normandia, mas que é só para nazi ver. Convicto e confiante, Hitler manda Rommel estacionar os seus tanques em Calais. Pujol, espião espanhol, ganhou um terço, talvez meia guerra. Poupou vidas. Depois da Guerra, o MI5 inventou a sua morte em Angola, onde, para variar, nunca foi. Viveu, clandestino e em doce remanso, na Venezuela. Morreu em 88: os deuses pouparam-no à ditadura de Chávez.

Uma banga de komé, meu!

Fica à porta e quem passa protesta por ele estar sem máscara: Che Lewis

A covid-19 povoou o nosso mundo de humilhação. Com cara arrogante, e não digo sequer que seja a de um Hitler ou de um Estaline, mas talvez a de um daqueles ministros tonitruantes do XXII governo constitucional, a covid-19 obrigou-nos a levar a humilhação para casa. Confinou-nos e, se me desculpam o neologismo, pusilanimou-nos.

Ora, por mais que apalpemos o ser humano, sempre restará nele, noves fora alguma coisa, uma impalpável insatisfação, até um vestígio de insubordinação. Leiam a carta que recebeu um amigo meu de Paris: “Monsieur, vimo-lo, há pouco, no acto de urinar da sua janela sobre as pessoas que passavam na rua. É um comportamento inaceitável! O confinamento não justifica tudo. Chamaremos a polícia em caso de recidiva.”

Assinavam essa carta, escrita a bic azul ponta fina, os condóminos, que sublinharam a grosso a palavra “inaceitável”, pespegando-lhe um correctivo e intranquilo ponto de exclamação.

Mas nem toda a insubmissão é intranscendente. Dois gramas de indocilidade comandaram as veias de um padre católico de Cáceres: a clausura a bulir-lhe os nervos, subiu à torre da igreja, e do telhado, em streaming, para os seus cordeiros de Deus atulhados de pecados do mundo, celebrou, padre funâmbulo, a primeira missa equilibrista pós-concílio Vaticano II.

Ainda em plano inclinado, já regresso ao insublime mundo da futilidade. Na espanhola Vilagarcia, que mal sei se vota Podemos ou Vox, uma mulher, branquíssima de insatisfação, subiu ao muito oblíquo telhado do prédio. De biquíni, que rezo para que fosse de tecido mínimo e escândalo máximo, deixou-se torrar ao sol, os vizinhos em ai-jesus cá em baixo, braços abertos não fosse ela cair.

Eu gostava que tivesse sido na Amadora ou no bairro do Montenegro, em Faro, mas foi num outro lugar estrangeiro. Nos mais acirrados dias da inclemente reclusão um homem vinha, dia a dia, à varanda: vestido de mergulhador, um dia; no outro de princesa; depois de Mbappé ou Cristiano Ronaldo; de bruxa; de astronauta; de boxeur. Megafone na mão, atordoava o mundo: “Estou chateado!” E traduzi mal, que a cada dia mudava de insatisfação: entediado, enfastiado, maçado, irritado. Nunca veio vestido de António Costa, Catarina Martins ou Rui Rio.

A gendarmerie francesa, numa aldeia do Loire, encafifada pelo homem que passeava duas ovelhas como seus animais de estimação, proibiu-lhe as saídas e, à população, tuítou com pedagogia: “Ovelhas, avestruzes, lamas e crocodilos não são animais de estimação! Não podem, pois, ser usados como desculpa para sair de casa.” Eis a paciência de mestre-escola que falta ao ministro Cabrita.

Ousemos e viajemos. Em Trinidad e Tobago, os 29 anos de Che Lewis feneceram. Por uma disputa de terras, um bando entrou-lhe em casa e, a tiro, abateu Lewis e o pai. Se as suas almas foram assim despachadas ao Criador, já os corpos foram entregues à funerária, com pedido especial da família para o jovem Lewis.  Embalsamaram-no e eis que o trazem à igreja evangélica, sentado numa cadeira, casaco rosa, calça branca, óculos escuros a rasgar, uma banga de komé, meu! Na igreja recusam-lhe a entrada. Fica à porta e quem passa protesta por ele estar sem máscara, prova que todo o morto é um insurrecto. Depois, sobem-no para o carro funerário de caixa aberta e atravessa a cidade, numa última visita. A escritora Colette, de um outro confinamento, deixara-nos uma lição: “A melhor maneira de sobreviver à Ocupação é ficar na cama.” Com estilo, os 29 anos de Lewis, insatisfeitos e insubmissos, desmentem a recolhida Colette.

Publicado, há umas boas semanas no Jornal de Negócios, no Weekend, que sai às sextas

Pessoa aos tiros no pé?

Estaria Fernando Pessoa aos pés do velho professor Salazar? E o anarquismo de Pessoa seria capaz de dar um tiro no pé? O que vos quero dizer é que este livro é divertido, informativo e bastante provocatório. Pesa menos do que uma bota, seja lá a bota de quem for.

Claro que eu sou suspeitíssimo. Organizei-o e atrevo-me mesmo a escrever comentários. Juntei-lhe até uma cronologia à minha maneira. Só aceito opiniões de pois de o lerem. Já o podem ir buscar aqui e no dia 24 está nas livrarias de todo o país.

Ava era uma red?

Há meses que não dou sinal de vida, nem deixo as bicas curtas que publico CM, nem sequer as crónicas que escrevo no Jornal de Negócios. Podia arranjar as mais desvairadas desculpas, mas estive a organizar um livro com tudo o que Fernando Pessoa disse de António de Oliveira Salazar. Com textos meus, também. E já estou a organizar outro, que há de contar o currriculum vitae de Deus. Peço desculpas aos meus leitores da Página Negra.
Como aperitivo para a leitura desses livros – o de Pessoa/Salazar está nas livrarias daqui a duas semanas, mas já o podem catrapiscar no site da Guerra e Paz – deixo-vos aqui um bocadinho de Ava Gardner
. Para matarmos saudades uns dos outros.

Eu ia dizer Ava Gardner, mas não, o que é mesmo histórico, é que também o Bloco de Esquerda já foi virgem. A actriz Ava tinha 18 ou 19 anos, o corpo atropelado pela saúde e beleza de uma pele e umas mucosas coradas e hidratadas. Passeavam-lhe o seu metro e sessenta e oito de virgindade pelos exaltantes estúdios da MGM e ela vê, em cima de uns saltos altos, um rapazinho vestido de mulher, turbante de bananas e abacaxis sobre a cabeça, a menear-se como se fosse uma Carmen Miranda. As cores da blusa e saia eram inescapáveis e os olhos de Ava Gardner fixaram-se e deslumbraram-se com esse inenarrável arco-íris.

O metro e cinquenta e sete tinha nome, chamava-se Mickey Rooney, e Ava Gardner, que ainda não era uma estrela, entregou-lhe a sua virgindade. O casamento durou apenas um ano, muito menos do que o enlace amoroso do Bloco e do PS. E veja-se, foi a infidelidade anã de Rooney que obrigou Ava, a deslumbrante Ava, a mulher mais bela ou felina do mundo, a deixá-lo, incapaz de perdoar, o que o Bloco fez, vivendo o seu primeiro romance, sem pruridos burgueses, no melancólico sossego de um ménage à trois.

O metro e cinquenta e sete do curto Mickey media mais qualquer coisa. Sabemos o que Ava Gardner disse dele a outra actriz, e não estava a falar de cortesias: “Não havia truque do livro que ele não conhecesse.” Foi mais terra a terra, telúrica até, quando um jornalista de Chicago, a provocou, já ela era casada com o pau de virar tripas Frank Sinatra. “Ava, o que vês num tipo que só pesa 119 libras?”. Não era uma pergunta, era um ultraje. Ava respondeu-lhe com a espontaneidade e a legítima soberba de um primeiro-ministro: “Bom, vou dizer-te, 19 libras são só de c…” acabando a palavra com todas as progressistas letras que as minhas recalcadas reticências abafam.

Não obstante, na primeira vez em que Ava e Frank saíram juntos – já Ava despachara dois casamentos – era alta noite e meteram-se de carro em direcção a uma small town, como quem apaixonadamente leva a namorada de Lisboa às flamíferas duas da manhã de Corroios. Dois beijos, mãos por aqui e por ali, Sinatra saca de uma pistola. De pé, no seu descapotável, dispara um, dois, três tiros para o glorioso espaço. Logo Ava lhe tira a pistola da mão e dispara, partindo os vidros de uma janela mais próxima. Arma-se uma giga: ou seja, o povo de Corroios, que na altura vivia nessa small town, arriou a giga. Salvou-os a polícia de Hollywood chamada à pressa e em transe.

De Ava, Rooney dizia que ela era red, uma vermelha. Fosse para lhe dar razão, bons anos depois, essa mulher leopardo foi a Cuba falar com Fidel Castro. Fidel atapetou-lhe os passos com flores, vestiu-lhe as noites a “cubas libres”, sentou-a no gabinete que partilhava com Che e com su hermano Raul. Primeiro nos ouvidinhos, depois escorrendo pelos seus yankees ombros nus, o idealismo revolucionário, o suave milagre do discurso que tão bem a boca do Bloco entoa, magnetizou Ava.

Mas outra mulher, a alemã Martina Lorenz, que a CIA mandara a Cuba para degolar ou envenenar Fidel, tradutora de que el comandante precisava para falar com Ava, cortou o romance. Para canto. Ela era já amante de Fidel. Catrapiscou as notas que Ava escrevia ao homem que a seduzira por calçar meias trocadas. No átrio do hotel, Ava atacou-a: “Putéfia, és tu que ficas com as mensagens”, e enfiou-lhe uma realíssima lamparina. Um soldadito cubano ainda puxou da pistola. Fidel desmontou o arraial. E mandou um tenente capaz sossegar Ava nos dias de estada que faltavam. Com os cumprimentos de Cuba.