Um avião para Luanda

Essa era então a Lua a que eu ia voltar

Não tínhamos papéis e fomos à aventura. Atravessámos Espanha, ainda Franco fuzilava anarquistas. Eu ia com o meu amigo Tony. Carregávamos ambos a nossa africaníssima pós-adolescência dos vinte anos. Em Hendaye, como duas personagens dos “Passos em Volta”, de Herberto, fomos por uma cerveja nocturna na barra do mais solitário e frio bar daquelas ruas bascas e francesas. Depois, voltámos à estação e dormimos no chão, ao lado dos imigrantes magrebinos.

Esperávamos o comboio que nos levaria a Grenoble. Íamos, nómadas, entalar-nos entre o alcantilado frio dos Alpes e o desejo de saber, que um curso de sociologia nos poderia dar. Acolheram-nos dois angolanos, o Juju e o Chinho. Juntos, éramos, apesar do nosso revolucionário independentismo, o raio do velho e colonialíssimo selo de povoamento, preto, mulato e dois pulas, bizarro grupo naquele mar negro francófono que era, então, a universidade de Grenoble, a Patrice Lumumba de França, como o nosso irreversível anti-sovietismo ironizava.

Não tínhamos papéis, o Toni e eu, e ficámos a morar, clandestinos, nos quartos que os nossos amigos tinham na residência universitária. Gelávamos as garrafas de cerveja, pendurando-as numa toalha do lado de fora da janela. Fatiávamos fraternalmente a festa de um frango, lamentando que em Grenoble não soubessem fazer churrasco, e tivessem a mais transcendente ignorância do que fosse o jindungo.

Veio de passagem o Abílio, cunhado do Juju: trazia sonoras notícias de Luanda. Dos combates na cidade, da embriaguez da mudança. Eu tinha então uma sensibilidade muito estremecida. E pensei: o que fazem os meus 21 anos aqui, nesta Grenoble absurda, em que se gelam cervejas, em 15 minutos, numa toalha do lado de fora da janela?

Vim à boleia com o Abílio até Zurique. Comprei o bilhete para Lisboa. Gastei os últimos francos num cachorro-quente com mostarda de Dijon. E eis o dilema que eu estava com ele, dinheiro para comprar o bilhete para Luanda: onde é que vais sacar o kumbu, meu?

Havia em curso uma ponte aérea. Centenas de aviões: vinham cheios e voltavam vazios. Fui à Força Aérea em Monsanto. Declarei-me indigente e pedi aos militares que me levassem à boleia para Luanda, num desses desolados vôos. No rosto deles desenhou-se o primeiro frémito de perplexidade que vi na vida. Da perplexidade ao paródico nonsense vai um passo irreflectido. Só se eu assinasse uma declaração, assumindo que ia como “povoador” para Angola. Nessa noite, estava num Boeing, único passageiro, a sobrevoar África, o futuro aeroporto 4 de Fevereiro como destino.  

Não sei se pensei ou não excitadamente em Deus, mas eram quase seis da manhã quando aterrei na parte militar do aeroporto. Desci para a pista, ao ombro, a guerreira mochila, que guardara da tropa inacabada; na mão, a minha enternecida Hermes Baby, a mais suave e doce máquina de escrever que conheci. Saí por um portão manhoso, nem alfândega, nem passaportes, e fui, povoador e apeado, por esse caloroso bafo matinal de Luanda, até à casa dos amigos que ainda sabia lá estarem e ocupavam a casa do muadiê Abílio, perto do aeroporto. Bati. Abriram. Um surpreendido odor da muita liamba da noite perguntou-me: “Pôôô, meu, komé ke tás aki?”

  Escrevo esta crónica para a Alice e o Artur, meus pais. Foi um choque, saberem-me de novo no olho do furacão angolano. Mas agora, na calma eternidade a que se recolheram, gostava que sorrissem com esta modesta história, prova irrefutável de como a encantadora imaginação da vida quis cumular com um módico de transumante aventura este vosso filho.  

Publicado no Jornal de Negócios

E o eu que eu era, está à esquerda da linda menina de chapéu, óculos escuros, caracóis e de mãos postas, como quem reza

O mais belo dos filmes

a inconsumada despedida

Ao João Bénard, ao Manuel Cin­tra Ferreira

A porta abre-se para a direita, os vio­li­nos entram pela esquerda e a madura silhu­eta de uma mulher recorta-se con­tra a luz do deserto. A mulher, pas­sos hesi­tan­tes, dan­ça­dos, vai da porta para a varanda tosca, a câmara atrás dela. O contra-campo revela-lhe a beleza ansi­osa de anos de sacri­fí­cio e renún­cia. Põe a mão sobre os olhos para deci­frar o vulto de cavalo e cava­leiro que o hori­zonte empurra em direc­ção à casa. Atrás dela surge a indi­fe­rença inter­ro­ga­tiva de um marido e ouve-se a pri­meira pala­vra: “Ethan?” A res­posta sufoca na gar­ganta da mulher. Uma rubra como­ção acorre-lhe às faces, à res­pi­ra­ção que, mais do que o vento, agita a gola da blusa, o avental.

Em 40 segun­dos, contraluz e contracampo, a porta que se abre, três acto­res, um só hipo­té­tico nome e a vibra­ção de um vio­lino, John Ford conta, a quem tenha olhos para ver, uma his­tó­ria de amor proibido.

O filme, que uma porta abre e outra porta fecha, é The Sear­chers. Sendo o mais belo dos mais belos dos fil­mes de Ford, é o mais falso wes­tern que já vi. Os cava­los, os índios, até a épica pas­sa­gem das esta­ções, o cíclico galope de des­trui­ção e vin­gança, mal dis­far­çam o ressentido ven­da­val de amor proi­bido, que assom­bra as per­so­na­gens, todo o filme.

Disse-se que o som­brio cava­leiro é um Ulis­ses e The Sear­chers a Odis­seia do homé­rico Ford. Mas o cão que da varanda ladra ao fan­to­má­tico Ethan (John Wayne) não é Argos. E muito menos é Pené­lope esta mulher que, farta de espe­rar, casou e teve filhos. Nem os bra­ços do irmão se abrem a Ethan com o afecto de Eumeu ou Telémaco.

os olhos maus de Ethan

Esque­ça­mos Homero, pen­se­mos em Sófo­cles. Longe de Ítaca, no Texas de 1868, Ethan não regres­sou para des­can­sar de pro­di­gi­o­sas aven­tu­ras. É a morte, a morte can­sada, que chega a cavalo. O que depois sucede, a via cru­cis de ata­ques, incên­dios, vio­la­ções, escal­pes, é a ema­na­ção do con­flito que dila­cera Ethan, o arra­sa­dor reflexo do rai­voso desejo dele pela mulher do irmão. E pode tam­bém ser a coisa lar­var que na mulher foi o incum­prido amor ao marido por tanto lhe amar o irmão.

Os olhos maus de Ethan, olhos de John Wayne, são pio­res do que os olhos cegos de Édipo e a boca dele beija duas vezes a mulher que não pode amar. Beija-a, púdico, na fronte, mas são bei­jos que ras­gam como bacan­tes. E vemos a mulher, sozi­nha no quarto, aca­ri­ciar o capote dele, num plano que vai bus­car a luz a uma janela de Ver­meer. É um capote mili­tar, de devas­ta­ção e crime, que os dedos clan­des­ti­nos dela afa­gam na final e incon­su­mada despedida.

Filme que com João Bénard vi pela pri­meira vez, último filme que vi sen­tado ao lado do Cin­tra, gos­tava de dizer aos dois que The Sear­chers não é um wes­tern, nem um épico. Pura tra­gé­dia grega, caval­gada de res­sen­ti­mento, vin­gança e morte, só a porta que se fecha lhe con­se­gue pôr fim.

a porta que se fecha: the end

Ela era a dança

Foi a abrir generosamente as pernas que A Glutona conquistou Paris. Levantava a perna direita, e também a esquerda, a alturas onde eu, saltando, não chegaria com a cabeça. Ainda o cancan se chamava só chahut, A Glutona dançava com as bailarinas Grade de Esgoto, Pau de Virar Tripas, Nini Pata no Ar, mas era à cabeça do altíssimo Valentin, o Desossado, que ela, num salto cavado e decotado, arrancava o chapéu com um subtil toque da ponta do pé.

Vinham vê-la as cabeças coroadas da Europa, e falo já do auge do seu reinado no Moulin Rouge.  Ao futuro rei de Inglaterra, Eduardo VII, num tu cá, tu lá como os caldeireiros, disse-lhe A Glutona, toda fadista: “Hei, tu, ó Gales! Paga-me o champanhe! E és tu que ofereces ou é a tua mãe que convida?”

Vinha desse povo que até o Bloco de Esquerda se arrepia todo: a mãe, lavadeira, o pai, carpinteiro. Família que a Guerra Franco-Prussiana encostou ainda mais à miséria: lavava roupa com a mãe, e o pai levava-a a dançar sobre as mesas das tabernas, para sacar uns cobres – olha lá, o meu, ó amigo! Louise Weber, seu nome de nascimento, deu tudo o que tinha a dar, pele e corpo, mas nunca deixou de dançar e foi a dançar que saiu da lama, como um génio sai da garrafa, e se converteu na rosa-rubra de Paris.

Nua, fotografou-a, primeiro, o marido da avó de Rainier III, o príncipe que um dia seria marido de Grace Kelly. Quem, a seguir, lhe pintou os «rondeurs» dessa carne a que a graça juvenil ainda disfarçava os excessos, foi o grande Pierre-Auguste Renoir. Porém, se além das suas pernas alguém a imortalizou, a Toulouse-Lautrec e à exuberância publicitária das suas cores o devemos.

Falei de lama e do amor à dança, e já estou a enganar os leitores. Da mãe, dessa infância de água e sabão, três corpetes, um avental, sete fronhas e um lençol, ficou-lhe o gosto da roupinha de baixo lavadinha e a cheirar a limpo. Era também esse o seu prazer. O seu corpo ginasticado, cheio e redondo, prodigalizava acrobacias que revelavam as brancas anáguas debruadas a franzidos e pregueados coloridos e, nesse côncavo trono em que as pernas de mulher terminam, a alvíssima e lavada cueca. Eis, e fixemo-lo para a eternidade, o salto de La Goulue, A Glutona: pernas no ar e coxas ao vento.

Era excessiva. Glutona pelo que comia e bebia. Glutona no amor, deitando-se com ricos e pobres, artistas e lúmpen, homens e mulheres, dava-se a quem queria. Ligeira na perna, ligeira no gatilho. Disparou quatro tiros de revólver sobre o marido, Joseph, só um o tocando, de raspão. Ao “Figaro”, veio ele lembrar que já, dois anos antes, ela o tentara alvejar com dois tiros falhados.  Da primeira vez, sim, seis meses antes, ela feriu-o, um tiro e pum, toma lá que já almoçaste. Joseph, o marido, acrescentou: “A minha mulher é uma impulsiva e inconsciente. Perdoo-lhe e recuso-me a apresentar queixa.”

Excessiva e independente, A Glutona, vedeta maior da inauguração do Olympia, que faria depois a glória de Amália, despediu-se do Moulin Rouge e montou uma tenda itinerante, que Toulouse-Lautrec decorou com rutilantes painéis. Foi o começo da decadência: acabaria, em casal, a domar leões, tigres e outras bestas. Um puma meteu mesmo os dentes ao marido e acabou-lhe com a carreira. Tudo o vento levou. Gorda, imensa, vinha com um tabuleiro vender amendoins e cigarros à porta do Moulin Rouge só para cheirar e lamber a antiga glória. Está, agora, enterrada ali perto, no cemitério de Montmartre. Ao padre, que a absolvia, ainda disse: “Será que o bom Deus me perdoa? Sabe, eu sou A Glutona!”

As noites líricas da STASI

O que diria Oscar Wilde, que já se abespinhava com a facilidade com que floresciam poetas de todos os canteiros, se soubesse que a STASI, a odiosa polícia política alemã, também cultivava o género?

A STASI obrigava os seus presos a virem reconstituir a própria prisão para registo futuro

Quem sabe se um dia não virá à luz um “Círculo de Poesia Vladimir Putin” ou mesmo um “Círculo Poético Experimental T. S. Eliot do Chega”? O doloroso prazer da poesia penetra até no negrume da mais cerrada noite. Pergunto: querem mais cerrada noite do que as noites da STASI, a PIDE da sombria e extinta República Democrática Alemã? Insisto: se foi longa a noite da PIDE, mais cerrada foi a noite da STASI, que fechou Berlim dentro de um muro e matava quem o quisesse saltar.

Ora, não obstante, a fulminante poesia alastrou pelos corredores e gabinetes, pelas duras cadeiras em que se interrogavam cidadãos prevaricadores, inimigos do bom povo guiado pelo profético Honecker. Logo nos anos 60, e vejam a diferença com a lamentável PIDE, a STASI criou um Círculo de Trabalho de Escrita Checkista, convocando simbolicamente o nome da mais sinistra política soviética, a Checka, fundadora de todas as Pides. Metáfora ou não, os diligentes informadores e agentes, torturadores incluídos, liam poemas em noites líricas, aquecendo o gélido bairro da Adlershof, onde estava sediado o Adamastor que eram as suas instalações.

Mas foi em 1982, e limpem-se a esta toalha os cursos de escrita criativa que por aí pululam, que a STASI mostrou a sua fácies vanguardista. Chamou um poeta, Uwe Berger, e confiou-lhe uma missão: elevar a consciência dos chupa-galhetas da STASI (para não estar sempre a chamar-lhes bufos ou sequazes) aos mais altos píncaros artísticos. Era preciso compreender os subterrâneos da expressão artística e detectar mesmo os mais ténues segundos sentidos, a filigrana subliminar que os intelectuais dessa Alemanha do Leste vertiam em herméticas prosas ou no nonsense de poemas.

Uwe Berger não era bem um poeta. Nem precisava de pertencer ao partido para ser com ele unha e carne unívoca. Era, em muito pior, farinha desse saco, como de algum forma o foi o tão cantado Bertolt Brecht. Adiante! Uwe caprichou e os arquivos da STASI estão hoje repletos de poemas dactilografados revelando o domínio da rima interna, externa e cruzada, de tercetos ou quintilhas, uma ou outra estrofe irregular. O soneto camoniano não foi ignorado e, por amor a Shakespeare, cultivou-se até o pentâmetro iâmbico.

O PIDE Rosa Casaco não tinha um quarto de alma de fotógrafo? Façam o favor de acreditar: descobriram-se vocações na STASI. Uma foi a do bufo Gerd Knauer. Talvez fosse ele um dos bufos de um poeta alemão, Gert Neumann, que a STASI fez vigiar primeiro pela própria mãe, depois pela mulher. E o que quero dizer é que a inspiração poética arrebanhou o bufo Knauer. Apareceu na STASI com um poema de 52 páginas. Título, “O Estrondo”. Era um trovão, um estampido, um poema fluxo de consciência tão tonitruante como “O Uivo”, de Allen Ginsberg. Tinha havido, por erro informático, um falso alarme de ataque nuclear americano e o poema falava de “o horror / de que tudo acabe / horror / das explosões” e cantava o anúncio do trovão depois de “um relâmpago accionar o disparo / de três misseis americanos dos seus silos” até ao anticlímax de serem só “três foguetões meteorológicos” para estudo do ambiente.

Convertido ou não à beat generation, o segundo-tenente Knauer deixou de bufar, só bufando coisas vagas e inconsequentes. E foi o professor Uwe que o denunciou a ele, escrevendo num relatório que Knauer sugeria que a ideia de revolução social de Marx podia aniquilar a humanidade e isso era sinal da quebra de lealdade do poeta-tenente e da sua rendição ao fatal idealismo. Mesmo num país com 600 mil bufos, a poesia pode ser perigosa.

O cabaret não era da coxa

O delírio ululante, primitivo e humaníssimo do Cabaret Voltaire. Pintou-o Marcel Janco

Ao pé deles, mesmo doze deputados do Chega pareceriam uns meninos de bibe.  Foi há mais de cem anos, a 5 de Fevereiro de 1916, sangrava a Europa, trincheiras pejadas de cadáveres, a infantaria das nações europeias a marchar cega, oferecendo a carne aos canhões na I Grande Guerra. Foi na Suíça, na cidade de Zurique, desmentindo a pascácia ideia de Suíça que Orson Welles popularizaria depois. Nessa noite, inauguraram a sala muito mais do que os 50 que nela caberiam. Chamaram-lhe Cabaret Voltaire, e mesmo eu, que frequentei vários cabarets da coxa, do Lobito, Luanda e Lisboa ao La Chunga em Cannes, nunca lá pus os pés. Nem eu, nem Lenine, e já lá vou.

A noite de 5 de Fevereiro foi alucinada. O Cabaret Voltaire foi o antro do caos, do delírio, da mastodôntica transcendência. O que estava nessa sala do número 1 da Spiegelgasse, na neutra Zurique, era uma manada tresmalhada. Hugo Ball e Emmy Hennings foram o casal fundador. Eram alemães, artistas, trânsfugas da guerra, anarcas, místicos, sonhadores de um sonho já encostado ao turbulento seio do desvario. E vieram romenos, russos, franceses, irlandeses, todos os exilados da Europa, traseiros e tintins a fugir da guerra. É mesmo Hugo Ball que me está a dizer ao ouvido: “A Suíça era então uma gaiola cercada por leões a rugir.”

A guerra não chegava a Zurique. E a turba que se juntou no Cabaret Voltaire, entre a raiva, o desespero e a desmedida e abençoada provocação gratuita, mergulhou essa sala e essa noite no negríssimo magma do inconsciente e na primeiríssima luz do mundo, faiscante e explosiva. É indescritível a potente balbúrdia, o som do tambor, talvez guitarras, gemidos, gritos de récitas em palavras desarticuladas que nunca mais ouvidos humanos escutariam, quase canções, quase dança, o rabo do romeno Tristan Tzara a imitar o ventre de uma bailarina egípcia. Uma embriaguez indefinida e uma emoção tóxica tomaram conta das almas e as almas tomaram conta dos corpos. Peço que os lisboetas da minha geração tenham a delicadeza que não fazer comparações lorpas com o Frágil ou o Lux. Era uma boémia em fogo vivo. Nas paredes havia telas de Kandisnki ou Klee, de Modigliani ou Picasso. Uma tela de Marcel Janco eternizou um fugaz vislumbre desse delírio ululante, primitivo e humaníssimo.

No número 14 dessa rua, ainda o nocturno charivari do Cabaret Voltaire lhe roçava porta e janelas, morava Lenine, o revolucionário russo, de olhos mongóis, fugido ao czar. E o que quero dizer, com licença do presidente Marcelo e mesmo de António Costa, nosso novo senhor absoluto, é que Vladimir Ilitch Ulianov, Lenine de nome de guerra, nunca pôs os pés no Cabaret Voltaire. Marcelo teria feito uma selfie a dançar com a Emmy, Costa poria o seu seráfico sorriso a contemporizar com as loucas artes – Lenine, não! O espavento das rajadas de soluços, os suspiros eróticos entrecortados com sons lancinantes de máquinas, os roucos mugidos animais eram um excesso que a pacóvia ideia de revolução de Lenine não suportaria. A transgressão do metro e sessenta e cinco de Lenine era secreta e escondida entre paredes: vivia na mesma rua do Cabaret Voltaire com a sua mãe, matriarca que vigiava as outras duas mulheres do filho, a mulher, Nadejda Krupskai, e a amante, a franco-russa Inès Armand.

A alguns metros do caos, da mais exuberante experimentação artística, dessa DADA, que foi antecâmara da beat generation e do punk, Lenine vivia o seu secreto e silencioso ménage à trois. Sem máscaras africanas na parede, sem rugidos excêntricos, porém, consentidíssimo.

Luxo e ademanes

cauda aberta em todo o seu esplendor

As duas pavoas saíram à rua e vieram até à porta de minha casa. Moram ali, nos jardins do palacete da Marquês de Fronteira. O pavão preferiu o muro alto. Quando me pressentiu a fotografá-lo, abriu a cauda. Só vaidade, luxo e um descarado prazer exibicionista. Que inveja!

pavoas em peregrinação pelo Bairro Azul
No seu trono, em remanso imperial

O homem democrata na cama

Angie Dickinson: olhares e requebros

Bem sei, ó horror fatal do nosso tempo, que a mulher e o homem acabaram, o próprio sexo foi extinto, o género é fluído e os genitais são um percalço que atesta a irrelevância da biologia. Mas deixem-me, num acesso ululante de nostalgia, falar de Angie Dickinson. Ela foi no ano pré-histórico de 1959, a mulher. Assim, conceptual, substantiva, absoluta: a mulher. Capaz de tornar quente a Guerra Fria, que agora voltou na forma de úlcera chamada Putin.

Ela foi, insisto, a última mulher hawksiana. Sabe do que falo quem a tenha visto de collants negros, em “Rio Bravo”, numa vilória de western, rodeada de homens com um revólver em cada anca e uma Winchester nos braços. Howard Hawks filmou-lhe o cabelo, o mais belo cabelo cor de champanhe da história do cinema, a boca de absinto, e Angie Dickinson converteu-se num misto de doçura e desejo, misto explosivo com mecha lenta, saboreado em muitas palavras e silêncios, olhares e requebros, mãos e aquelas emotivas e longas pernas.

Angie era mulher, carregada de sexualidade sem pressas, interessada pelo homem, com um propósito pedagógico de o beijar e despir, restituindo-o à sua primeva condição. Com um bizarro requisito, quase constitucional: queria que o homem fosse democrata. Angie adormeceu muitos homens, mas que fosse do conhecimento dela nunca dormiu com um republicano.

E nem sei se vos surpreendo: se ela beijava John Wayne em “Rio Bravo”, não foi a esse gigante republicano que concedeu favores, mas a Frank Sinatra, democrata genuíno. Durante dez anos foram amantes. Sinatra parava o seu Dual-Ghia, automóvel raríssimo, descapotável, que imagino vermelho incandescente e branco imaculado, nas traseiras da casa de Angie. De manhã, os homens da recolha do lixo paravam o camião e Angie ficava encantada a vê-los rabiar à volta do faiscante espadalhão.

O que eu quero dizer é que Angie queria Sinatra na sua cama e não o queria em mais lado nenhum. Já fora casada e casaria, depois, com Burt Bacharach, o compositor da canção viciante que é “Raindrops Keep Falling in My Head”. Em nenhum dos casamentos encontrou a felicidade que teve nas noites fortuitas – e, como Angie cultivava o irónico oxímoro, foram mesmo muitas noites! “Era maravilhoso, quase perfeito”, ouvi eu com estes meus ouvidos, bem melhores do que os meus olhos, dizer à voz rouca de Angie.

E o que ela fez questão de explicar é que não se amavam para casar. Queriam o corpo, a língua, ventre e pernas, o riso, o suor um do outro. E esse desejo intermitente, insustentável e logo apaziguado, durou dez anos. É verdade: na sala de estar de Angie, agora com 90 anos, está um totem de Sinatra em tamanho real. Mas na estante está também uma fotografia, mais discreta, mas inescapável, de John Kennedy, o presidente a que uma bala, em Dallas, no Texas, conferiu a indesejada imortalidade.

Sinatra apresentou-os. É possível, aliás, que tenha sido Sinatra a apresentar a Kennedy todas as mulheres que ele conheceu. Dickinson, com militância vibrante, veio participar na campanha eleitoral e foi a sete estados com o presidente. O que ganharam, John e Angie, nesses sete estados em que a vitória lhe escapou? A fotografia na sala de Angie está muda e calada. Angie sorri, e diz que chegou a escrever cem páginas sobre a relação dos dois. Destruiu-as porque, jura, ninguém acreditaria que não tinha havido nada. Sobre o nada escreveu o esquecível filósofo Jean-Paul Sartre 700 páginas. Estou certo de que seriam bem mais excitantes as desaparecidas cem páginas sobre o nada de Angie Dickinson.

Paula Rego, a pureza mais cruel

As Meninas, velha e nova edição

Hoje, quando o mundo se despede de Paula Rego com uma vénia, não consigo deixar de me lembrar que a minha vida de editor lhe deve muito. Ainda não existia a Guerra e Paz, tinha eu acabado de fundar, com amigos, a Três Sinais editores, uma musa ou um deus – e disso é que já não me lembro – plantou na minha pobre cabeça a ideia de que devia fazer um livro que combinasse a pintura de Paula Rego e a escrita de Agustina. Com uma gentileza serena, Paula Rego, ao telefone, aceitou, prometeu que faria novos slides de mais de uma centena de criações suas e, de Londres, remeteu todos os contactos para Manuel de Brito, seu braço direito na Galeria 111.

Começava aí a aventura de uma das mais belas edições que já fiz, As Meninas. Das Meninas da obra de Paula Rego, escreveu Agustina que «têm o rosto das criadas que andavam pela casa da Ericeira e que tinham duras mãos capazes de assassinarem alguém.» Paula Rego, a artista, tinha essa consciência assassina ou, e em tudo continuo a citar Agustina, a pureza mais cruel. Essa pureza e essa crueldade vão fazer falta ao mundo. Fica a tremenda obra cheia de gritos e medos. Um pequenino livro da Guerra e Paz, As Meninas, é um humilde, mas belíssimo testemunho que eu, seu editor, guardarei como um tesouro.

Cito outra vez Agustina: «Assim passamos e as coisas passam por nós.»