
Já vou falar da bassula, mas deixem que abra a boca de espanto – mesmo à hora da minha morte, ainda hei de estar a abrir a boca em buelos e expletivos ualalás! A maka que estamos com ela é esta, como é que Jean- Paul Sartre conseguia subir aos ramos da mangueira do meu quintal, em Luanda? A artrite reumatóide já o apertaria por essa altura, e trepar, diga o que disser Simone de Beauvoir, nunca foi o seu forte. Mas subia e lá estava, três metros acima do chão, ao meu colo, a deliciar-se com os aromas das inflorescências paniculadas, que é como se chama ao que não chegam a ser flores numa mangueira. Eu tinha uns promíscuos 14 anos e, além de Sartre, comecei a ter ao colo também o refinadíssimo Somerset Maugham e o todo-o-terreno John Steinbeck. Precocidades taradas, portanto.
Ora, não é dessa forma eléctrica de sexo a que se chama literatura que eu quero falar. Quero falar da infantil onda negra de 1967, que invadia a minha rua, às cinco en punto de la tarde. Os candengues deslargavam-se da escola primária, na João de Deus, e desciam a minha Alberto Correia em direcção aos musseques Marçal e Rangel. Era uma nuvem de futuro, de pele preta e batas brancas, uma irreprimível alegria, a irrespeitosa gritaria a que se chama felicidade.
E se eu era feliz na minha mangueira, eles também queriam ser. Sobretudo quando as inflorescências paniculadas já se tinham convertido em sedutoras mangas de casca pincelada a amarelo e a vermelho. Tínhamos uma entente cordiale: era-me concedido o direito a dar-lhes berrida! Eles subiam à mangueira, encostada ao portão da rua, e eu vinha a zunir, dois minutos depois, num quintal de 20 metros, o que lhes permitia bazar com dignidade e alguns dulcíssimos despojos. Gritavam, “olhó muadiê!”, “foge, é o dono!”, e também “pula” ou “biaco”, mimos que enxovalhavam os brancos caras-pálidas como eu, por mais moreno que o Verão tropical nos tivesse pintado, mimos contrapontísticos a esse pejorativo “bumbo”, faca afiada para insultar os de pele preta.
E o que quero dizer, antes da bassula, é que, depois, ficávamos ali, eles na rua, a rir, “eh, dá-me já uma manga, tens muinnntas”, e eu, atrás do portão, “estão verdes”, logo desmentido a muxoxos, “hmm, aquela ali já está madura”.
Até ao dia da bassula. O candengue tinha oito anos. Quando eu apareci, com a minha virgem velocidade catorzinha, o candengue falhou a mão no ramo e despenhou-se dos três metros por onde se tinham passeado Sartre e Steinbeck. Cá em baixo, esperava-o a civilização de 1967, o contador da água canalizada. Teria caído direito, bate-cu limpinho no chão de terra, mas o contador, esse intruso civilizacional fiscalizador, apanhou-o, traiçoeiro, pelo cóccix, subjugado à insuportável dor.
A dor dele era minha dor: o miúdo estava lavado em lágrimas e eu pedia-lhe que não se mexesse, que se deixasse estar, sem que os meus 14 anos soubessem, na verdade, o que fazer. Mas ele não queria ficar e, hoje, pergunto-me se as lágrimas dele eram da dor física, se da humilhante frustração de ter visto o irreverente e subversivo ataque à mangueira e, sobretudo, de ver-me, a mim, o alvo dessa sua pequenina rebelião, a levantá-lo e a ajudá-lo. Também Sartre, Maugham, Steinbeck cairiam, um a um, da mangueira encostada ao portão do meu quintal, copa majestosa a invadir a rua. Ninguém caiu dessa mangueira, nem eu, com a honorabilidade deste candengue caluanda, senhor e dono da sua fatalidade, dando sozinho a volta por cima, sem submissão à piedade alheia. Foi a bassula de maior dignidade que vi na vida.