A RTP1 arriscou e invadiu o Novo Mundo Digital. O velho Escrever é Triste foi um dos recônditos recantos que o criador e realizador dessa série, o Ricardo Espírito Santo, foi descobrir num dos buracos negros dessa galáxia.
O que o Ricardo fez é um milagre: refez o tom de um blog que era só de escrita, filmando, enquadrando, montando, com uma estética de luz doce onde vão habitar a Eugénia de Vasconcellos e o seu cão, o Pedro Norton e o seu rapaz de veludo.
E, depois, no final de uma viagem de que o Ricardo consegue fazer uma história, há um jantar. É o mais bonito e fraterno jantar que já se viu na televisão portuguesa. o Ricardo inventou uma maneira de filmar o impossível, o espírito de um blog de escrita lúdica. E minto, nem era um blog, era um sítio que criou um bando fraterno.
Deixo ficar aqui uma ligação para a RTP Play, avisando que o episódio passou ontem, 3.ª, feira, dia 28, à noite, na RTP1. Obrigado, Ricardo
O que gosto do meu passado! Ainda que eu saísse nu à rua, não sairia nu à rua. O meu passado cobre-me, como cobria Faith Hope Consolo, a mais bem-sucedida agente imobiliária americana. Ia dizer de Nova Iorque, mas será mesmo preciso dizê-lo?
Quando estava viva, Consolo podia vestir e vestia casacos de peles, pendurar pérolas e diamantes em todo o sacrossanto lugar onde uma mulher pendura pérolas ou diamantes, incendiar uma sala com o brilho estelar de anéis, pulseiras e cabelos louros. Esse radiante fulgor assentava e era o resultado do seu passado.
Confesso, ando a remendar o meu passado. Enquanto não encontro o bocadinho de pano cru dos meus primeiros cinco anos numa aldeia encostada a Pinhel, visto-me com a camisinha de terylene que usava no musseque Sambizanga, minha primeira e mítica morada de Luanda. Que bonito, rico e pobre é o meu remendado passado ordinário. Mas quero é falar de Faith Hope Consolo – que nome, santo Deus! – e volto a essa mulher álacre e exuberante para dizer que ela não remendou, ela cerziu o seu passado.
Para que conste, devemos a Consolo o esplendor e luz perpétua da Quinta Avenida. Sim, foi ela, e com ela o seu passado, que desenhou essa rua de Nova Iorque, instilando-lhe um encandeante glamour capaz de provocar um síndrome vertiginoso aos meninos do Bloco de Esquerda. Negociou e instalou a Cartier, Yves Saint Laurent, Versace, Vuitton, a Zara. Mesmo Trump, quando o nome de Trump se podia dizer sem fazer salivar à la Pavlov meia-direita, toda a esquerda e eu próprio.
Àqueles clientes, Consolo dava um cartão e o seu cartão era o seu passado. A mãe? Uma psiquiatra de crianças. O pai? Frank Consolo, executivo imobiliário, de quem ela herdou os genes do negócio, apesar de ele ter falecido quando Faith Hope tinha só nove anos de idade. Nascimento no selectíssimo enclave da Quinta da Marinha, perdão de Shaker Heights, no Ohio, adolescência na privilegiada Connecticut, com frequência da Miss Porter’s School para meninas, que tomara o nosso Saint Julian’s, São João de Brito ou o nosso liceuzito francês.
Sem esse passado, Consolo não se levantaria da sua mesa no mais bling-bling dos restaurantes de Tribeca para ir à mesa de uma luminária da Wall Street tirar-lhe batatas fritas do prato e comê-las com gosto. Aos protestos do lesado, Consolo e o seu passado responderam: “Está a protestar porquê? Você nem sequer estava a comê-las!”
Quando se tem um passado não se deve morrer. O chato de quando se morre é que não temos mais ninguém que nos defenda o passado que tanto trabalho deu a criar. Eis o que aconteceu há um ano, ano da morte de Consolo: descobriram-se as fotografias de família, das cavernas saíram amigas de infância e soube-se que Faith Hope não nascera onde dizia ter nascido, nem frequentara a selecta escola de Miss Porter. Adoçara-lhe a adolescência a alegre e viva pobreza de Brooklyn, uma mãe cabeleireira, um pai que se chamava John e não Frank e com quem Faith teve o intermitente convívio que as entradas e saídas das prisões, incluindo Alcatraz, lhe permitiram.
Qual dos passados é o passado de Consolo? O passado que viajou com ela de limusina ou o seu passado de defunta? Viva, a correr de reunião para reunião, nas convenções e nos copiosos almoços, Faith Hope não sentiria já deveras como seu o fingido passado que tão completa e perfeitamente fingiu? E nós, que passado de Consolo mais sentimos? Quem não quer, como ela, vestir-se em vida com o mais glorioso passado, escondendo falhanços e amargura para o passado defunto?
Estas foram as Bicas Curtas que publiquei no CM, nos dias 14, 15 e 16 de Janeiro. Chegam aqui tarde e más horas, mas chegam. E com um abraço aos leitores e seguidores desta Página Negra
Trump e o aiatola
Um general iraniano que instigou massacres foi selectivamente assassinado. Depois, um avião com 176 inocentes foi abatido. De Trump disse-se que é um desequilibrado. E é. Para falar do aiatola iraniano invocou-se a milenar civilização persa. Ora, este, como outros aiatolas, é o coveiro dessa civilização.
Houve quem jurasse que o Irão se uniria contra Trump. Mas há manifestações nas ruas de Teerão a pedir a morte do aiatola ditador. Os manifestantes sim, querem trazer a milenar civilização iraniana para o século XXI, abjurando a teocracia. Eis a diferenças: Trump é um tonto imprevisível, mas o aiatola é o rosto da repressão.
O buraco da agulha
O meu pai era um simples trabalhador. Dir-me-ia, se fosse vivo: “Nada protege mais os pobres, os remediados, a gente comum do que o trabalho.” O mundo mudou, claro; e os ricos também. O agnóstico que sou tem saudades dos valores cristãos a que a moral dos ricos, se queriam ser bons, se ajoelhava. Não era só a discrição de saberem que era mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que entrar um rico no reino dos céus. Era também a obrigação de rectidão, um sentido de responsabilidade pessoal pelos mais desfavorecidos, sem o desbragamento da última década. Terá ainda a moral, no futuro dos ricos, uma palavra a dizer?
Expulsos do paraíso
Se o Papa não é infalível muito menos o é a jovem Greta Thunberg. O Papa volta a expulsar o homem do paraíso, acusando-o de arrogância pelo domínio dos recursos do mundo. Greta trava o crescimento, revoltada com a indústria e o comércio. Estão errados. Sem ciência e crescimento nem 100 milhões viveriam no mundo onde vivem 7,7 mil milhões de seres humanos com o mais alto grau de bem-estar conhecido. Crescimento, ciência e tecnologia vão desencantar fontes de energia com zero de emissões de carbono, formas de extracção do CO2 da atmosfera, geo-engenharia para gerir a luz do sol. Não é utopia, são armas ao nosso alcance.
Tenho um pingo de piedade por quem se monta na mesma verdade por toda a vida e nunca mais lhe sai de cima. Como Lady Godiva, a pureza a servir-lhes de nudez, Salazar e Cunhal tiveram a mesma equestre e unilateral relação com a verdade única e imutável. Mahershalalhashbaz Gilmore é um tipo de cavaleiro anti-salazarista e anti-cunhalista. O cavaleiro de uma só montada corre o risco de nunca saber se vai, quixotesco, em cima de um cavalo ou de um burro. Mahershalalhashbaz já montou o burro e o cavalo, e nem ele jura que tenha sido exactamente por essa ordem.
As dezoito letras do seu primeiro nome, roubou-as a mãe, devota ministra baptista, à Bíblia, dando-lhe educação californiana e cristã, que é, com excepção da educação católico-capuchinha e luandinamente colonial, a mais alegre educação que se pode ter. (E talvez o cronista não esteja a ironizar.)
Eis onde quero chegar: Gilmore teve de mudar de nome. A sua vocação era o basquetebol e as dezoito letras do nome bíblico eram impronunciáveis. Um nome não é uma verdade absoluta e mudou-o para Hershala. Mas também a mão de basquetebolista lhe tremeu e, com a humildade de quem sabe que se enganou, trocou o basquete pela profissão de actor, regressando ao seu nome de dez metros. Voltou a mudá-lo quando a produção lhe veio dizer, “mas que raio, o teu nome não cabe no cartaz”. Reciclou o nome judaico para Mahershala Ali, até por se ter casado e a mulher o ter convertido ao islão.
Com esse nome o conhecemos e admirámos na série “House of Cards”, nos filmes “Moonlight” e “Green Book”, também agora na terceira temporada de “True Detective”, cujo sublime primeiro episódio os setes seguintes desfiguram e aviltam. Salvam-se os três rostos que Mahershala Ali oferece aos dois passados e um presente que são os tempos narrativos da série.
Mahershala Ali tem os rostos que for preciso ter, disse ele numa entrevista, mesmo na vida real. Por ser negro, físico imponente, conta que em jovem, em Nova Iorque, se vestia sempre com a discreta elegância de Cascais do meu amigo Pedro Norton, com bons sapatos em vez de ténis, evitando assim que as raparigas brancas mudassem de passeio ao vê-lo e que o pessoal de cara pálida como eu, no metro, começasse a apertar a carteira, temendo o óbvio assalto. Em Nova Iorque, punha um sossegado sorriso de preto, contou Ali, para dar conforto aos brancos, satisfazendo as suas expectativas.
Não foi o que aconteceu em 1970, no Bairro Operário, na tropicalíssima noite de Luanda. No Fiat verde que a Faty nos emprestara, ia com três amigos. Éramos dois negros e dois brancos e chocámos com o massacre. Um bando de jovens do musseque espancava um soldado da tropa fandanga portuguesa, que jazia no chão da forma atroz que o delicado Fernando Pessoa nunca cantou. Ao soldado raiava-lhe a farda muito sangue e o Mindo e o Abílio, meus mais velhos negro e branco, foram parar a matança. Acalmaram os atacantes: fora num baile e os soldados tentaram temperar-lhes as namoradas. Houve molho, os soldados fugiram deixando aquele desgraçado para trás. Carregámos os destroços para o Hospital Militar. Salvou-se. Antes, o Cesarito e eu, que éramos os miúdos negro e branco no Fiat, conseguimos falar com um dos desertores da vítima. Justificou a fuga pusilânime citando inadvertidamente Homero: “Eh pá, aparecerem-nos entre as cubatas, à frente um daqueles pretos gigantes só com um olho na testa…”
Aberto a todas as verdades, se um dia se adaptar a Odisseia, o genial Mahershala Ali será o que quiser, Ulisses ou Polifemo.
Publicado em “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios
Peço desculpa, mas ando numa quase sabática de blogs e facebooks. Só hoje deixo as bicas curtas publicadas no CM há duas semanas, a 7, 8 e 9 de Janeiro. Com as minhas desculpas aos mais fiéis leitores da Página Negra. Um destes dias voltarei à normalidade, mas aviso que ando feliz e bem.
A lição francesa
Os sociólogos franceses calaram-se face ao avanço do fundamentalismo islâmico. Denunciá-lo, pensava-se pela calada, era dar armas à extrema-direita. À solta, os fundamentalistas fecharam as comunidades islâmicas em guetos urbanos impondo uma interpretação abusiva do islão que alimenta o terrorismo e os atentados. O silêncio táctico da esquerda universitária foi cúmplice do extremismo que tem os muçulmanos reféns e não impediu que a extrema-direita francesa se regalasse na sopa islâmica.
Aprendamos a lição: evitar os guetos e rejeitar políticas de identidade agressivas que fazem das minorias reféns dos fascistas da identidade.
O crime e a dor
O que matou o jovem cabo-verdiano Luís Giovani Rodrigues? O putativo racismo de um bando de jovens de Bragança ou só um pico de testosterona juvenil somada à cultura machista de exibição e posse? Luís está morto e há uma família que o chora.
Há dias, o pai de um terrorista que matou outros jovens na discoteca Bataclan, sentou-se e conversou com o pai de uma jovem que lá foi assassinada. Comungaram do mesmo luto: são ambos as vítimas que ficam.
A vingança é uma ilusão irracional. Sabem que o ódio deles não serve a ninguém e o perdão também não ressuscita quem morreu. Sobra, face a estes crimes sem sentido, uma dor irreparável.
As iludências de Clint
Dos seus 90 anos, Clint Eastwood jura-nos, no seu filme “O Caso de Richard Jewell”, que a promiscuidade entre a polícia e a imprensa é mais letal do que Cristiano na marca de penalty.
Ora, a alma do seu filme não é a denúncia. O que Eastwood filma é a inocência. E vejam, a inocência é gorda e não faz dieta, é patriota, vê com candura a lei e ordem e gosta sem reservas de armas. Clint retrata uma inocência transbordante e confiante. Choca com todos os nossos preconceitos? Oh, se choca. De frente. A 100 à hora. Prova de que as aparências iludem. Ou, como dizíamos quando éramos miúdos, em inocente trocadilho, as iludências aparudem!
Quem é que daria um milhão de dólares para matar qualquer um de nós? Ninguém, em seu pleno juízo, claro. É o que pensa James Bond, quando um dos seus superiores o avisa de que uma organização sinistra oferece essa redonda soma pelo seu belo cadáver. “Mas quem é que pode querer matar-me?” E o boss responde-lhe: “Maridos ofendidos, chefs ultrajados, alfaiates humilhados, a lista é interminável.”
Um célebre pensador avisou-nos de que a única coisa necessária para o mal triunfar é os homens bons nada fazerem. Menos optimista, o Evangelho de Mateus diz-nos que o Senhor, na sua omnisciente amoralidade, fez o sol levantar-se sobre os bons e os maus, a chuva cair sobre os justos e injustos. E o facto é que o célebre pensador, morto e enterrado há mais de dois séculos, já o comeram as larvas, enquanto os inabaláveis sol e chuva insistem na sua visita diária a eiras e nabais.
Reconhecemos o mal nas páginas da grande História, difícil é reconhecê-lo ao balcão da pastelaria, no humilde assento do metro. Hitler à direita, Estaline e Mao à esquerda, asseguram-nos a equitativa distribuição ideológica do Mal. São potestades, mas há emanações mais triviais e humanas, o pequeno PIDE anti-comunista, o torturador da DISA que o marxismo empolgou e fuzila até os ex-camaradas.
Mas vejam agora o mal que veste saia-casaco, luvas, sapatos de salto alto e passeia de malinha no braço. Chama-se Cathy Ames e se sai à rua já é só de óculos escuros que a protejam do sol que o Senhor fez brilhar sobre Bem e Mal, justiça e injustiça.
Qual Atena de Zeus, Cathy nasceu, inteira e armada, da cabeça do escritor John Steinbeck, em “A Leste do Paraíso”. Não conheço mais nenhuma personagem, da literatura ou do cinema, que incarne o mal de forma tão absoluta. Em menina, finge uma violação para que três rapazinhos sejam punidos e chicoteados. Leva ao suicídio o professor de latim e mata pai e mãe incendiando a casa onde cresceu.
A crueldade de Cathy é deliberada e premeditada, milimétrica, fonte de satisfação solitária e incomunicável. Onde está a origem emocional desse aleijão. É aleijada da cabeça ou do coração?
Prostitui-se. Espancada quase até à morte por um chulo, é salva por dois irmãos. Um, casa com ela, e logo ela o trai com o outro, na que seria a noite de núpcias. Dá à luz dois gémeos e abandona os filhos e a casa, baleando o marido que a quer reter.
Acolhe-se a um amável bordel, seduz a Madame e envenena-a, tomando o poder e convertendo o bordel num antro de sadomasoquismo. Fotografa e chantageia: o deputado que chora como uma mulher e pede chicotadas, o professor de filosofia com gosto pela água da latrina, o pregador de igreja que se satisfaz na dilacerante dor e a queimadelas de fósforos. Ao filho, que a descobre e visita, diz com petulância: “Preferia ser um cão a ser humana.”
Nada mais a move ou comove que não seja infligir a dor, usar a sexualidade para causar ansiedade, angústia e desamparo. Eis a cara do prazer de Cathy, contemplar o seu poder sobre o corpo e a vida de alguém. É este o mal, crueldade servida em lençóis de seda numa sórdida casa de putas.
Todos temos medo, um medo quente. O medo de Cathy Ames é um medo gélido, irracional, servido sem a brisa da compaixão. Só uma vez, em “A Leste do Paraíso”, Cathy experimenta o medo humano e racional: quando o chulo a bate para a matar. Perdido o controle do outro, fica vulnerável à dor física. Deter o controle será a devoção e obsessão da sua vida. Talvez a obsessão pelo controle seja, então, o mais claro indício do mal.
Imagine que acordava na Grã-Bretanha de 1 de Janeiro de 1800. Viveria no país mais rico do mundo: esperança de vida 36 anos e rendimento anual de três mil euros. Fuja do pesadelo e regresse ao século XXI. Hoje, no país mais pobre, a Zâmbia, a esperança de vida passa os 50 anos e o rendimento é superior ao daqueles ricos ingleses.
Os anos 20 começam aos ombros da década mais generosa que a humanidade viveu: os padrões de bem-estar, nutrição, recursos, saúde são os melhores de sempre. O que nos trouxe até aqui foi um capitalismo gerido por gente que se adapta à realidade. Para este peditório, apocalipse e revolução deram zero.
Foi a primeira Bica Curta de 2020. Dia 1 de Janeiro. No CM
Há Deus e Diabo no nosso futebol. Deixem-me falar só de Deus. Treinadores e jogadores portugueses triunfam por mérito em todo o mundo. Não foi só Mourinho e Ronaldo, ou agora Jesus, novo Pedro Álvares Cabral do Brasil. Vejam Nuno Espírito Santo e a meia-dúzia de jogadores portugueses que fazem do Wolverhampton um caso de admirável competência. Soltos e livres num ambiente de competição justa e saudável, entregues à sua iniciativa e inteligência, Nuno e os seus lobos lusitanos até comem a relva e dão espectáculo. Eis o que é excepcional no futebol português: a formação de jogadores e a nossa escola de treinadores. São gigantes.