
Não tínhamos papéis e fomos à aventura. Atravessámos Espanha, ainda Franco fuzilava anarquistas. Eu ia com o meu amigo Tony. Carregávamos ambos a nossa africaníssima pós-adolescência dos vinte anos. Em Hendaye, como duas personagens dos “Passos em Volta”, de Herberto, fomos por uma cerveja nocturna na barra do mais solitário e frio bar daquelas ruas bascas e francesas. Depois, voltámos à estação e dormimos no chão, ao lado dos imigrantes magrebinos.
Esperávamos o comboio que nos levaria a Grenoble. Íamos, nómadas, entalar-nos entre o alcantilado frio dos Alpes e o desejo de saber, que um curso de sociologia nos poderia dar. Acolheram-nos dois angolanos, o Juju e o Chinho. Juntos, éramos, apesar do nosso revolucionário independentismo, o raio do velho e colonialíssimo selo de povoamento, preto, mulato e dois pulas, bizarro grupo naquele mar negro francófono que era, então, a universidade de Grenoble, a Patrice Lumumba de França, como o nosso irreversível anti-sovietismo ironizava.
Não tínhamos papéis, o Toni e eu, e ficámos a morar, clandestinos, nos quartos que os nossos amigos tinham na residência universitária. Gelávamos as garrafas de cerveja, pendurando-as numa toalha do lado de fora da janela. Fatiávamos fraternalmente a festa de um frango, lamentando que em Grenoble não soubessem fazer churrasco, e tivessem a mais transcendente ignorância do que fosse o jindungo.
Veio de passagem o Abílio, cunhado do Juju: trazia sonoras notícias de Luanda. Dos combates na cidade, da embriaguez da mudança. Eu tinha então uma sensibilidade muito estremecida. E pensei: o que fazem os meus 21 anos aqui, nesta Grenoble absurda, em que se gelam cervejas, em 15 minutos, numa toalha do lado de fora da janela?
Vim à boleia com o Abílio até Zurique. Comprei o bilhete para Lisboa. Gastei os últimos francos num cachorro-quente com mostarda de Dijon. E eis o dilema que eu estava com ele, dinheiro para comprar o bilhete para Luanda: onde é que vais sacar o kumbu, meu?
Havia em curso uma ponte aérea. Centenas de aviões: vinham cheios e voltavam vazios. Fui à Força Aérea em Monsanto. Declarei-me indigente e pedi aos militares que me levassem à boleia para Luanda, num desses desolados vôos. No rosto deles desenhou-se o primeiro frémito de perplexidade que vi na vida. Da perplexidade ao paródico nonsense vai um passo irreflectido. Só se eu assinasse uma declaração, assumindo que ia como “povoador” para Angola. Nessa noite, estava num Boeing, único passageiro, a sobrevoar África, o futuro aeroporto 4 de Fevereiro como destino.
Não sei se pensei ou não excitadamente em Deus, mas eram quase seis da manhã quando aterrei na parte militar do aeroporto. Desci para a pista, ao ombro, a guerreira mochila, que guardara da tropa inacabada; na mão, a minha enternecida Hermes Baby, a mais suave e doce máquina de escrever que conheci. Saí por um portão manhoso, nem alfândega, nem passaportes, e fui, povoador e apeado, por esse caloroso bafo matinal de Luanda, até à casa dos amigos que ainda sabia lá estarem e ocupavam a casa do muadiê Abílio, perto do aeroporto. Bati. Abriram. Um surpreendido odor da muita liamba da noite perguntou-me: “Pôôô, meu, komé ke tás aki?”
Escrevo esta crónica para a Alice e o Artur, meus pais. Foi um choque, saberem-me de novo no olho do furacão angolano. Mas agora, na calma eternidade a que se recolheram, gostava que sorrissem com esta modesta história, prova irrefutável de como a encantadora imaginação da vida quis cumular com um módico de transumante aventura este vosso filho.
Publicado no Jornal de Negócios
