Como saí da SIC

Se soubesse não teria despido o casaco. Mas foi já sem casaco que me sentei à mesa do English Bar, no Estoril. Do outro lado da mesa estavam Francisco Balsemão e Luís Vasconcelos, que uma velha amizade fazia que fossem como dedos da mesma mão.

O embaraço é uma coisa pessoana, primeiro estranha-se, depois entranha-se. Vejam a cadela Juliana. Pastor alemão de raça, foi surpreendida por uma bomba incendiária na II Guerra Mundial. A bomba caiu à sua frente e Juliana extinguiu-a recorrendo a recursos fisiológicos de carácter líquido: isto é, mijou-lhe em cima e apagou-a. É um embaraço para o inimigo, mas também para quem se defende, ganhar a guerra com um longo jacto de urina. Superado o embaraço, a cadela Juliana foi honrada com a Blue Cross Medal, nobre condecoração para animais.

E volto ao English Bar. Foi em Setembro de 2005. Era, há quatro anos, director de programas da SIC, sucedendo a Emídio Rangel, de quem eu fora o adjunto, durante nove anos. Se não estou, como António Guterres, a tergiversar nos números, nesse outro momento deliciosamente embaraçante da nossa vida política, tudo somado foram 13 anos: a minha mais rica experiência profissional, divertida, dramática, um carrossel emotivo, com os seus embaraços talvez, bem menos, nesses 13 anos, do que os deste governo de António Costa num só ano.

Mas se continuo a divagar nunca mais chego ao English Bar. Saio da SIC com o director-geral, o meu amigo Zé Alberto Bastos Silva. Fomos no Porsche dele e fazia um daqueles calores de Setembro roubado às 13 horas de Agosto. Tirámos os dois os casacos e bazámos. O calor, no casco submarino do Porsche, encharcou-me de suor. Fomos a remoer nas audiências, que andavam pela hora da morte. Quando o Emídio saiu já tínhamos perdido a liderança do horário nobre, mas conservámos a liderança global. Num dos anos do meu consulado consegui mesmo reconquistar – a chocolate com pimenta, o que diz bem da minha tropicalidade – a liderança do horário nobre. Foi um momento de glória – sic transit gloria mundi – que o meu combativo adversário, José Eduardo Moniz, comentou nos seguintes termos, nas coloridas revistas de alto valor intelectual, que tratam das vidas das celebridades: “O Manuel está tão inchado que se o picam com um alfinete rebenta como um balão!”

Chegámos ao English Bar. Avançámos, nós e o suor do infame Porsche, para a mesa de Balsemão. Com informalidade, atiro o casaco para o sofá e sento-me só em camisa. Mal me encosto às costas do cadeirão sinto a camisa chupar a napa que o forrava. Entre a minha camisa suada e a napa do cadeirão forjou-se uma relação sexual, interpenetrante, que só o Aretino dos Sonetos Luxuriosos saberia cantar: nem Deus separaria aqueles corpos colados, a fina camisa, a já fanada napa do cadeirão.

O tema da conversa era delicado, na mesa o futuro da SIC e uma proposta que, se não a aceitasse, ditaria a minha saída. Tentei afastar-me das costas da cadeira e senti que arrancava a napa. A minha cabeça só pensava no que aconteceria quando me levantasse.

Confesso com orgulho: fui estóico. O almoço continuou, vivo, com elegância de parte a parte, o que descambou, estando o Zé Alberto e o Luís já em viagem pelo cosmos, na amizade que me liga, hoje, a Francisco Balsemão. Agora vejam, ponho-me de pé e a napa do cadeirão veio colada à rica camisa. Toda! Disfarcei com o casaco, escondendo o grande pedaço de cadeira que as costas da camisa acabavam de roubar. Nesse dia, saí da SIC, mas trouxe para casa a napa de um cadeirão do English Bar.

O espião de ouro e chamas

pedido emprestado a “O Caçador”

O espião era a mais bela paisagem mental da Guerra Fria. Dizia-se que qualquer um daria o cu e cinco tostões para ser da CIA ou do KGB. Mas nem vale a pena exagerar, nem hoje a expressão tem o sabor desse tempo: oh, onde andarão as neves e as mulheres de então.

O que sei é que em Julho de 1974, quando fazia mais frio no Huambo, uma fina camada de gelo cobria, por vezes, os charcos de água no mato à volta da Escola de Aplicação Militar (EAMA), onde eu fazia o curso de oficiais milicianos. Fomos a mais desabrida recruta que algum dia cruzou a porta de armas da EAMA. Protestámos, fizemos levantamento de rancho, acertámos com papos secos mais rijos do que cornos na cabeça de um sargento mais casmurro, uma anarquia que os meus maravilhosos instrutores viam com a resignada paciência e a ultrajada sabedoria de mais velhos. E eram eles, o alferes Caji, grande basquetebolista luandense, e o africaníssimo furriel Neto, que eu ia jurar que se chamava também Agostinho.

Lembro-me, com uma doce angústia, que trazia dois livros nos bolsos da farda. Um era do Mircea Eliade, “O Sagrado e o Profano – A Essência das Religiões”, edição de bolso da LBL Enciclopédia. O outro era de Herberto Helder, “A Vocação Animal”, publicado em Maio de 71 pela dom quixote. Eram os meus desaceleradores. E eram, também, as linhas de fuga dessa recruta quente, com assembleias gerais e uma comissão na qual se aboletava a ventania dos meus ímpetos revolucionários. O livrinho de Herberto, dividido em duas partes, “Os Animais Carnívoros” e “A Festa do Crime”, reunia textos de prosa poética, ou melhor, de uma prosa implacável, narrativas visionárias, a roçar a loucura, a nudez.

Na sua cruel exuberância, era um livro vagaroso, a começar pela dedicatória, “a uma devagarosa mulher”. E no poema que então eu preferia, Herberto oferecia esta divagação: Aprendi como é devagar – comer devagar, sorrir, dormir devagar, cagar e foder – aprendi devagar.

Hoje, as imagens desses dias voltam, quase estrangeiras, esquivas. E, tal como Herberto, aprendi talvez outras coisas. Na versão de Maio de 1981 da sua “Poesia Toda”, Herberto modificou aquele poema que deambulou, vagoroso e nu, pela minha cabeça. Deu-lhe esta versão: “Aprendi como é devagar – comer devagar, sorrir, dormir devagar, pensar e morrer – aprendi devagar.

Quando se caminha para a morte – devagar, devagar –, ainda alguém quererá ser espião? Foi no quente ano seguinte, no Lobito, era eu recepcionista no hotel de uma ditatorial alemã (estremeço só de a lembrar, aos gritos, no terraço sobre a Restinga), registou-se um cliente, um americano negro. Descobrimos, no quarto dele, nesse tempo de escassa comunicação, um telefone-satélite, gravadores, panóplia tecnológica de abrir a boca de espanto. Terá sido o mais perto que estive de um espião da CIA?

E eis onde queria chegar, às marchas finais da recruta. Caminhámos 30 quilómetros, a G3 e uma mochila eram, então, mais leves do que penas para os meus 20 anos. Montámos acampamento numa colina sobre um rio – o Lépi? – e fazíamos patrulhas. Numa madrugada a abrir-se em manhã, das mais belas da minha vida, ao sairmos do mato para uma clareira de capim alto, um antílope de grande porte, macho, as cruéis hastes a incendiar o começo do dia, olhava-nos. Ali estava, imperial e olímpico, indiferente aos pequeninos cadetes portugueses, ao chocalhar das G3, ao nosso espanto urbano. Era soberbo e soberano. O antílope, herbertiano, respirava devagar. Vi nele uma estátua de ouro e chamas. Uma visão que, como uma vagarosa ondulação, logo desapareceu.

Publicado no Jornal de Negócios

Pó de Los Angeles


Não sei se comece por Matt Dillon ou por Gene Hackman. Foi no mesmo hotel, o Sunset Marquis que choquei com os dois. O hotel fica no finalzinho da Sunset Strip, minúscula área da Sunset Boulevard boa para se andar a pé e que tinha até, na viragem do século xx para o xxi, uma livraria, Soup for the Soul, se ainda há nestes pobres neurónios memória do pó los angelino.
Na noite Dillon, chamemos-lhe assim, o Zé Navarro e eu fomos lá beber uns copos, a convite. Entrada selectíssima, num pátio ao ar livre, mesmo ao lado do bar, e demos com o Dillon. Tinha companhia e se era um velho ou novo affaire, o ainda jovem Matt estava longe de qualquer paroxismo ou angústia. Deambulava com o seu par, como Deus com os anjos, uma conversa suave e risonha. Mas a presença do coppoliano actor electrizava o hotel. E no bar, já havia ninfas em êxtase, uma das ninfas libertando o seio alvo, mamilo oferecido à boca de um qualquer e feliz fauno.
Lembrei-me de Eddie Mannix e de Howard Strickling, os dois mais famosos “fixers” de Hollywood. Eram eles que, no cinema clássico, consertavam a vida dos mais autodestrutivos dos actores: cuidavam de abortos, violações, estampanços de automóveis. Descobriria, já depois de deixar de ir a Los Angeles, cidade de que fui peregrino anual de 1992 a 2009, que o “fixer” actual é bem mais sombrio. Anthony Pellicano, condenado e preso, é o mais gritante exemplo. Nicole Kidman que o diga, escutada e gravada por ele, ilegalmente, logo que arrancou o seu processo de divórcio de Tom Cruise.
Pellicano merece uma crónica. Mas esta é a minha crónica de Los Angeles, cidade que conheci de autocarro, que só quase os pobres usavam, em 1986, com uma bolsa para estudar Coppola, três meses no campus da UCLA. Li no jornal gratuito da universidade, que um violador em série ameaçava o campus. Era o “blues suede shoes black rapist”. Um dia, na biblioteca, o funcionário afro-americano que me trazia livros, revistas e vídeos, olhou para os meus sapatos e viu que eram de camurça. Azuis, nem de propósito. Gritou: “Está aqui o violador dos ‘blues suede shoes’. Afinal é branco!” e ria-se. Era um afro-americano e tinha um sentido de humor caluanda. Que foi, aliás, o que a Califórnia e Los Angeles me lembraram: a Angola colonial. No clima, na leveza da roupa, na forma de vida informal.
Depois da sopinha dos pobres, frequentei, como diria o João César Monteiro, a sopinha dos ricos. Na SIC, visitei Los Angeles todos os anos, às vezes duas vezes por ano. E fiquei, uma ou duas vezes no Sunset Marquis. Sem Matt Dillon, diga-se, mas ao pequeno-almoço, na piscina, apanhei o Gene Hackman dois dias seguidos. Pequenos-almoços tardios, só nós os dois. E ele abrigava-se atrás de um jornal enorme, para não me ver e para que eu não o visse.
E não há piscina tão bonita como a do Chateau Marmont, hotel também na Sunset. Dessa piscina tem-se a vista nocturna mais inquietante de Los Angeles. São quilómetros de luzes, filas de luzes brancas, o incêndio vermelho de faróis retrovisores e de intermitentes semáforos, artificio e luminescência, certeza de que o mundo é só uma ilusão criada pelo homem. E lá estava eu, também com o Zé Navarro, e as amigas e amigos espanhóis, na exuberante noite los angelina, quando a mulher perfeita passa pela multidão em festa. Vinha só de roupão, que deixou cair, a nua brancura dela a contrastar com o “blue moon” da piscina. Mergulhou e nadou cinco minutos, límpida e nua. Um “fixer”, roupão na mão, ocultou-a, quando saiu: a intranscendente e intocável nudez de Los Angeles.

Publicado no Jornal de Negócios

Com o Eduardo, no cemitério dos Prazeres

Tudo começou com um bang! O estrondo de 1981 foi tal que o meu surdíssimo amigo Manuel Cintra Ferreira, encostado à grande coluna de som para ouvir melhor, foi soprado em voo para o meio da sala. Ia discutir-se, após exibição no Festival da Figueira da Foz, o filme “Rita”, primeiro e único de José Ribeiro Mendes. Discutir é como quem diz: o filme ia ser arrasado e o Eduardo Prado Coelho pontificava, para encanto das hostes. Só o metro e noventa do António Pedro Vasconcelos, a que se somava a estatura de cavalo anão deste vosso escriba, se opunha ao Eduardo: fomos vencidos e escarnecidos.

Nesse tempo, tinha – e tenho – os livros que o Eduardo escrevera. Apreciava neles uma certa ternura, sobretudo quando ele falava de raparigas e do aconchego de uma camisola de lã. Mas por influência dos meus professores Trindade Santos e Manuel S. Lourenço, pai da bíblica estrela que é hoje o Frederico, logo que esbarrava com a veneração do Eduardo à dislexia deleuziana e lyotardiana, esses bonzos jongleurs do não sentido, eu soltava urros de bicho ferido ou o risinho sórdido da hiena no mato.

Um dia, vínhamos no carro dele, da Embaixada da Hungria, e provoquei-o tanto com o Deleuze, que o Eduardo, ferido nos seus amores, já ziguezagueava o bólide, única vez em que o vi perder a calma magistral. Nos livros futuros, com elegância, desancou as minhas interpretações dos filmes do senhor Oliveira.

Julgo que a minha rivalidade espelhava o facto da Antónia, já casada comigo, e aluna dele, o louvar sem reservas como professor, pairando a 50 centímetros do chão quando, depois de ela deixar a faculdade, ele lhe veio dizer, com voz de açúcar, “a falta que faz a visão da sua beleza sentada junto ao repuxo do pátio da Nova”.

Para arredondar o fim do mês, eu escrevia então para as publicações do mítico Duarte Ramos. Desafiei o meu profe Trindade Santos para entrevistarmos o Eduardo. Fizemos-lhe uma entrevista que nos deixou felizes, a nós e a ele. Lembro-me que nos respondeu, com o seu físico de redondo vocábulo aninhado num pufe, gato ao colo, num conforto sibarítico de fazer inveja aos deuses.

Cheguei a casa e o gravador, zero: nem uma palavra ficara gravada. Refiz tudo, recorrendo à memória. Quando leu, o Eduardo, que nunca soube do desastre, deu-me os parabéns: eu tinha, afinal, entranhado o léxico e o pensamento eduardianos.

Quando fundei a Guerra e Paz, descobri que o Eduardo era meu vizinho. Moravam ali, também, o António Lobo Antunes, o Rui Zink e o inultrapassável José Vilhena. Convidei o Eduardo a vir à editora, com a sua Maria Manuel (e ele dela): prometi-lhes café e pastéis de nata. Cumpri e o Eduardo escreveu para mim o seu último livro, o “Nacional e Transmissível”, lançado com pompa no Frágil, está claro. Era um livro em que reencontrei a ternura que mais me seduzia nele, as raparigas, as carícias e o aconchego das camisolas de lã – se é que não são de caxemira! A cafés e pastéis de nata pastoreámos a velha rivalidade: o livro é profusamente ilustrado e uma das fotos é a da minha filha, quatro anos, a mergulhar numa piscina, com os seus bracinhos flexíveis de ginasta chinesa.  

Despedi-me do Eduardo no mais belo dos cemitérios, o dos Prazeres. Ao meu lado, o Pedro Bandeira Freire, dono do Quarteto, cinemas que tanto o Eduardo incensou. O Pedro começou a ler nomes nas tabuletas e, com aquele ânimo masculino ciente da vida e da morte, disse-me: “Já tenho mais amigos daquele lado do que deste!” Não demorou muito foi ter com o Eduardo. E lá estão, os dois, à minha espera.

Publicado no Jornal de Negócios

Acordar a gemer

Podemos até esquecer-nos da cadeira, mas ninguém esquecerá nunca as pernas de Marlene Dietrich. Não obstante, foi a cadeira que Josef von Sternberg lhe pôs no meio das pernas, no “Anjo Azul”, que lançou a sua carreira.

Quem ia na cadeira da frente, no avião para Los Angeles, era o cineasta Peter Bogdanovich, ao lado dele o actor Ryan O’ Neal. Descobriram que na cadeira atrás ia Marlene. Puseram-se de joelhos, virados para trás, e começaram a falar com a alemã, que já ia em bem mais de 60 anos. E Bogdanovich atreve-se: “As pernas que Miss Dietrich tem!” Ela sorri: “Ó se tenho!” Dá uma palmada numa delas e provoca: “Umas coxas fantásticas.” O’ Neal arrisca: “Eu, na adolescência, sonhava com as suas pernas e acordava a gemer.” “Também eu, meu filho, também eu”, disse-lhe a nostálgica Marlene.

E o que eu queria dizer é que as pernas de Marlene foram incansáveis e insaciáveis. Não se prenderam nesses anos 30, 40 e 50 do século passado com questões de género. Deram-se à felicidade, porventura a algum desapontamento, a mulheres e homens.

Mas foram os olhos de um azul francês do actor Jean Gabin que mais e sempre a prenderam. Vivia com ele em afrontosa maridança, na casa que Gabin alugara a Greta Garbo, que vinha, descobriu Gabin, espiá-los à noite para ver se não lhe escavacam a mobília.

Gabin e Marlene, que o exílio e o anti-nazismo juntara, iam, por vezes, jantar fora com outros exilados, Jean Renoir e a mulher. Marlene aproveitava para arrastar a tremente mulher de Renoir para a casa de banho: só queria mostrar-lhe as pernas e que a senhora Renoir as elogiasse. E eram, confessa o marido, as mais belas pernas que já vira.

Foi por aí, 1940, que o cineasta Tay Garnett a convidou para fazer “Seven Sinners”, que em português se chamaria “A Pecadora”. Marlene seria, no filme, uma cantora, expulsa de ilha em ilha dos exóticos mares do Sul, pelo comportamento escandaloso. Um marinheiro viril, um jovem tenente, iria apaixonar-se e querer até casar com ela, contra os gritos de alarme dos amigos.

Garnett e o produtor Joe Pasternak queriam John Wayne para o papel, mas sabiam que Marlene tinha direito de escolha e era picuinhas. Levaram-na a almoçar ao refeitório da Universal. Numa estratégica mesa ao lado puseram o jovem John Wayne em ameno flirt com duas actrizes. Era impossível que a visão predadora da Dietrich não desse com aquele pedaço de homem.

Deu. Poucos minutos depois, Marlene apontou na direcção de Wayne, e aqui as mais autorizadas opiniões dividem-se. Garnett diz que ela lhe sussurrou ao ouvido “Paizinho, compra-me aquilo que ali está!”. Pasternak jura que ouviu distintamente: “A mamã quer aquilo ali para o Natal.

Eles compraram o que a mamã queria e Wayne e Marlene tiveram um Natal escandalosamente feliz, que acabou com o casamento de Wayne, mas não acabou com o amor único de Gabin e Marlene. A placidez camponesa de Gabin e o seu cheiro operário entravam muito além das pernas em Marlene. Gabin detestava Hollywood e voltou para França. Casou e fez tudo para não voltar a ver Marlene. Ela casou, mais de conveniência, do que outra coisa, mas veio morar sozinha num apartamento, em Paris, em frente ao hotel onde ficara com Gabin: passava ali dias, sentada, com o actor Jean Marais, amante de Jean Cocteau, só a falar de Gabin e a olhar para a janela do quarto em que se tinham amado.

Morreu Gabin quase no mesmo dia em que morreu o marido de conveniência de Marlene. E eis a réplica que ela legou à eternidade: “Sou a única mulher no mundo que enviuvou duas vezes ao mesmo tempo.

Publicado no Jornal de Negócios

Onze mapas para o tesouro

os meus livros de Maio
são onze mapas para decifrar (ou baralhar) o mundo

Tenho Jorge de Sena numa ponta, Júlio Pomar na outra. É o que vejo quando olho para a imagem com os meus onze livros de Maio: de uma a outra ponta. Acho que vamos precisar de um Atlas para ir de uma ponta a outra, um mapa para os demónios de Sena, para os requintes de beleza e malvadez das suas Novas Andanças do Demónio, outro mapa para entrar no labirinto de Júlio Pomar, Depois do Novo Realismo, nesse labirinto pelo qual deambula, com rigor crítico e ardor polémico, outro Pomar, o filho Alexandre.

E sim, tenho um Atlas. Tenho vontade de rir e chorar ao abrir o Atlas Histórico da Escrita. É o primeiro Atlas português da colecção que é deles. Este Atlas tem mapas, tem pedras, tem tábuas, argila, papiro e pergaminho, deslumbra-nos com a invenção da escrita. Foi o linguista Marco Neves que o escreveu e é – oh, meu Deus, estou mesmo contente! – um orgulho ter um Atlas, pensado, concebido, em Portugal. Ora aí está o meu patriotismo em ponta.

Peço a Eduardo Lourenço que me acalme. Em edição de capa dura, com fotos dele menino e moço, Eduardo Lourenço: A História É a Suprema Ficção, é o livro que lhe dá a palavra, numa entrevista armada e armadilhada por José Jorge Letria, com texto final de Mário Soares, homenagem no centenário do nascimento do escritor, em co-edição com a SPA, na mais antiga e muito querida parceria da Guerra e Paz, o fio da memória.

Que menino, do bibe aos calções, não precisa de mapa para ir à escola? Jorge Rio Cardoso, especialista na área da educação, dá esse mapa aos pais em Como Fazer dos Nossos Filhos Alunos de Sucesso, parceria (outra, que a Guerra e Paz não é orgulhosamente só) com a Cofina. Quem não tem mapa nem Atlas é Roz Parker, a antiga polícia, a quem a romancista Alexandra Benedict pede que descubra o enigma de Crime no Expresso de Natal: são 18 passageiros, 7 paragens, um assassino em série, com vendas para cima de um milhão de exemplares, dos Estados Unidos a Itália, passando pelo Reino Unido, França, Finlândia e mais dez países: é ver no mapa! E o mapa das revoluções de uma Europa em fogo, no fim do século XIX, está todo, ponto por ponto, no Manifesto Comunista, de Marx e Engels, que agora reedito, com um excitado texto meu, embirrento, a acompanhar.

Os clássicos, e agora deixem-me cantar, é que já não precisam de mapa. E Dizê-lo Cantando a Toda a Gente, junta todos os sonetos de Florbela Espanca, tal qual Joseph Conrad, sem mapas e olhos de marinheiro fechados, nos guia pelos oceanos da sua vida em O Espelho do Mar, traduzido pela primeira vez em Portugal: é autobiográfico, mas é ainda mais romance do que os seus romances. São os nossos Clássicos Guerra e Paz que fazem fronteira com a nossa Colecção de Biografias, agora enriquecida pela que o Nobel da Literatura, Romain Rolland, escreveu em A Vida de Tolstói. E sim, um dia teremos o Guerra e Paz dele publicado na Guerra e Paz nossa! Prometo.

E só me falta falar de guerra: ou estive eu a falar de outra coisa? E a guerra sim, precisa de mapas e mais mapas, que nem num atlas cabem. O alemão Ernst Jünger escreveu Tempestades de Aço, visão assombrada e arrebatada da violência na guerra. Jünger esteve mergulhado nas trincheiras da I Grande Guerra e a sua prosa transmite-nos, com estrondo e fúria, esse choque aterrador. Obra-prima, traduzida pela primeira vez em Portugal, é o sétimo volume da colecção Os Livros Não se Rendem, cujos exemplares, com o apoio da Fundação Manuel António da Mota e da Mota Gestão e Participações, chegam todos os meses a cada uma das 244 bibliotecas da rede nacional de bibliotecas públicas.

São, de ponta a ponta, os meus onze livros de Maio.

Manuel S. Fonseca, editor

Em Coimbra, com Carlos Fiolhais

É já na 5.ª feira. Quando baterem as 6 da tarde, na livraria Almedina, junto ao estádio cidade de Coimbra. Convido todos os meus amigos de Coimbra e arredores: venham à conversa. Eu não tenho grande coisa a dizer, mas só para ouvirmos Carlos Fiolhais já vai valer (muito) a pena. O tema é o meu livro: ou seja, vamos falar de chimpanzés que bebem coca-colas, do coração de um musseque em polvorosa, de canções do grande diá Kimuezo, de caranguejos em fuga no Morro dos Veados. Ai ué, bora lá, evocar a grande e eterna África.

O amigo morto

Em Tróia. Pedro Bandeira Freire, em pé, o Luís de Pina de gravata. Também estão, a Antónia, de óculos escuros, ladeado por mim e pelo Zé Navarro. O Pedro está a tapar o Zé Matos-Cruz.

Uma coisa é o amigo vivo, outra coisa, o amigo morto. O amigo vivo está aí, mas mesmo que não esteja hoje, estará amanhã. O diabo é o amigo morto. Há quantos anos não ouço a alegria frívola do amigo morto? Pior, há quantos anos não grito ao amigo morto a minha própria alegria fútil?

Por falar em gritar, o meu amigo Manuel Cintra Ferreira, crítico de cinema no Expresso e no Público, meu companheiro na Cinemateca e na SIC, era surdíssimo, de uma surdez implacável, mas fina. Ouvia tudo o que eu lhe dizia, lendo-me as palavras nos lábios: elas ainda não tinham saído e já ele as tinha ouvido. Contou-me, se calhar num dos Natais em que ceou em minha casa, que no Verão Quente da revolução, os pê cês o queriam doutrinar, roubando-o à UDP a que se acomodara. Era em Campo de Ourique, e vinham à Tentadora, a querer revelar-lhe a vermelhíssima e soviética verdade. O Manel usava um aparelho. Mas à mesa da Tentadora, mal os via aparecer, desligava logo o “casa sonatone”. Acenando com a cabeça, viajava pelo seu mundo cinéfilo e mágico enquanto “eles” peroravam. Quando se iam embora, despedia-os com um “adeus, vou pensar, camaradas”. Ele, que não tinha feito outra coisa, perante aquelas cabeças falantes, sem som.

E do Luís de Pina, que saudades da alegria frívola desse director da Cinemateca. Lembro-me: tinha uma namorada descontraída e despreconceituosa, que, em vez do “até à próxima”, se despedia de nós, desengraçados intelectuais fundamentalistas, com um escandaloso e nortenho “até à próstata”.  O Luís era do Boavista e tinha um amigo fanático que ia até aos treinos. Um dia, num jogo da Taça, um jogador da 3.ª divisão marcou dois golos ao Boavista. Logo o contrataram. Era uma nulidade. Nos treinos, o amigo fanático corria na bancada atrás do jogador falhado, a gritar, “anda, monte, anda monte”. O jogador vinha defender, ele recuava também, “anda monte”. E tudo isto dito com sotaque do Porto, carago, até que outro boavisteiro, interpela o amigo do Luís: “Ó senhor, o homem tem nome. Agora, monte, monte! Monte de quê, senhor!” E o amigo do Luís: “Monte de merda, que é o que ele é.”

E saudades das altas calinadas do João Bénard. A um jantar, sentado à mesa no Papaçorda, à espera da Isabelle Hupert, julga tê-la visto entrar e vai para ela, sem ver que era a mulher de uma diplomata português, “Mais quelle honneur, Isabelle, soyez la bienvenu”. A senhora, portuguesíssima, responde-lhe: “Que disparate, João, o que é que lhe deu!”. E ele, sem desarmar e ainda a sonhar que ela era a Huppert: “Et en plus vous parlez portugais!”

E, sem me esquecer do António Escudeiro, do Alface e do Dinis Machado, lembro-os a todos nesta história do Pedro Bandeira Freire, que eu e o António Setúbal, de tanta falta ele nos fazer, continuamos a celebrar em jantar mensal. O Pedro estava em Cannes e guiava um carro tão descapotável como ele. Saía do estacionamento do Palácio do Festival. Não sabia era, nesse aventuroso tempo sem gps, por onde sair. E parou. Atrás dele outro carro. E o Pedro, a coçar a calvície, a pensar. O condutor de trás, apressado, furioso, grita-lhe em sonoro português: “Cabrão do careca, tira-me o calhambeque da frente!” O Pedro, com a seráfica calma de São Francisco, sai do carro, vai ter com o outro, e pondo aquele sorriso que lhe encheu a cama de amores, diz: “Amigo, cabrão, sim, de certeza; mas careca, eu?” O outro, desarmado, “O senhor desculpe, não sabia que era português, pensava que fosse o cabrão de um francês!”

Ah, a frívola alegria dos meus amigos mortos!

Publicado no Jornal de Negócios