Regresso

Regresso de um passeio de barco
Regresso de um passeio de barco, Pierre Auguste Renoir

Nada a dizer do remanso dos dias, do céu limpo, do ritmo incansável das marés. As férias deixam-nos sem assunto.

Sobretudo quando, ao escoarem-se os ansiosos últimos dias, a brisa do fim da tarde nos sopra um dos inconversáveis aforismos de Karl Kraus: “Não gosto de me imiscuir nos meus assuntos privados.” Logo eu que não tenho outros.

Brisa de Schubert soprada por Rostropovich

Uma história de sucesso

Este texto não foi escrito para nenhum jornal, revista, workshop. Foi escrito por puro prazer. Gramei à brava da história e desatei a atacar o teclado, como quem puxa do revólver e desata aos tiros. Com um único objectivo, alegrar à bala os seguidores e pacientes leitores desta Página Negra. Haja festa, corações ao alto.

smith
a última foto de Smith

Tipos de famílias saudáveis e com boa educação dão óptimos gangsters. O avô de Jefferson Randolph Smith II era dono de uma vasta plantação na Geórgia – Coweta County para ser mais preciso. O pai foi advogado, circunstância ou modo que, a algum preconceito, pode já parecer um processo degenerativo. O anjo negro da Guerra civil americana barrou a família com a sua azarada sombra, em movimento inverso à manteiga com que se barra o pão, e os Smith abandonaram o ninho, migrando para o Texas. Mas é ainda debaixo da já ferida asa familiar que o jovem Jeff assiste à morte exemplar de um notório ladrão de comboios, Sam Bass.

Jeff e o primo viviam em Round Rock e, favor à mãe que ainda estava viva, foram à drogaria comprar qualquer coisa ou, para ser mais exacto como convém a escorço biográfico, uma coisa qualquer. Deram de caras com um movimento pouco habitual. O terrível vício do tabaco levou um homem, seguro e cheio de auto-estima, a entrar logo depois deles. O xerife estava à esquerda, encostado ao balcão e reconheceu no desconhecido a testa alta e os olhos brilhantes do mau carácter de Sam Bass. Imperativo, gritou-lhe o “estás preso” do costume. Sam, ainda antes de sorrir, enfiou-lhe um balázio no coração. E é já com o sorriso estampado e o xerife estendido desengraçadamente no chão, que Sam sente entrar-lhe a primeira bala no peito, disparada pelo tímido ranger George Herold. Depois, o que por breves segundos entendeu como uma descortesia, o coice doutro projéctil, saído do colt do obstinado sargento Richard Ware, pôs fim a uma carreira dinâmica e às cogitações metafísicas que, por certo, o vício do tabaco abrigava.

Jeff e o primo assistiram a esta vitória do bem: cada um terá tirado as suas ilações. A boa formação de Jefferson, a que, dois mais dois, se adicionava a qualidade dos seus genes adolescentes, ensinou-lhe que o crime não compensa, a não ser que seja muito bem organizado. Os vinte e dois anos que se seguiram são um exemplo de excelência que, pelos padrões actuais, mereceria um life achievement award. O segundo na dinastia dos Jefferson Randolph Smith converteu-se num “homem de confiança”, alguém que cativa a afectividade e a boa fé de terceiros e se oferece como uma solução para o mais tremendo problema que afecta a personalidade humana: a ambição. Aquela pontinha de inveja que sentimos quando passa por nós um Lamborghini, a surda ganância que se desata ao vermos as vitrinas do Faubourg Saint-Honoré, era mesmo para essas coisas, se já as houvesse, que Smith tinha préstimo. As pessoas confiavam nele e ele, com um bom trabalho de equipa, ficava-lhes com o dinheiro e desaparecia. Jogo, fraude, burla, em tudo Jeff Smith caprichou, rodeando-se de jovens brilhantes e com alto grau de especialização. O talento e a auto-confiança levaram-nos a exercitar os métodos em praça pública e perante ululantes massas. Enganou multidões, cidades inteiras, com os leilões dos famosos soap cakes que lhe deram o cognome real: Soapy Smith.

Em 1879, o que era uma simples start up, conceptual e polivalente, converteu-se num império e os 19 anos de Soapy Smith viram-se reis do submundo de Denver, acompanhados pelo esforço de cem indefectíveis que incluíam o “Reverendo” John Bowers e o “Professor” William Jackson, homens de indisputada santidade e saber. Para sua protecção, o laborioso Smith contratou os melhores pistoleiros da época, alguns como “Texas Jack” Vermillon – não se sabe se através de uma SAD avant la lettre -, emprestados por competidores de primeira liga como era o caso da Wyatt Earp/Tombstone SGPS.

O espírito empreendedor de Smith II só tinha paralelo nas suas competências negociais. Em Denver, estendeu tapetes de entendimento com as autoridades e com os proprietários dos saloons, concedendo-lhes percentagem adequada sobre os resultados líquidos… enfim, com toda a sociedade civil, comprometendo-se a fazer incidir – o foco era essencial – as suas operações sobre visitantes e outras formas de inconfessado turismo, visão proteccionista que denuncia a recusa ideológica do liberalismo.

A visão de Smith, o empreendedorismo auto-regulado e aberto à cumplicidade do Estado (Trump não desdenharia, Obama também não) teve, claro, a sua crise de crescimento. Denver depressa se mostrou insuficiente e o modelo negocial foi franchisado, espalhando-se a cidades como Creede*, no Colorado, e Skagway**, no Alasca. Uma história de sucesso à escala de um continente. Motivo de alguma incompreensão e ressentimento, note-se. Registam-se pelo menos duas tentativas de assassinato de Jeff Smith II. Numa delas, no Idaho, Jeff abateu dois dos furiosos atacantes, mas ainda viu metade do seu cofiado bigode arrancado por uma bala que era tudo menos perdida.

No Alasca, Smith não teve a mesma estrela. A sua fórmula de êxito e generalizado bem-estar frutificou, é certo, mas o aparecimento de um ilegalíssimo Comité dos 101, reunindo vigilantes, num daqueles movimentos de cidadania que só espalha a iracunda cizânia, ser-lhe-ia fatal. Os vigilantes fizeram um meeting e Smith, noite amena de 8 de Julho, decidiu que era seu direito passar por lá, pelo molhe de Juneau, onde impertinentes se reuniam. É certo que levava uma Winchester atravessada no ombro. Um adorno, mais do que uma ameaça até porque mandou os seus homens esperar por ele e avançou sozinho.

Frank Reid, um dos vigilantes, falou-lhe em termos menos próprios: “Halt, you can’t go down there”. Os dois homens trocaram alguns mimos verbais menos elegantes e Smith levantou a Winchester para – e chegados a este ponto permito-me alguma liberdade de linguagem  – acertar uma valente arrochada na cabeça de Reid. O cidadão, reformista e vigilante, travou a Winchester com o braço esquerdo, enquanto na mão direita, miraculosamente, lhe apareceu um revólver. “My God, don’t shoot” foram as derradeiras palavras de Jefferson Randolph Smith II. O rápido dedo de Reid já ia em movimento e ouviu-se o click de uma câmara vazia no tambor. Não houve tiro, mas já nada podia parar o confronto e o fogo encheu a noite. Ao todo cinco buracos sangrentos em dois homens. Reid tombou e é provável, a crer na Imprensa, que Smith, ferido, ainda estivesse de pé e os seus homens tivessem começado a correr para o proteger. Outro vigilante, Jesse Murphy, chegou primeiro, tirou-lhe a Winchester das mãos e disparou-lhe em cheio no coração. Smith II morria barbaramente assassinado.

Que interessa, a Obra estava feita o que a História não nega. Hollywwod filmou-o várias vezes, com Clark Gable (Honky Tonk) e Rod Steiger (Klondike Fever) a comporem-lhe a figura. E há um site com forum, newsletter, blog que o trata com as cores e as asas da lenda.

* It’s day all day in the day time and there is no night in Creede.
** Quando o Klondike Gold Rush lhe ofereceu uma “janela de oportunidade”

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O último tiroteio

Tanta vida, tanta morte

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A vida antes da morte: Virginia a jogar cricket com a irmã

É rara a pessoa que só morre uma vez. Até James Bond nos aconselha a viver duas vezes para podermos morrer outras tantas. Mas ninguém morre tanto como o escritor. O escritor morre em cada personagem, falece-lhe a vida a cada romance que acaba. Machado de Assis morreu em Brás Cuba e foi já a sua finada mão a escrever essas memórias póstumas. Com o fino humor que só quem morreu tem.

“Metáfora, balelas, abóbora”, protesta o rigoroso leitor. E eu, pedindo-lhe humildes desculpas, já o convido a ver Virginia Woolf sair de casa numa manhã inglesa ainda entalada entre Inverno e Primavera. Woolf morrera de ilusão em ilusão, a começar no êxito do seu romance “Mrs. Dalloway” incapaz de apagar os abusos dos irmãos, as crises mentais de juventude, as alucinações de toda a vida.

É uma manhã de 1941 e Virginia leva consigo as mortes que escreveu, um casaco de peles, as impermeáveis botas a que o primeiro duque de Wellington deu o nome. Agora vejam, Virginia Woolf dobra a sua fama, mesmo o modernismo que opunha ao de Joyce, para apanhar pedras do chão. Enche de pedras os vastos bolsos do casaco e entra, passo a passo, nas águas do rio Ouse. Se Virginia fosse Jesus Cristo poderia, talvez, caminhar sobre as águas. Mas ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas de um rio, ensinou-nos Heraclito, o que Woolf faz questão em desmentir.Com a persistência que só um escritor tem, caminhou até se afundar. As águas que a afogaram embalaram-na ao longo do rio que passa por York. Vogou nas mesmas fundas águas durante quinze dias.

Que leve que é a persistência de Woolf! Tão leve como a alma do bebé que morre no estado de anjo. Vejam a delicadeza com que apanha cada pedra, a naturalidade, sem estremecimento, com que entra nas frias águas inglesas. Vai ao encontro da morte como ao reencontro da melhor amiga.

A primeira casa que tive com a Antónia, minha mulher, era toda em esconso, umas águas furtadas nos Anjos, partilhada em regime de kibutz com mais dois jovens casais amigos. Na maior parte da casa só se podia andar de gatas. Apenas um terço fora concebida para o homo erectus. E eu ia dizer que nesse tempo, em 1977, foi mesmo assim preciso pagar uns 150 contos, por debaixo do pano, ao ganancioso senhorio para nos fazer o contrato de arrendamento, o que mostra o miserabilismo pré millenial da época. Ia dizer, mas não digo, que isso não interessa nada, e se já disse, peço que esqueçam. Não é a indignação, mas a admiração que me motiva.

Ora, soubemos depois, nessa casa suicidara-se por enforcamento a velhinha só, anterior moradora. Não tinha talvez a serenidade de Virginia Woolf, mas movia-a a mesma titânica vontade: em toda a casa não haveria mais do que um ou dois pontos em que, pendurado do tecto, o ser humano tivesse cinco centímetros a separá-lo do chão. Só um acto de superior vontade superaria a escassez logística que esse pombal dos Anjos, como lhe chamávamos, oferecia.

Não há cá facilidades. A facilidade é como mandar meninos à missa: outro escritor, Graham Greene quis suicidar-se e entregou-se à facilidade de tomar 24 comprimidos com um jarro de whisky. Como uma coisa neutralizou a outra, e continuou vivíssimo. E, se a motivação é risível, pode mesmo cortar-se a garganta e permanecer de boa saúde, como aconteceu a Maupassant, que quis suicidar-se por pensar que o cérebro lhe andava a sair pelas narinas. Volto a Virginia Woolf. Na nota que deixou ao marido derramou, numa letra lindíssima, vinte frases de uma bondade edénica. Sabia o que era a morte, sabia o que era a vida.

Publicado na minha coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

Lilly Tchiumba

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Lilly e o irmão

Eu gostava de saber mais. Mas o que sei é mesmo quase nada de Lilly Tchiumba. Sei que andou no Liceu Salvador Correia, como no Liceu andou o seu irmão Eleutério Sanches, cuja vocação artística dormiu com a música e com a pintura. Foram os dois do Orfeão do Salvado Correia no final dos anos 50 e Tchiumba invadiu Lisboa, a RTP e o Festival da Canção, nos anos 60, com essa voz sublime que se ouve e arde branda em Luanda M’Bolo. Merecia ser muito mais ouvida.

 

Do marinheiro Cão ao marinheiro Conrad

porto de luanda
Eu tinha 15 anos adolescentes quando esta fotografia foi tirada. Largo Diogo Cão, o porto de Luanda ao fundo.

Os mais desolados dias da minha linda adolescência passei-os a olhar-lhe enfadadamente a estátua, no largo a que deu o nome. A meio caminho entre o melhor prego no pão do mundo (uma carne que se desfazia, julgo que por lhe juntarem o leite das canas de mamoeiro) e o cais principal do Porto de Luanda onde ia sacar as wrangler, as levis, as revistas americanas e, com o meu pai, nos almoços do Príncipe Perfeito ou do Infante D. Henrique, comer laranjas de casca colorida, que me pareciam doces como o mel, ao contrário das sumarentas, mais mais verdes e amargas laranjas angolanas.

Ele estava ali, erecto, mais orgulhoso e solitário do que imperial, no meio do largo, exposto à maresia e ao que de pombos é muito pior. Olhava-o, desde 29 de Junho de 1959, com a distância composta em partes iguais de cortesia, respeito e leve desdém de ele não ser nem Gama, nem Magalhães.

Hoje, o largo ainda lá está, ele não. Arrumado entre relíquias e franjas rotas de um passado sonolento, deixou de ver o mar e talvez nem saiba que a wikipédia o comemora em efeméride (que creio falsa na data e o que importa!) que me dá vontade lhe fazer vénia. A 6 de Julho de 1484, os olhos de um capitão de mar português, Diogo Cão, encontraram-se com a esplêndida, velocíssima, boca do rio Congo.

Olhos e boca juntaram-se: um odor queimado. Ardia, ali, no passado, o coração do futuro. O capitão de mar Diogo Cão fez o que a História diz que fez. Aventurou-se no Atlântico, escutou a inextricável fala do desconhecido, cumprindo a vontade do Infante e o plano megalómano de uma minúscula Nação. Mas nas veias do capitão de mar Diogo Cão corria um sangue que antecipava outro sangue, um sonho que sonhava outro abstracto sonho.

A 6 de Julho de 1484, o português Diogo Cão aflorou os lábios abertos do Rio Congo sabendo que, mais do que um império, começava a escrever um romance. Diogo Cão beijou a boca, um polaco, Joseph Conrad, chupar-lhe-ia o escuro coração. Primeiro publicado em revista, depois em livro, dava o século XX os primeiros passos, o polaco que cantou a língua inglesa com pureza a rondar a loucura, publicou Coração das Trevas, o romance de um rio cujo mistério passou do marinheiro Cão ao marinheiro Conrad.

Ambos subiram o rio. Diogo Cão só até Matadi. E até Matadi também Conrad, onde chegou em 1890, cinco séculos depois do português. Iria mais longe: o polaco prosseguiu a peregrinação, passando por Kinshasa, numa viagem de febre e horrores que o seu “Diário do Congo” relata.

Sem essas voltas biográficas será que poderíamos algum dia ter lido a história de Kurtz que Marlow, e não Conrad, nos conta até se calar, por já não serem dele os sons que, música espessa e irrespirável de uma noite equatorial, lemos assim:

He cried in a whisper at some image, at some vision—he cried out twice, a cry that was no more than a breath—“The horror! The horror!

Diogo Cão, a julgar que descobria mundos, não podia imaginar que as velas portuguesas e a cruz de Cristo também abriam caminho para o coração das trevas.

3D Book Coracao das Trevas
Adoro esta edição. Tão bem traduzida por Maria João Madeira. Não há nada mais bonito.

Fantasmas coloniais

LUanda

Bica Curta servida no CM, 5.ª feira, dia 22 de Agosto

Esta é a minha centésima bica curta no CM. Para desbundar memórias afectivas, bebo café de Angola, dose certa de robusta misturado ao suave arábica. Bebo e leio o que disse ao “The Economist” um ex-ministro das finanças do Zimbabué, malhando no regime: “Hoje lavo-me num balde como se isto fosse a Rodésia do Sul de 1923.” As vozes livres de África não se calam. Na televisão de Luanda, o poeta e romancista angolano José Luís Mendonça foi claro: “O colonialismo hoje tem de ser repensado. Será que o colonialismo foi assim tão mau?”

A África será tanto mais livre quanto acerte contas, sem preconceitos, com os fantasmas do passado.

O corpete e a inútil bengala

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Rolla, Henri Gervex

A propósito de taxas de juros e outras trocas monetaristas e de coisinhas da silly season, tomem lá  o apogeu da procura e oferta do corpo feminino, no quadro de um tempo em que o bordel começou a rivalizar com a igreja como lugar de destino e culto. Visitem este quadro de Henri Gervex (que hoje nos cheira, se permitem que meta o nariz onde não se deve, a academismo).

“Rolla” (1878) foi pintado alguns anos depois da “Olympia” de Manet, e inspirado por um poema de Alfred de Musset. O centro do quadro é Marie, a prostituta pela qual Rolla, consumido pela paixão, pagou uma noite de amor. Dissipou assim as últimas notas, conseguidas com a venda da sua pistola, e algumas emprestadas pelos amigos aos quais jurara que, obtidos os favores de Marie (Marion), a luz do sol já não o voltaria a encontrar com vida. Cara, muito cara, Marie. Agora, a morte espera o apavorado Rolla enquanto o corpo macio de Marie se delicia com um sono tão lascivo como a satisfeita noite que os lábios entreabertos denunciam.

Gosto do luxo do leito, da invasora luz matinal, do corpete caído no sofá (diz-se que por sugestão de Degas), atravessado pela cana da inútil bengala. Para além da portada aberta, Paris, o boulevard.

Henri-Gervex
Henri Gervex em auto-retrato: Discussão de Amantes