Tanta vida, tanta morte

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A vida antes da morte: Virginia a jogar cricket com a irmã

É rara a pessoa que só morre uma vez. Até James Bond nos aconselha a viver duas vezes para podermos morrer outras tantas. Mas ninguém morre tanto como o escritor. O escritor morre em cada personagem, falece-lhe a vida a cada romance que acaba. Machado de Assis morreu em Brás Cuba e foi já a sua finada mão a escrever essas memórias póstumas. Com o fino humor que só quem morreu tem.

“Metáfora, balelas, abóbora”, protesta o rigoroso leitor. E eu, pedindo-lhe humildes desculpas, já o convido a ver Virginia Woolf sair de casa numa manhã inglesa ainda entalada entre Inverno e Primavera. Woolf morrera de ilusão em ilusão, a começar no êxito do seu romance “Mrs. Dalloway” incapaz de apagar os abusos dos irmãos, as crises mentais de juventude, as alucinações de toda a vida.

É uma manhã de 1941 e Virginia leva consigo as mortes que escreveu, um casaco de peles, as impermeáveis botas a que o primeiro duque de Wellington deu o nome. Agora vejam, Virginia Woolf dobra a sua fama, mesmo o modernismo que opunha ao de Joyce, para apanhar pedras do chão. Enche de pedras os vastos bolsos do casaco e entra, passo a passo, nas águas do rio Ouse. Se Virginia fosse Jesus Cristo poderia, talvez, caminhar sobre as águas. Mas ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas de um rio, ensinou-nos Heraclito, o que Woolf faz questão em desmentir.Com a persistência que só um escritor tem, caminhou até se afundar. As águas que a afogaram embalaram-na ao longo do rio que passa por York. Vogou nas mesmas fundas águas durante quinze dias.

Que leve que é a persistência de Woolf! Tão leve como a alma do bebé que morre no estado de anjo. Vejam a delicadeza com que apanha cada pedra, a naturalidade, sem estremecimento, com que entra nas frias águas inglesas. Vai ao encontro da morte como ao reencontro da melhor amiga.

A primeira casa que tive com a Antónia, minha mulher, era toda em esconso, umas águas furtadas nos Anjos, partilhada em regime de kibutz com mais dois jovens casais amigos. Na maior parte da casa só se podia andar de gatas. Apenas um terço fora concebida para o homo erectus. E eu ia dizer que nesse tempo, em 1977, foi mesmo assim preciso pagar uns 150 contos, por debaixo do pano, ao ganancioso senhorio para nos fazer o contrato de arrendamento, o que mostra o miserabilismo pré millenial da época. Ia dizer, mas não digo, que isso não interessa nada, e se já disse, peço que esqueçam. Não é a indignação, mas a admiração que me motiva.

Ora, soubemos depois, nessa casa suicidara-se por enforcamento a velhinha só, anterior moradora. Não tinha talvez a serenidade de Virginia Woolf, mas movia-a a mesma titânica vontade: em toda a casa não haveria mais do que um ou dois pontos em que, pendurado do tecto, o ser humano tivesse cinco centímetros a separá-lo do chão. Só um acto de superior vontade superaria a escassez logística que esse pombal dos Anjos, como lhe chamávamos, oferecia.

Não há cá facilidades. A facilidade é como mandar meninos à missa: outro escritor, Graham Greene quis suicidar-se e entregou-se à facilidade de tomar 24 comprimidos com um jarro de whisky. Como uma coisa neutralizou a outra, e continuou vivíssimo. E, se a motivação é risível, pode mesmo cortar-se a garganta e permanecer de boa saúde, como aconteceu a Maupassant, que quis suicidar-se por pensar que o cérebro lhe andava a sair pelas narinas. Volto a Virginia Woolf. Na nota que deixou ao marido derramou, numa letra lindíssima, vinte frases de uma bondade edénica. Sabia o que era a morte, sabia o que era a vida.

Publicado na minha coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

Sem estes filmes eu nem vida tinha

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Sacado, com a devida vénia, do site do American Cinematographer

Um dia, num blog que infelizmente já acabou, o Jorge Silva, que já foi da Guerra &Paz, convidou-me para eu escolher os filmes da minha vida e responder a um breve inquérito. Levei tudo muito a sério e, por ele me ter pedido uma curtíssima autobiografia, escrevi estas linhas:

Manuel S. Fonseca foi aprendiz e mau na oficina de  João Bénard da Costa, na Cinemateca. Escreveu, como crítico, coisas imperdoáveis no “Expresso” durante alguns anos. Depois passou pela televisão, pela produção de telefilmes e de longas-metragens assumidamente comerciais e, sobretudo, viajou muito. Isso tudo já passou e hoje não faz mal a uma mosca. Tem uma coluna nostálgica no “Expresso” e escreve num blog lúdico e sumptuário chamado “Escrever é Triste”.

É bom de ver que ainda não nascera este lugar obscuro e cavernoso que é a Página Negra. Trago por isso, para aqui, para memória futura, as escolhas que fiz nesse ano de 2013, no 1º de Maio. Regressemos, então ao passado.

Os Filmes da Minha Vida

Os dez mais que, por esta desordem, agora me vêm à cabeça:

Broken Blossoms, D. W. Griffith
City Lights, Chaplin
Pierrot le fou, Jean-Luc Godard
The Searchers, John Ford
M, Fritz Lang
Playtime, Jacques Tati
Ordet, Carl Th. Dreyer
Rear Window, Alfred Hitchcock
Close Encounters, Steven Spielberg
The Godfather, Francis Coppola

Fiz esta lista e comentei, logo a seguir, jogando à defesa:

Os melhores filmes deviam ser como os menus dos restaurantes. Uns estariam sempre na carta e outros deviam mudar como os pratos do dia. Amanhã, por exemplo, já constaria o Singin’ n the Rain, o Der Blaue Engel e depois de amanhã o Some Like it Hot, o To Have and Have Not, o Citizen Kane, o A Matter of Life and Death, o Casque d’or, o Senso ou o The River do Renoir. E na montra do restaurante, em vez de “Hoje há passarinhos” apareceria escrito, a letras garrafais, “Hoje há Brigitte Bardot”.

E agora leia-se o cerrado interrogatório a que o meu amigo Jorge Silva me submeteu:

— O filme da sua vida…
Talvez seja o “How Green Was My Valley”, a mais perfeita cristalização de um mundo de harmonia que, por nunca ter existido, Deus se viu obrigado a criar através de John Ford, seu filho dilecto.

— Realizador favorito
John Ford, por ter ajudado Deus a corrigir algumas imperfeições da Criação. O mundo ficou melhor com a aldeia galesa de “How Green…” e ainda melhor com o povoado irlandês de “The Quiet Man”.

— Actor favorito
Richard Dreyfuss, pelo “American Graffiti”, pelo riso e pelas canções no bote de “Jaws”.

— Actriz favorita
Jean Seberg, pela nuca rapada de “Saint Joan”, pelos shorts de “Bonjour Tristesse” e por ser tão adoravelmente dégueulasse em “A Bout de Souffle”.

— Personagem que gostava de encarnar se fosse possível “entrar” no ecrã…
Pierrot, perdão, Ferdinand no “Pierrot le Fou”.

— Filme que mais o marcou no momento do seu visionamento…
Posso dizer dois? Primeiro, enternecido, quando vi a Natalie Wood a fazer beicinho para o James Dean no “Rebel Without a Cause”. Nesse mesmo Verão, duas ou três semanas depois, foi um incêndio, ao ver a Elizabeth Taylor a fazer, quais olhinhos, o corpo inteiro, ao Burton, no “The Sandpiper”.

— Obra-prima clássica (ou nem tanto) com que embirre particularmente…
Embirro razoavelmente com o William Wyler (Best Years of Our Lives e  High Noon) e irrazoavelmente com o Eisenstein a quem prefiro a Sarita Montiel.

— O filme-choque da sua vida…
Sem ponta de ironia, um filme polaco belissimamente incompleto, “Pasazerka”, de Andrzej Munk

— Filme do qual possa dizer “a vida é muito parecida com isto”…
Um filme terno e cruel, simples, infantil e adulto, chamado “Stand by Me”, de Rob Reiner.

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Pasazerka, Andrezej Munk