O homem democrata na cama

Angie Dickinson: olhares e requebros

Bem sei, ó horror fatal do nosso tempo, que a mulher e o homem acabaram, o próprio sexo foi extinto, o género é fluído e os genitais são um percalço que atesta a irrelevância da biologia. Mas deixem-me, num acesso ululante de nostalgia, falar de Angie Dickinson. Ela foi no ano pré-histórico de 1959, a mulher. Assim, conceptual, substantiva, absoluta: a mulher. Capaz de tornar quente a Guerra Fria, que agora voltou na forma de úlcera chamada Putin.

Ela foi, insisto, a última mulher hawksiana. Sabe do que falo quem a tenha visto de collants negros, em “Rio Bravo”, numa vilória de western, rodeada de homens com um revólver em cada anca e uma Winchester nos braços. Howard Hawks filmou-lhe o cabelo, o mais belo cabelo cor de champanhe da história do cinema, a boca de absinto, e Angie Dickinson converteu-se num misto de doçura e desejo, misto explosivo com mecha lenta, saboreado em muitas palavras e silêncios, olhares e requebros, mãos e aquelas emotivas e longas pernas.

Angie era mulher, carregada de sexualidade sem pressas, interessada pelo homem, com um propósito pedagógico de o beijar e despir, restituindo-o à sua primeva condição. Com um bizarro requisito, quase constitucional: queria que o homem fosse democrata. Angie adormeceu muitos homens, mas que fosse do conhecimento dela nunca dormiu com um republicano.

E nem sei se vos surpreendo: se ela beijava John Wayne em “Rio Bravo”, não foi a esse gigante republicano que concedeu favores, mas a Frank Sinatra, democrata genuíno. Durante dez anos foram amantes. Sinatra parava o seu Dual-Ghia, automóvel raríssimo, descapotável, que imagino vermelho incandescente e branco imaculado, nas traseiras da casa de Angie. De manhã, os homens da recolha do lixo paravam o camião e Angie ficava encantada a vê-los rabiar à volta do faiscante espadalhão.

O que eu quero dizer é que Angie queria Sinatra na sua cama e não o queria em mais lado nenhum. Já fora casada e casaria, depois, com Burt Bacharach, o compositor da canção viciante que é “Raindrops Keep Falling in My Head”. Em nenhum dos casamentos encontrou a felicidade que teve nas noites fortuitas – e, como Angie cultivava o irónico oxímoro, foram mesmo muitas noites! “Era maravilhoso, quase perfeito”, ouvi eu com estes meus ouvidos, bem melhores do que os meus olhos, dizer à voz rouca de Angie.

E o que ela fez questão de explicar é que não se amavam para casar. Queriam o corpo, a língua, ventre e pernas, o riso, o suor um do outro. E esse desejo intermitente, insustentável e logo apaziguado, durou dez anos. É verdade: na sala de estar de Angie, agora com 90 anos, está um totem de Sinatra em tamanho real. Mas na estante está também uma fotografia, mais discreta, mas inescapável, de John Kennedy, o presidente a que uma bala, em Dallas, no Texas, conferiu a indesejada imortalidade.

Sinatra apresentou-os. É possível, aliás, que tenha sido Sinatra a apresentar a Kennedy todas as mulheres que ele conheceu. Dickinson, com militância vibrante, veio participar na campanha eleitoral e foi a sete estados com o presidente. O que ganharam, John e Angie, nesses sete estados em que a vitória lhe escapou? A fotografia na sala de Angie está muda e calada. Angie sorri, e diz que chegou a escrever cem páginas sobre a relação dos dois. Destruiu-as porque, jura, ninguém acreditaria que não tinha havido nada. Sobre o nada escreveu o esquecível filósofo Jean-Paul Sartre 700 páginas. Estou certo de que seriam bem mais excitantes as desaparecidas cem páginas sobre o nada de Angie Dickinson.

2 thoughts on “O homem democrata na cama”

Leave a Reply

Fill in your details below or click an icon to log in:

WordPress.com Logo

You are commenting using your WordPress.com account. Log Out /  Change )

Twitter picture

You are commenting using your Twitter account. Log Out /  Change )

Facebook photo

You are commenting using your Facebook account. Log Out /  Change )

Connecting to %s

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.