
A morte é sincera. A morte chegou cedo ao ouvido de Dolores Duran, ainda Dolores Duran não era sequer Dolores Duran, e disse-lhe, vou levar-te comigo. Antes já a morte lhe roubara o pai: tão depressa que ela nem chegou a conhecê-lo.
Essa mesma senhora dona Morte, na forma de febre reumática, tomou a pequena Dolores nos braços. Chamava-se então Adiléia Silva da Rocha, tinha apenas o peso pluma de uma andorinha mulata: com pena, a morte tirou-lhe só parte do coração e, à condição, deixou-a a viver no Rio de Janeiro.
Ora vejamos, não havia, em 1949, cidade do mundo em que melhor se vivessem as 24 horas de cada santo dia. E corrijo: em particular as pecadoras horas nocturnas que faziam de Copacabana o mais glorioso e evanescente antro de perdição. Eram as mais langorosas e destiladas wee hours que o mundo já conheceu. As saudades que eu tenho de nem sequer as ter vivido: do Beco das Garrafas ao Baccará, culminando no Vogue, a noite de Copacabana pintava-se de escarlate, tanta buáte, tanto uísque, tanto desejo, mesmo tanto pecado, se houvesse pecado do lado de lá do Equador.
E vamos aos pecados de Dolores Duran. Tinha 19 anos e foi a sua voz e um casal rico (o que seria desta vida sem um casal rico), que lhe abriram as portas das longas noites de Copacabana. O que a noite gostou dela. Veio Ella Fitzgerald ouvi-la cantar “My Funny Valentine”, viria mais tarde Charles Aznavour. E o que interessa é que vinha ouvi-la, inteirinho, o Rio de Janeiro boémio. Se entrarmos na sala da buáte Vogue, apesar da nuvem de fumo rasgada a lamentos de piano, guitarra, o sopro de um saxofone, vemos ao fundo a silhueta de Dolores. Do chão ao tecto reverbera a voz dela a cantar dores e mágoas de amor, canções de dor de cotovelo, que eu me atreveria a chamar canções de dor de corno.
Ainda se lembram do que contei atrás? A morte levou-lhe meio coração, quando Dolores era só Adiléia. Ficou no peito de Dolores só a metade apaixonada do coração. Quantos homens amou Dolores? Os que quis, como quis, quando quis. Casou e descasou. Amou mesmo, tinha 21 anos, um rapazinho de 17, João Donato, com quem teve casamento aprazado: roubou-lho a família dele mais rica, que não o quis casado tão cedo. Por ela ser mais velha e livre? Ou (ai, meu Brasil, brasileiro) só por ela ser mulata? Ai, essa solidão vai acabar comigo.
Era mulata e mulher e rasgou ao meio um universo musical masculino. Dolores não só cantava como compunha. Um dia, veio ter com ela Tom Jobim. Tocou ao piano uma canção nova. Dolores sentou-se, puxou do lápis de retocar os olhos – ou foi com o stick do baton? – e escreveu os versos de “Por Causa de Você”. Jobim, siderado, nem lhe disse que a canção já tinha versos, os do imenso Vinicius. Mas Vinicius logo achou que eram melhores os de Dolores.
Aos 25 anos teve um enfarte. Resistiu e seguiram-se quatro anos de mais uísque, lá pelas três da manhã “duas cafiaspirinas, uma colher-de-açúcar em um cálice e meio de água”, e bora lá mais madrugadas de amor e separação. Dolores deixou 35 canções que são o sangue que leva do samba-canção à bossa nova. Bastava que tivesse composto e cantado “A Noite do Meu Bem”. Aos 29 anos.
Foi o que a morte pensou. Ainda a canção não era disco, a morte veio mansa cantar-lhe ao ouvido: “Hoje eu quero a rosa mais linda que houver /e a primeira estrela que vier / para enfeitar a noite do meu bem.” O fino ouvido de Dolores ouviu. Eram sete da manhã e disse à empregada: “Não me acorde. Estou cansada. Vou dormir até morrer!” Quem ousará acordá-la?