
Se soubesse não teria despido o casaco. Mas foi já sem casaco que me sentei à mesa do English Bar, no Estoril. Do outro lado da mesa estavam Francisco Balsemão e Luís Vasconcelos, que uma velha amizade fazia que fossem como dedos da mesma mão.
O embaraço é uma coisa pessoana, primeiro estranha-se, depois entranha-se. Vejam a cadela Juliana. Pastor alemão de raça, foi surpreendida por uma bomba incendiária na II Guerra Mundial. A bomba caiu à sua frente e Juliana extinguiu-a recorrendo a recursos fisiológicos de carácter líquido: isto é, mijou-lhe em cima e apagou-a. É um embaraço para o inimigo, mas também para quem se defende, ganhar a guerra com um longo jacto de urina. Superado o embaraço, a cadela Juliana foi honrada com a Blue Cross Medal, nobre condecoração para animais.
E volto ao English Bar. Foi em Setembro de 2005. Era, há quatro anos, director de programas da SIC, sucedendo a Emídio Rangel, de quem eu fora o adjunto, durante nove anos. Se não estou, como António Guterres, a tergiversar nos números, nesse outro momento deliciosamente embaraçante da nossa vida política, tudo somado foram 13 anos: a minha mais rica experiência profissional, divertida, dramática, um carrossel emotivo, com os seus embaraços talvez, bem menos, nesses 13 anos, do que os deste governo de António Costa num só ano.
Mas se continuo a divagar nunca mais chego ao English Bar. Saio da SIC com o director-geral, o meu amigo Zé Alberto Bastos Silva. Fomos no Porsche dele e fazia um daqueles calores de Setembro roubado às 13 horas de Agosto. Tirámos os dois os casacos e bazámos. O calor, no casco submarino do Porsche, encharcou-me de suor. Fomos a remoer nas audiências, que andavam pela hora da morte. Quando o Emídio saiu já tínhamos perdido a liderança do horário nobre, mas conservámos a liderança global. Num dos anos do meu consulado consegui mesmo reconquistar – a chocolate com pimenta, o que diz bem da minha tropicalidade – a liderança do horário nobre. Foi um momento de glória – sic transit gloria mundi – que o meu combativo adversário, José Eduardo Moniz, comentou nos seguintes termos, nas coloridas revistas de alto valor intelectual, que tratam das vidas das celebridades: “O Manuel está tão inchado que se o picam com um alfinete rebenta como um balão!”
Chegámos ao English Bar. Avançámos, nós e o suor do infame Porsche, para a mesa de Balsemão. Com informalidade, atiro o casaco para o sofá e sento-me só em camisa. Mal me encosto às costas do cadeirão sinto a camisa chupar a napa que o forrava. Entre a minha camisa suada e a napa do cadeirão forjou-se uma relação sexual, interpenetrante, que só o Aretino dos Sonetos Luxuriosos saberia cantar: nem Deus separaria aqueles corpos colados, a fina camisa, a já fanada napa do cadeirão.
O tema da conversa era delicado, na mesa o futuro da SIC e uma proposta que, se não a aceitasse, ditaria a minha saída. Tentei afastar-me das costas da cadeira e senti que arrancava a napa. A minha cabeça só pensava no que aconteceria quando me levantasse.
Confesso com orgulho: fui estóico. O almoço continuou, vivo, com elegância de parte a parte, o que descambou, estando o Zé Alberto e o Luís já em viagem pelo cosmos, na amizade que me liga, hoje, a Francisco Balsemão. Agora vejam, ponho-me de pé e a napa do cadeirão veio colada à rica camisa. Toda! Disfarcei com o casaco, escondendo o grande pedaço de cadeira que as costas da camisa acabavam de roubar. Nesse dia, saí da SIC, mas trouxe para casa a napa de um cadeirão do English Bar.