Blog de escrita e de reflexão lúdicas. Um lema: chatices não!
Author: Manuel S. Fonseca
Eis a felicidade: estar sentado num fim de tarde de Verão, na mesa um fino estarrecedoramente gelado e um prato de jinguba. E Deus sentado, ali ao lado, sendo certo e sabido que Deus é Amor e só Amor.
Deve ser no final de Maio ou começo de Junho. É inapelável. Serei avô. Numa Bica Curta, no CM, fiz, como quem reza, os meus votos.
Que nasça para este céu, estas nuvens em fio
Vou ser avô. Faltam 4 meses. Eis o que quero para esse neto que há-de vir.
Que nasça num país com a coragem de enfrentar os seus dramas, não escondendo o vendaval de mortos que renunciaram aos hospitais, assombrados pela onda de pavor do pregão diário dos números da covid. Que encontre um país limpo, decidido a não repetir a barbárie que matou o ucraniano Ihor, ou os reles golpes das vacinas. Que nasça num país que não proíba o ensino e que não cerceie, por bloqueio ideológico, a plenitude da iniciativa privada e pública. Que nasça, intrépido, num país em que a venda do livro, fonte de emoção e inteligência, não esteja proibida.
Quando escrevi esta Bica Curta, para o CM, já 2020 tinha saltado a barreira de 2020 e Portugal entrava na voragem que foi Janeiro de 2021. Não me parece mal relembrar esta micro-crónica sobre as cinzas do desejo.
Qui trop embrasse mal étreint, Pierre Narcisse Guérin – século XIX
O sexo parece fácil, as estatísticas do sexo é que são sempre difíceis. Neste 2020 de covid e distância, 2% dos homens e 3% das mulheres clamam ter tido sexo diário. Mas, diz um estudo, há 9% dos homens e 14 % das mulheres que choram ter reduzido a zero a feliz união dos corpos. Em compensação, o site pornográfico Pornhub subiu em 25 % a sua audiência. Como o livro, passará o sexo a ser digital? E-fuck?
Seria a derrota da vida, se o medo e a culpa nos roubassem o amor e o pecado. O que é a vida sem beijos roubados, sem sexo transgressor, sem o confiante orgasmo familiar? O omnipresente e ubíquo sexo é o céu celebrado na terra.
Não podia estar mais de acordo com António Costa. Tocou, e de forma muito clara, num ponto a que sou sensível e que começa a ganhar uma dimensão inquietante. Numa entrevista ao Público, o primeiro-ministro disse: «Acho que há dois fenómenos muito perigosos que estão a surgir entre nós e que têm o efeito de se emularem um ao outro. Um é uma revisão auto-flageladora da nossa História e outro é a liberação de reacções racistas ou xenófobas.»
E acrescentou: «Creio que se está a abrir de uma forma artificial uma fractura perigosa para a nossa identidade nacional, para a nossa relação com o mundo.»
Mais ainda, e para dissipar dúvidas, rematou: «E nem André Ventura nem Mamadou Ba representam aquilo que é o sentimento da generalidade do país. Felizmente.»
Não é vulgar, numa matéria tão sensível, ter um primeiro-ministro a traçar com clareza meridiana a linha que separa as causas justas e razoáveis do delírio, não poupando até um «demolidor implacável» do seu partido. Daqui a duas semanas publico um livro sobre o tema, uma sátira admirável de um autor inglês. Hoje, aplaudo a coragem de Costa.
Já há algum tempo que não trazia aqui uma Bica Curta, título da minha micro-crónica que o CM publica à 3.ª, 4.ª e 5.ª. Esta é nostálgica e é, como se costuma dizer, sobre um dos meus filmes de cabeceira.
Há 79 anos, ‘How Green Was My Valley’, de John Ford, ganhou o Oscar de melhor filme. É o filme que mais bate no meu coração. Leva-nos a casa de uma família numerosa: São mineiros.
A casa, a rua, a igreja, os habitantes do vale, vistos pelos olhos do filho mais novo, são o retrato da harmonia do mundo. Os olhos de criança dão-nos a ver a calorosa ternura familiar, a doçura da mãe, a irrupção do amor da irmã pelo novo pregador.
Vem a crise e os mineiros entram em greve. Rompe-se a harmonia e fica só a nostalgia de um tempo sem tempo, a nostalgia da honra, de pai e mãe. Nossa nostalgia também: como era verde o vale da nossa infância.
Chelovek S Kinoapparatom / 1929 O Homem da Câmara de Filmar Um filme de Dziga Vertov
Comecei a escrever este texto no Ciclo de Cinema Soviético, de que fui o programador e o organizador do catálogo (com o meu velho avilo Luís Miguel Castro), a meio dos anos 80. E este texto é o exemplo acabado de um work in progress. Sempre que a Cinemateca exibe o filme de Vertov e me pede para rever o texto, mudo uma palavra ou uma frase, acrescento-lhe uma ideia. Não sei, aliás, se na sua forma actual esta prosa ainda guarda alguma frase completa do original. É um texto que cresceu comigo: o problema é que eu estou cada vez mais velho e este texto cada vez mais novo.
Não sei se toda a arte tem de ser anti-democrática. Mas a vocação totalitária do modernismo é indisfarçável. O modernismo sonha com amanhãs que cantam ou noites de cristais. Desse caldo cultural nasceu O Homem da Câmara de Filmar, de Dziga Vertov, estreado na URSS, em 1929. A Europa vivia a turbulência artística de vários “ismos”: na literatura, o “Manifesto Futurista”, do fascista Marinetti, é de 1909; na pintura, o cubismo nascera em 1906, quando Picasso pintou “Les Demoiselles d’Avignon”. Os anos 20 prolongam essa epilepsia estética: em 1924 surge o “Manifesto Surrealista”, de Breton; a Bauhaus, fundada pelo arquitecto Walter Gropius, explode em 1919.
O filme de Vertov coincide com a arrebatada defesa de “formas puras” do suprematista Malevitch que recusa a pintura, “esse preconceito do passado”. No filme de Vertov estão as impressões digitais que nele deixaram o teatro do alemão Meyerhold e os futuristas russos, tutelados pelo comunista Maiakovski. É bom que se diga, Vertov começou pela literatura: escreveu romances fantásticos e poemas satíricos. A seguir, montou um laboratório do ouvido, para registo de sons e de montagens músico-literárias. Fotografou sons. E chega enfim ao cinema, nas actualidades do Kino Komitet, descobrindo o potencial da montagem, herdeiro das fotomontagens de Rodchenko e dos pintores construtivistas. De 1918 a 1922, Vertov dedicou-se à montagem de documentos filmados com o objectivo de “ver e mostrar o mundo em nome da revolução mundial do proletariado”. Que não tenha havido mais do que três proletários a entusiasmarem-se com o cometimento é, claro, coisa de somenos.
Já a nomenklatura da revolução russa gostou. Em 1922, a Goskino contrata-o para a realização de uma série de filmes, os célebres Kino-Pravda. Vertov e camaradas adoptam o nome de Kinoki, definindo em manifesto as linhas teóricas de que Vertov é o expoente. O que é que se lê no Manifesto? Isto, por exemplo: “Os velhos filmes romanceados, teatralizados e outros têm lepra” ou “o futuro da arte cinematográfica é a negação do seu presente”. Vertov proclamava a expulsão dos intrusos que habitavam o cinema, ou seja “a música, a literatura e o teatro”. E se querem saber que cinema queria Vertov, ouçam-no: “O cinema dos Kinoks é a arte de organizar os movimentos necessários das coisas no espaço, graças à utilização de um conjunto artístico rítmico conforme as propriedades do material e ao ritmo interior de cada coisa”. Ou seja, Vertov propõe para o cinema o mesmo triunfo das “formas puras” que Malevitch defendia para a pintura.
Às massas, Vertov anunciou assim o seu filme: “Faz-se notar aos espectadores que o presente filme é Uma Experiência de Transposição Cinematográfica de Fenómenos Visíveis, Sem Intertítulos, Sem Cenários, Sem Estúdio. Este trabalho experimental prossegue a criação de uma linguagem cinematográfica absoluta, autenticamente internacional, fundada na total separação com a linguagem do teatro e da literatura”.
Vertov não mente. O filme leva ao extremo processos que já usara, seja os intertítulos que tratara com originalidade nos Kino-Pravda, seja a forma como relaciona cinema e vida. Em O Homem da Câmara de Filmar, Vertov queria cumprir um processo dialético e revolucionário. O material do filme teria de combinar três categorias: 1º “a vida tal como ela é”, no écrã; 2º a vida tal como ela é” na película; 3º “a vida tal como ela é” em si. Estas categorias da vida desenham-se nos temas paralelos propostos pelo filme, o tema do operador, o tema do montador e o tema da vida das cidades que filma.
Verdadeira antologia de trucagens, Vertov faz do filme um manifesto sobre o movimento: retarda e acelera no interior de cada plano; o homem da câmara e a cidade movem-se incessantemente, movimento que não impede o perfeccionismo dos ângulos de tomada de vista, que só por si tornaria equívoca a referência a qualquer peregrino repentismo.
Recusando actores, cenários e iluminação, Vertov foge à norma e converte-se no contraponto de Eisenstein. Depressa a vida lhe passa a correr mal. Em 1926, a Goskino despede-o pela anormalidade da sua prática. Já antes o público lhe fugira (se é que alguma vez o teve). E a sua teorização comunista depara-se com uma dificuldade: como raio sustentar juntos das ignaras massas que aquele sim, é que era um “filme comunista” destinado a “apoiar o plano quinquenal”?
Vertov leva ao extremo o “fetichismo da máquina”, e é escandaloso esse morceau de bravoure final, com a câmara sozinha, a dispensar o trabalho do operador, como se ali estivesse, utópica (e capitalista?), a visão de um mundo em que as máquinas determinassem a sua própria dinâmica. O comunismo reaccionário não o compreendeu. Há por aí algum revolucionário capitalismo que o redima?
E aqui está o filme inteiro pronto a discordar em tudo de mim.
Este é um post para ouvir. Todos os dias, a caminho da Páscoa. Primeiro, uma canónica versão do coro final (“Descansem em paz, pernas abençoadas”) da Paixão Segundo São João, de Bach. Depois, (“Bombé”) o encontro de Bach com o encantatório bater de palmas de um ritual fúnebre africano – fusão miraculosa, meu Deus Nosso Senhor.
Deposizione di Cristo, Caravaggio
Descansa sim, descansa esses teus ossos peripatéticos. Fartaste de andar. Da Galileia a Jerusalém, bodas em Canaã e jejum no deserto. Em bem-aventurado passeio à mais Alta Montanha até sobre as águas caminhaste. Descansa-me esses ossos, a carne e os músculos. Deita-te na cova húmida, fecha os olhos e fala. E ensina-me também a descansar. Fecha na minha cabeça as portas do inferno e ensina-me o amarelo, o dourado caminho para o paraíso.
Vais dizer-me que são teus os anjos da ressurreição, que não choremos nós por ti, por que já basta chorares tu por nós. Mas amanhã, bem sei, voltarás a partir. Deixas-nos, deixas-me, e hás-de dizer outra vez que tens na tua casa grande, a de eterna luz, um quarto e uma cama à nossa espera. Com lençóis de uma absoluta alegria, júbilo dos nossos olhos, feroz volúpia dos nossos ouvidos. Não dizes, mas sabemos: é tão fácil chegar lá. Basta que nos deixemos crucificar.
E agora ouçam o Monteverdi Choir e os English Baroque Soloists, dirigidos por John Eliot Gardiner
E abram agora os ouvidos a esta fusão concebida por Pierre Akendengué e Hughes de Coursom no disco Lambarena, com músicos europeus e do Gabão. Vale a pena deixarmo-nos crucificar.
Atormentam-me as injustiças. Sobretudo se lhes dou involuntário acolhimento, uma vez que comprovadamente sou pura bondade, mesmo mais do que os corações de compota que são os Fransciscos, o de Assis e o que agora está em Roma, se me desculpam gracinha. Para injustiças já bem basta o que eu disse da burguesia no meu orgástico, porém precoce, período anarco-maoista dos 20 anos e que, 40 anos de gabinetes calafetados, uns cargos assim-assim e um Audi de caixa automática, ainda não conseguiram redimir e apagar.
Enfim, a vida arma a todos as mais ínvias armadilhas, mas ter eu proclamado que o penteado à Lulu é obra e graça de Louise Brooks, quando afinal foi Colleen Moore que no cinema o inventou e lhe deu fama, pôs-me num magoado estado de espírito dostoievskiano.
A famosa franja desenhou uma nítida linha de horizonte sobre mil e uma lindas testas de mulheres, horizonte que era mais do que escolha cosmética e já lá vou. A esse penteado de franja geométrica, cabelos cortados direitos onde a cabeça acaba e o pescoço começa, a língua inglesa chamou-lhe bob cut, a francesa coupe au carré, a italiana caschetto ou acconciatura, a portuguesa um corte à Beatriz Costa, o que muito facilita a compreensão até a um habitante da Tasmânia.
Ora o problema não é linguístico, é só de reposição da verdade histórica. Colleen Moore foi actriz porque o pai fundador do cinema, D.W. Griffith, devia um favor ao tio dela. O tio facilitara, digamos assim, a passagem do controverso “Birth of a Nation” na censura. Griffith pagou: pôs a miúda a fazer perninhas nos filmes de Tom Mix. Não foram as pernas, mas sim a cabeça de Colleen a levá-la ao esplendor e luz perpétua. Para ser a protagonista de “Flaming Youth”, Collen fez um bob cut. A famosa franja era, naqueles anos 20, uma afirmação de desdém pela mortal chatice das convenções sociais. Usavam-na as rebeldes flappers, com muito rouge na cara, vestidos de terna é a noite e decotes de “é este o lado do paraíso”. Cheira a F. Scott Fitzgerald? Cheira, pois. Foi ele, o autor dos livros cujos títulos parafraseei, que conferiu dignidade literária a essa esfuziante abertura ao pecado: “Fui a faísca que acendeu esta juventude em chamas. Colleen foi a tocha. Que coisinhas pequenas nós somos para ter provocado tamanho turbilhão.” Ou não fossem, Fitzgerald, as coisinhas pequenas o sal da terra!
Há sempre outra forma de dizer as coisas. Há muitos anos, Michel Leiris, um francês esquecidíssimo, ensinou e, por um feliz acaso de leitura, ensinou também ao “eu” que eu era aos 18 (?) anos, que a escrita é uma forma de tauromaquia – como o amor. Escrever é expor-se: um tipo escreve como um matador dança à frente de um touro em pontas. Se o touro marra um tipo esvai-se em sangue. Para delicadezas é melhor que se escolha outro ramo.
Hoje, soube que Bukowsky, o orgânico Charles Bukowsky, deu (talvez não exactamente como Rilke) um pequeno e delicado conselho a todos os futuros escritores. Num poema, curto, incisivo, directo, sem condescendência: esqueçam lá os workshops de escritas criativas, por amor da santa.