A prenda de Natal de Lulu

o olhar barco à vela de Lulu

A faca na vagina! Eu nunca teria inteligência e sensibilidade para a assombrosa crueza desta imagem. Fui buscá-la à boca primaveril e afrodisíaca de Mary Louise Brooks, que a eternidade lembrará sempre como Lulu.

Louise foi Lulu em “Die Büchse der Pandora”, filme alemão realizado por Pabst, que em Portugal conhecemos como “A Boceta de Pandora”. Lulu, a protagonista a que Louise Brooks deu a alma, era suposto ser uma femme fatale, uma sedutora pistola metralhadora a abater filas e filas de homens.

Agora, olhemos para Louise Brooks, para os seus vinte anos. Quem lhe deu, àqueles olhos imensos, as iris que parecem barcos à vela pintados a castanho-escuro? Que deus ou demónio ofereceu a acme da graça e gaieté juvenil ao seu corpo perfeito?  Não chamem a isso, peço-vos o favor, femme fatale: Lulu é só uma menina, uma espécie de Peter Pan sexuadíssimo, dulcíssimo lírio capaz de crescer em qualquer pântano.

Essa descontrolada irrupção de vida, intensa e imparável é o que, em movimento, olhares, risos, atravessa “A Boceta de Pandora”, e afoga em amor e escuridão um grande empresário da Imprensa, o seu filho, um artista de circo, um velho decadente, numa lista interminável de amores de fatalidade e perdição, a que as mulheres também não escapam.

“A Boceta de Pandora” é um filme de sexualidade e sangue, com previsível fim trágico. Já houve sangue, já houve mortos, e a acossada Lulu foge para Londres. Prostitui-se. É Natal e anda na rua ao engate. Chama um tipo jeitoso. Ele olha-a e diz que não: não tem dinheiro. Mas o sorriso de “que importa lá isso” de Lulu é irresistível. E vejam, ele é um assassino, o Estripador.

Entram no quarto esquálido e nós vimos que, nas escadas, rendido ao lírio sujo e inocente que é Lulu, o Estripador largou a faca. É, jura Louise, a cena mais feliz do filme, para o que a relação que tinha com o belo Gustav Diessl, o actor que faz de Estripador, ajudou. Lulu acende uma vela, há azevinho, ela dança e canta, senta-se-lhe ao colo (e quem não sonhou passar um Natal com Lulu ao colo), beijam-se, mas vem da mesa o brilho frio da faca da casa, que Lulu ali deixou. A viciosa flor animal do Estripador incendeia-se. Pega na faca e acontece o que, mais tarde, numa análise inteligente e implacável, Louise Brooks, escreveu: “É Noite de Natal e ela vai receber a prenda com que sonha desde a infância: ser morta por um maníaco sexual.”

Termina assim, com a faca na vagina, “A Boceta de Pandora”. Termina onde começara a vida sexual de Louise Brooks, menina nascida no Kansas, esse estado americano do “Feiticeiro de Oz”. Conta ela que aos 9 anos de idade, e depois aos 15, fora assaltada e “tocada”, faca na vagina, por homens mais velhos. Essa zona obscura, Louise sufocava-a na sua graciosidade quase eléctrica, numa alegria de fogo de artifício. Mas no amor a sombra ficou. E dou-lhe a palavra: “Para mim, homens simpáticos, suaves e gentis nunca me bastaram. Tem de haver um elemento de dominação.”

Mesmo com Chaplin – amaram-se dois meses – e sobretudo na única noite em que dormiu com Pabst: estavam num soberbo restaurante de Paris e veio à mesa um amigo de Pabst, com quem ela se pegou. Louise não foi de intrigas, com um bouquet de rosas, pôs-lhe a cara a sangrar. Pabst, furioso, foi despejá-la ao hotel, insultando-a. Possessa de excitação, Louise arrastou-o para o quarto e espremeu-o numa noite de sexo de valha-me Nosso Senhor: a melhor performance sexual da sua vida, jura Louise. E rematou: “No dia seguinte, Pabst estava tão radiante que nem conseguia ver direito.”

o colo e a faca sobre a mesa

Beijo, de todos o mais casto

Beatrice: um olhar de Setembro

Bem sei que já estamos em Outubro, a derrapar para Novembro, mas foi Setembro e são estes versos do brasileiríssimo Carlos Drummond de Andrade que acicatam a minha lamentável cabecinha: “Era manhã de Setem­bro e ela me bei­java o membro. Aviões e nuvens pas­savam, coros negros rebramiam, ela me bei­java o membro.”

Eis o beijo que faz explodir em fogo de artificio o imaginário masculino – mesmo o mais empedernido e tóxico representante da masculinidade. Sim, mesmo um ultra cis, hiper hétero tem vontade de fechar os olhos e entoar com voz lírica e num requebro de mariquíssima doçura o verso de Drummond: “e ela me beijava o membro.”  É como ter asas e voar.

Num filme, “Betty Blue, 37,2º le matin”, Béatrice Dalle, talvez a boca mais sensual do mundo nos anos 80, agracia o amado com essa dádiva divina. Béatrice tinha 21 anos e era na vida o contrário do vulcão de sexualidade e aquecimento global que exibe no ecrã: ingénua e pura. E é assim, pura e rebelde, que beija o que beija.

Ora, uma coisa é a derretida poesia que lambe o ecrã quando vemos o filme. Outra coisa é filmar-se a cena. É preciso filmar de vários ângulos. Havia, conta a actriz, necessidade de grandes planos (esses mesmo, em que a câmara está em cima do rosto, dos lábios da actriz e daquela coisa tem-te não caias do actor) e esses momentos, que os versos de Drummond elidem por deles não precisarem, foram para Béatrice momentos e pormenores angustiantes, com electricistas, cameraman, assistentes a borboletear à volta.

E agora vejam, na estreia do filme, mesmo atrás dos 21 anos de Béatrice está a mãe dela, mais católica ainda do que a católica actriz. Quando a imensa boca de Dalle – boca «carnassière» diziam em França, termo que eu diria ficar mais bem traduzido por «carnívora» do que por «carniceira» – vem delicada beijar o indeciso apêndice que, como a Alice de Carroll, ainda hesita entre o “cresço” ou “encolho”, Béatrice jura que ficou pequenina e invisível na cadeira. Dos beijos pode ser, ensina-nos Drummond, o mais casto, mas ter a mãe na fila de trás é abater a tiro o entusiasmo e êxtase do ou da mais devota praticante.

E autorizem-me, por esta vez, uma digressão brejeira. Estava o Professor Salazar, de quem tão pouco se sabe se crescia ou encolhia o recolhido apêndice, no conforto de São Bento, a senhora Dona Maria aos pés da cama com a botija de água quente, quando a lendária voz de Fernando Pessa vibrava, cálida, na esplêndida sala do cinema Tivoli, na Avenida da Liberdade. Fazia a locução da visita da falecida rainha Isabel, comentando as imagens, em particular o harmonioso conjunto casaco, blusa, saia, dele destacando, e cito, “o belíssimo broche todo feito à mão”! O ponto de exclamação é meu e roubei-o à anónima voz que, no escuro da sala, numa revolta vernácula contra o preciosismo lexical salazarista, se insurgiu contestando: “À mão?!”

E o que queria mesmo dizer é que a poesia nunca foi coisa delicada e para delicados e ainda menos para delicadinhos. Drummond canta com lírica e sublime indelicadeza o beijo mais beijo de todos os beijos. E indelicadeza só o é para quem já não tem a inocên­cia de acred­i­tar que com castidade se abrem coxas ou que mão apal­pante deslize pura pela perna que pronta­mente responde.

Noutro poema, o português infausto que foi Jorge de Sena, tomado por uma afrodisíaca pulsão pedagógica, explica-nos o que é mesmo um beijo: “É lín­gua que na boca se agitando, irá de um corpo inteiro desco­brir o gosto, e sobre­tudo o que se oculta em som­bras e nos recan­tos em cabe­los vive.” Beijem.

Publicado no Jornal de Negócios

O mundo grande e muita alto!

Os novos mundos, o grande e o pequeno

São gloriosos os pontapés que o meu neto de dois anos e quatro meses dá no mundo. No mundo grande e no mundo pequeno. Mal seria se eu, como avô, não considerasse o meu neto uma criança sobredotada, um realíssimo génio avant la lettre. Mal começou a balbuciar e logo desatou a dizer os nomes de todos os animais com uma dicção que deixaria embasbacada a senhora dona Glória de Matos, essa actriz de tão límpida pronúncia, que deu aulas de bem falar a Aníbal Cavaco Silva.

Note-se, não foi só dizer com uma perfeição cristalina os nomes, mas sim reconhecê-los no grande globo terrestre insuflável – o mundo grande – que lhe ofereceu, não este circunflexo avô, mas a aguda avó Antónia. Reconhece a águia, minha ternura e preocupação maior, como o leão e a leoa, o tubarão-martelo, o javali, que ele agora, por influência de um desenho animado, a “Bluey”, já chama, em francês “sanglier”, como continua a reconhecer a preguiça, a orca, o guaxinim, que dorme, irredutível em árvores ocas e se banha nos pântanos, e mesmo o pelicano – “O pelicano”, diria branda e degustadamente Marlon Brando, na pele de Vito Corleone, se tivesse ouvido a fruída alegria do meu neto a ver essa grande ave aquática de bico longo.

Esse mesmo gigantesco globo terrestre insuflável, em que aprendeu os nomes dos animais, é a fonte da sua maior alegria física, atestando-lhe vigorosos pontapés em jogo com este exausto avô na sala grande da casa. O meu neto tem um remate de peito de pé já perfeito e delira com duas coisas. Primeiro, quando o mundo vai às alturas e bate no tecto da sala – “Muita alto, avô, muita alto!”, e as graças que eu, ateu, dou a Deus, à Virgem e a São Judas Tadeu pelo belo pé direito da sala. Em segundo lugar, quando eu, brinca na areia de musseque, toco o mundo de chulipa: “Calcanhar, calcanhar”, grita ele e ri e tosse, à beira daquele género de tanta alegria que até choras.

Por facilidade de educação do infante, e protecção da delicada glass menagerie da sala, a avó comprou-lhe um globo terrestre insuflável mais pequeno. É o mundo pequeno. E foi este o primeiro mundo que não resistiu aos pontapés de neto e avô, dos pais e da avó. Uma biqueirada à Otamendi abriu um furo no mundo para espantada decepção do meu neto: “O mundo não salta”, disse ele, e eu a pensar que sim, que às vezes também eu, o mais excitado optimista deste planeta, tenho medo que o mundo não pule nem avance, mesmo nas mãos de sonho do meu aguerrido neto. E eis que, ontem, foi o mundo grande a já não querer saltar. Soprámos no pipo e o ar sai, sei lá bem por onde. Diagnóstico filosófico do meu neto: “Avô, o mundo está vazio!”

Esclareço: o qualificativo acima, aquele “filosófico” que ali plantei, não é acidental ou arbitrário. Um dos jogos familiares que temos é fazer expressões faciais que ensinamos ao nosso candengue: fingimos caras de alegria, caras de tristeza, caras de surpresa. Já o ensinei mesmo a soltar um muxoxo, esse irónico som fino e trocista como uma agulha, que aprendi nos musseques caluandas e que tantas vezes me vem aos lábios quando ouço os alarmismos obscurantistas de Guterres sobre o mundo vazio dele.

Agora, e por causa disso mesmo, decidi ensinar o meu neto a pensar. Primeiro, sentamo-nos e fazemos silêncio os dois. Depois, fechamos as mãos em punho e encostamos um punho a cada maçã do rosto: eis como se pensa, numa atitude e posição que o robusto Auguste Rodin abençoaria, com toda a certeza. E o mundo há de pular e avançar: já vêm, a caminho mais dois globos terrestres, mundo pequeno e mundo grande.

Publicado no Jornal de Negócios

Humor soviético

O melhor do comunismo soviético foi o humor. Ouçam: desapareceu o mítico cachimbo de Estaline. Ele chama Beria, chefe dos seus Pides, para investigar o roubo. Mas Estaline encontra o cachimbo atrás de um sofá. Liga e conta a Beria. “Como assim, camarada – diz Beria – já fuzilámos três que confessaram!”

A tradição de humor negro já vinha da Rússia czarista. A brutal opressão bolchevique reforça-a. E espalha-a aos países da Cortina de Ferro.  “Anedotas da Alemanha do Leste” é uma louca recolha de Reinhard Wagner, e “Humor atrás da Cortina de Ferro”, tem a surpreendente autoria de Simon Wiesenthal, o caçador de nazis. Calin Stefanescu recolheu “Dez anos de humor negro romeno”, sobre a ditadura comunista de Ceausescu:” O que é que no Inverno romeno é mais frio do que a água fria? A água quente!”

Uma “anedokt” dava direito a dez anos de gulag, essa antecâmara da morte para milhões de soviéticos, e até isso foi matéria de humor: um juiz sai a rir-se, descontrolado, da sala de audiências. Outro juiz pergunta-lhe porquê: “Camarada, acabei de ouvir a melhor piada de sempre.” “Diz lá, diz lá”, pediu o segundo juiz. “Ah, não posso, acabei de condenar a dez anos o insurrecto que a contou.”

Para os bolcheviques a tarefa da comédia soviética era “matar com o riso” os inimigos e “corrigir com o riso” os que fossem leais ao regime. Mas o alcance catártico do humor soviético estilhaça essa pretensão de catequese. Ora ouça-se: incógnito, o camarada Estaline estava a nadar num lago. Começa a afogar-se. Um camponês, que vai a passar, atira-se á água e salva-o. Estaline já respira e pergunta-lhe: “Camarada, que recompensa lhe posso dar. Peça o que quiser.” Percebendo quem salvara, o humilde camponês diz: “Não quero nada, nada, camarada. Só peço que não diga a ninguém que fui eu que o salvei.”

Os soviéticos corriam risco só pelo prazer de contar, uma espécie de deleite com as palavras e ideais proibidas: na cidade de Arkhangelsk, o fogo arrasou a delegação do KGB. O telefone toca: um cidadão pede ajuda. Responde o telefonista: “Camarada, não podemos ajudar, o KGB ardeu”. Passam cinco minutos, novo telefonema. “Camarada – repete o telefonista – lamentamos não ajudar, mas o KGB ardeu.” Nem cinco minutos e novo pedido de ajuda. O telefonista reconhece a voz: “Mas é a terceira vez que liga, já lhe disse que o KGB ardeu!” A voz do outro lado: “Eu sei, não imagina o que gosto de ouvir isso!”

Outro objectivo: cultivar o gosto do absurdo: uma ovelha tenta fugir da URSS e na fronteira, a polícia pára-a. “Porque queres ir embora?”. “Por causa do KGB. Estaline mandou-os prender todos os elefantes!” “Mas tu não és um elefante.” “Vai lá explicar isso ao KGB!”

Uma das primeiras decisões de Nikita Khruschev, após a morte de Estaline, foi a de libertar dos gulags os prisioneiros que lá tinham ido malhar à conta da ousadia da “anedokt” política – “Era dura a vida no Gulag? Ora, só os primeiros dez anos!” – o que não impediu que o próprio Khruschev fosse alvo de piadas. Para dinamizar a suinicultura, visitou uma quinta e o jornal local fotografou-o, sozinho, no meio dos porcos. Como legendar a foto: “O camarada Khruschev no meio dos porcos”, “Os porcos e o camarada Khruschev”, “Khruschev rodeado de porcos”? O excelente editor resolveu: “Terceiro a contar da esquerda, o camarada Khruschev.”

E o imparável Khruschev contou mesmo, no famoso discurso do 20.º Congresso, uma “anedokt”. Disse ele: “O camarada Estaline teria gostado de deportar todos os ucranianos.” E rematou: “Não sabia era onde metê-los!”

Publicado no Jornal de Negócios

São livros de Outubro: o sublime tratado por tu

São os meus livros de Outubro, os livros da já velha Guerra e Paz e os livros das chancelas bebés, a Euforia e a Crisântemo, nossos reforços de guerra. Ou de paz?

os meus livros de Outubro
do bas-fond do sexo às delícias da paixão

“No que tange a quem anda com quem, os serviços informativos das mulheres são comprovadamente muito mais eficientes do que os dos homens.” Não obstante, é um homem, Rui de Azevedo Teixeira, que no seu tão enleante e belo O Imenso, Sereno e Doce Rio nos informa: há uma militante «comuna», controleira do PCP, assolada de «febril paixão» por um ex-comando «facho» – e ele por ela. É com este esplêndido livro, história de amor louco, de amor proibido, de cego amor impossível entre dois professores de uma faculdade de letras, a «comuna» e o «facho», que vos começo a falar dos meus livros de Outubro.

De Michel Houellebecq, de Alguns Meses na Minha Vida, já disse tudo numa prosa conspirativa anterior. Mas, depois da sórdida aventura sem amor do seu «filme porno», o que diria ele da «ardente rotina de apaixonados» de O Imenso, Sereno e Doce Rio, talvez o mais belo romance já publicado pela Guerra e Paz? (Obrigado, Rui de Azevedo Teixeira.)

Uma coisa eu sei: abençoados os leitores a que um editor, no mesmo mês, oferece o Apocalipse do amor de Houellebecq e o Génesis da paixão de O Imenso, Sereno e Doce Rio, de Teixeira.

E será que o Houellebecq e o Rui são leitores do imenso René Girard, antropólogo e um dos grandes pensadores do século XX e ainda do XXI? Em Os Livros Não se Rendem, com apoio da Fundação Manuel António da Mota, que o levará à rede nacional de bibliotecas, publico, de Girard, Aquele por Quem o Escândalo Chega. O livro é a mais perfeita introdução ao pensamento do criador do conceito de «desejo e rivalidade miméticos» com o qual Girard construiu a sua teoria da violência. E faz sentido que, a par de Girard, a Guerra e Paz publique também, Darwin na Praia – A Evolução na Toalha e na Areia, de Jean-Baptiste de Panafieu, na mesma colecção em que já se publicaram, sempre na praia, Freud e Churchill. Outra praia é a de Viana do Castelo: Jóia do Atlântico: o texto é de Cristina Baptista e o livro de grande formato, uma centena de fotografias, paginação de luxo, é uma parceria com os AP Hotels & Resorts, prova de as empresas privadas gostam de livros.

E faço um parêntesis infantil. Tragam os vossos filhos – e podem ser os vossos netos! Vamos todos dar «puns». Dos Fantásticos Irmãos Flatulentos (inventados pelo americano M.D.Whalen) publico O Ainda Mais Fedorento Grande Livro dos Puns. Científico, cheio de histórias, loucamente divertido, é um livro para aromatizar o nosso Natal. Ah, e reconhecendo que somos um grande país para «puns», o autor fixou, agora, residência em Portugal. Fim dos «puns» e do parêntesis.

Falo, por fim, de dois livros outonais. De Auschwitz com Amor, de Daniel Seymour, foi considerado um dos livros de 2022 nos EUA. O autor, impressionado com a narrativa da sua sogra, sobrevivente do campo de morte nazi, converteu em livro, de forma vibrante e tocante, a história dela e da irmã: fuga à  morte, triunfo da vida.

Vibrante, como um manifesto deve ser, é Sobressalto pela Esperança, Apelo a Maçons e a Patriotas, de Jaime Ramos. Poderá Portugal concretizar o potencial de prosperidade que tem? Que obrigações éticas têm todos os patriotas, e sobretudo todos os maçons que militam no PS e PSD, partidos de governo? Uma provocação contra o situacionismo pantanoso.

Estes são os livros de Outubro da Guerra e Paz. Mergulhamos, com Houellebecq, numa infecta peregrinação ao bas-fond do sexo, ascendemos com O Imenso, Sereno e Doce Rio, de Rui A. Teixeira, aos deliciosos tormentos de uma paixão alimentada por uma escrita que trata o sublime por tu. É de ler.

E as chancelas da Rita?

Olhem, na Euforia, chancela de romances contemporâneos, a escritora Eliza Clark criou uma personagem, Irina, que gosta de fotografar rapazes. Boy Parts, Partes Masculinas é um título que já antecipa o perigo: as fotografias são sempre de partes comprometedoras. Há riso e há medo. E não exactamente nas partes certas.

Na Crisântemo, a chancela dos livros práticos, a psicóloga Mafalda Correia e a advogada Marcela Almeida querem ajudar quem se divorcia e tem filhos com Divórcio Consciente, Para Aliar o Direito à Parentalidade. Ou não fosse Portugal o segundo país europeu com mais divórcios, 60 em cada 100 casamentos. Pelos vossos filhos, leiam!

A Crisântemo da Rita Fonseca tem outro miminho. Do psicólogo Helder André Matos, publica A Vida Passa Depressa, Mas Ainda Há Tempo, um livro que apresenta 17 consultas acompanhadas por uma Banda Sonora da Vida. Para quem sofre ou tem doença mental? Não, nada disso, para nós, humanos, que queremos dar sentido à vida.

Manuel S. Fonseca, editor

Uma bala a divagar

Claudine no filme “The Party”

Dois deuses juntos, era o que eles, em Aspen, eram. E acrescento, viviam num chalé de que, se nos puxar o chinelo para a analogia, o Olimpo seria um mero sucedâneo. Nesse Inverno de 1975/76, a branquíssima Aspen nem era bem ou só Aspen, era mais uma Sodoma e Gomorra moderna. Festas, se chamarmos festas a orgias, montanhas e slaloms e slaloms de drogas: tanta neve como coca. Ali viviam Jack Nicholson, Michelle Pfeiffer, Kevin Costner. E deixem que, na primeira cena em que os apresento, Claudine Longet esteja, aos gritos, a proibir Vladimir “Spider” Sabich de ir a uma festa, à festa do “Best Breast”, a festa do melhor peitinho, traduzo eu, e não estamos, se bem sei, a falar de “barbecues”.

Sabich era um dos mais queridos e lambidos atletas olímpicos, que meia América queria meter na cama. Solteiríssimo, com tanta vocação para o esqui, de que era campeão olímpico, como falta de vocação para a monogamia. Convidara, porém, Claudine, e com Claudine os três filhos dela, a virem viver com ele naquele paradisíaco resort de neve: “Erros meus, má fortuna, amor ardente.”

Mas quem não se apaixonaria pela formosa Claudine? Com aquela suavidade tão “mignonne” da Françoise Hardy de “tous les garçons et les filles”, Claudine começou a dançar em França e, picada pelo deletério sonho americano, viria a ser corista em Las Vegas, onde encontrou o cantor de voz mais mimosa da América, Andy Williams. Diz-se que Andy a conheceu quando Claudine mudava um pneu – nesse tempo, uma arte – e ele parou para a ajudar. É lenda, mas imprima-se a lenda.

O que não é lenda é que tiveram um casamento feliz, que nem o divórcio espatifou, e três filhos. Claudine ganhou fama e eu, em Luanda (1970?), delirei a vê-la em “The Party”. comédia de Blake Edwards, com o famoso Peter Sellers. Claudine cantava uma das suas baladas delicodoces. Ouvia-a Sellers, que interpretava um jovem indiano (ó repugnante cena de apropriação cultural!) caído de pára-quedas na festa onde não conhecia ninguém, causando o caos involuntário, como se fosse o Jacques Tati do “Playtime”. E bem, não era só ouvi-la: o fiozinho de voz enleava os ouvidos de Sellers e ele ia-se retorcendo contra a parede, encostando as coxas como uma menina, as mãos apertadinhas contra o baixo-ventre, numa aflição que está entre o desejo e a urgência de uma aliviada micção.  

Ouviram o tiro? Só há um tiro nesta história, “one shot” como dizia o De Niro de “O Caçador”. Sabich tinha chegado a casa, os três filhos de Claudine andavam pelos jardins do chalé. Ele despira-se e estava de cuecas, na casa de banho, para um duche, quando Claudine dispara o tiro que fará um furinho fatal na pele lisa da barriga dele, indo a pequena bala divagar pelo seu atlético estômago e pelo olímpico pâncreas.

A vida de Sabich e Claudine era então uma montanha-russa de ciúmes, clamores e muitas substâncias. Consta que Sabich se preparava para a deixar. Claudine diria, em tribunal, que foi só um acidente infeliz: pediu a Sabich que lhe explicasse como era a segurança da pistola, mas o dispositivo avariou e ela disparou a única bala na câmara: bang, só um bang. O tribunal acreditou: condenou-a a 30 dias de prisão, que Claudine cumpriu, como a proibida canção que os Rolling Stones lhe dedicaram conta, aos fins de semana. Claudine, logo no julgamento, apaixonou-se pelo seu advogado de defesa, que deixou a mulher e dois filhos, para casar com ela. Vivem, ainda hoje, num chalé, muito perto do chalé em que, um só tiro, morreu o infausto Sabich, namoradinho de meia América.

Publicado no Jornal de Negócios