Os ministros e a “tulpa”

Na China, pintou corpo e cabelo com fuligem e fez-se passar por mendiga. Entrou assim, primeira mulher europeia, em Lhasa

Despediu-se do marido para fazer uma viagem de dezoito meses. Voltou catorze anos depois.

Se vamos falar da liberdade, neste tempo em que o confinamento lhe fez um garrote, ousemos pôr o pé onde o pé de Alexandra-David Néel teve a sem-cerimónia de pisar. O pé descalço e a perna nua de Alexandra assomam da cama de Phillipe Néeel de Saint-Sauveur, em Tunes, 1901. Ela, que tantas coisas foi e quase tudo podia ser, era então cantora de ópera; ele, engenheiro-chefe dos caminhos de ferro. Amaram-se com a liberdade de amantes por quatro anos. Casaram em 1904 e, em 1911, Alexandra anunciou ao engenheiro-chefe aquela viagem espiritual à Índia e à China. Sozinha.

  Franco-belga, pai calvinista e mãe católica com ascendência escandinava e siberiana, em Alexandra morava um cocktail de turbulência. Trazia no corpo e na mente a diversidade que os nossos estreitos radicais julgam cantar, mas nunca experimentarão.

Era heterodoxa: em pensionatos, um protestante, outro mariano, mortificara o corpo e jejuara. Teria por ideal os santos ascetas? Sim, se com a varinha da maionese os fundirmos com uma pitada de anarquistas e um ou outro franco-mação! Alexandra foi tudo isso, logo se convertendo ao budismo: foi mesmo aprender sânscrito e tibetano, como em menina aprendera música.

Vestiu também a saia feminista, que iria despindo, abandonando as militantes a quem, com desapontado carinho, chamou “amáveis aves, de preciosa plumagem”. Achava, antes do tempo, que a conquista da independência financeira das mulheres era mais importante do que o subtil ópio de outros direitos.

E perdoem-me os leitores se chego ofegante, mas morro já aqui se não falar de “tulpas”. Alexandra criou a sua “tulpa”. Na Índia e num périplo que a levou ao Dalai-lama, Alexandra mergulhou numa aprendizagem espiritual de que são devedores, no século XX, escritores como Kerouac ou Ginsberg, mesmo Allan Watts, divulgador do budismo zen, guru dos hippies e, confesso, dos meus 19 anos.

Com um jovem monge, que adoptou como filho, Alexandra foi viver numa despida e crua caverna. Ao ascetismo cristão, juntou a técnica do “tumo”: pela meditação, sacava do seu corpo o intenso calor necessário para suportar a neve e o frio. E a “tulpa”?

Os monges budistas avisaram-na: criar uma “tulpa” era jogo perigoso. Vejamos, a “tulpa” é a materialização corpórea da projecção da mente de um lama, esses monges que chegaram já a mestres. As “tulpas”, jura Alexandra, são “pensamento em matéria” e podem mesmo ser vistas por outras pessoas.

Alexandra, ascendendo a mestre, criou a sua “tulpa”: concebeu um monge gordinho, bondoso e pachola, que lhe fazia as vontades. Ia aconselhar Marcelo, até Costa, a terem uma “tulpa”, que os servisse com competência. E hesito.  Esse ser imaginário, mas tangível, escreveu Alexandra, revoltou-se – os monges tinham-na avisado! Tornou-se mau e com vontade própria. (Nos melhores governos cai essa nódoa: talvez certos ministros sejam “tulpas” desembestadas.) Alexandra levou seis meses a desfazer a materialidade da sua “tulpa”. Peregrinou, a seguir. Foi à aldeia de Buda e na selva enfrentou um tigre. Na China, pintou corpo e cabelo com fuligem e fez-se passar por mendiga. Entrou assim, primeira mulher europeia, em Lhasa, cidade tibetana proibida. Confundindo a peregrinação espiritual com a maratona e Alexandra com Rosa Mota, a França atribui-lhe, então, o prémio da Academia de Desportos para o mais notável feito desportivo do ano. Alexandra viveu até aos 101 anos, deliciada com tão admirável equívoco.

Três testículos

imagem de Holy Motors, de Leos Carax. Um filme desconstrutivista?

Cada vez vou menos à bola com a tua cara! Peço desculpa ao leitor, mas estou a falar com os anos 20 do século XXI. Trazem na cara um bigodinho à Hitler, na mente e no coração a militância reeducativa de um Mao Tsé-Tung. Eis o que tenho de vos dizer, por muito que me custe: os anos 20 do século XXI têm, como Hitler e Mao, um problema de testículos.

Façam o favor de ver: o líder chinês, esse grande educador das massas, tinha um testículo não descido. Estes anos 20 do século XXI sofrem da mesma criptorquidia – um dos testículos não lhes desce para a bolsa escrotal. O velho Mao Mao não sabia: como os anos 20 do século XXI, era um ignorante da anatomia humana. Os pais não se deram ao trabalho de lhe dizer e o médico dele calou a deformação, antevendo e temendo a fome e a morte dos campos de reeducação.

Preferiu açambarcar as adolescentes com que Mao se distraía numa carruagem do nómada comboio presidencial. Mao nem cuidava do testículo nem das doenças venéreas: as raparigas, nesse tempo não-pandémico e pré Xi Jiping, achavam uma honra ser infectadas, um escarépio do ditador era a glória. O escarépio dos anos 20 do século XXI é autoritário, dogmático, populista, fundamentalista, islâmico, racialista ou de género.

E eu queria é apontar para o testículo que faltava a Hitler. Fake-news, dirão os entesoados neo-nazis. Mas os médicos soviéticos, que lhe ficaram com o cadáver, espremeram-no na autópsia e, por mais que espremessem, faltava sempre uma bolinha.

Um relatório médico do soldado Adolf, ferido na batalha de Somme, confirmou que o tiro inimigo, porventura francês, lhe abduzira essa delicada e completa pendência de quem tem os dois no sítio.

Quem alvejou o sacrário e as pendências dos anos 20 do século XXI? O primeiro tiro foi francês. Tiro desconstrucionista, quem o disparou? O alferes Derrida, o furriel Deleuze, o coronel Foucault? Sabe-se que a artilharia, hoje, vem das universidades americanas e escorre, pútrida, pela Europa. Há já trincheiras fundas também nas nossas universidades: as ciências humanas e sociais sofrem de criptorquidia, teme-se que chegue às ciências exactas.

E peço desculpa por ter deixado, ali em cima, Hitler de calças na mão. Deram-lhe o tiro inclemente em 1916, nessa sangrenta e fétida I Guerra, casulo da pandemia dantesca que seguiu, impropriamente chamada gripe espanhola por ter sido americana ou chinesa a sua origem. E o que quero dizer é que, no mesmo ano em que Hitler foi alvejado, outro tiro subtraiu também um testículo ao generalíssimo Francisco Franco. Perto de Ceuta, onde a nossa ínclita geração roçou ombros com o esplendor guerreiro, uma bala traiçoeira pulverizou o testículo galego de Franco. No mesmo ano de 1916, tal como sucedeu a Hitler.

Cada um sem um testículo, Franco e Hitler encontraram-se. O encontro foi na mesma estação de Hendaia onde eu dormi no chão, estudante a caminho da universidade de Grenoble. Hitler e Franco não dormiram no chão, mas passaram em revista as tropas, de desgracioso bracinho esticado e botas engraxadas, arreios e uniforme cintado que fazem de todo o fascista um manequim de vitrina.

Cada um com o seu testículo, parlamentaram durante seis horas e fizeram um acordo cinzento. Hitler diria depois, evocando a árida chateza dessa conversa sem brilho: “Teria sido muito mais agradável, se me tivessem arrancado quatro ou cinco dentes seguidos.” Criptorquídeos, ditatoriais, de obtusa e persistente chateza teórica, é essa a fastidiosa cara dos anos 20 do século XXI, com que cada vez vou menos à bola.

Publicado no Jornal de Negócios

A aventura que enriquece: Vamos Ler!

Vamos Ler! é um pequeno e gostosíssimo livro de Eugénio Lisboa. Nele, o autor partilha, primeiro, a sua experiência de leitor – como se deixou seduzir, como se apaixonou por cada romance, como viveu em cada um vidas que de outro modo nunca viveria e diz mesmo, coisas desassombradas como esta: «… agradeço à extinta PIDE, com a sua boçal e brutal vigilância, ter aguçado e apimentado, em mim, o gosto pelas leituras proibidas.»

Depois, Eugénio Lisboa, com a sua arte de escrever com encanto e alegria, sugere 35 autores portugueses e 50 livros que vão injectar na pele dos leitores, para sempre, o gosto da leitura.

Vamos Ler! Um Cânone para um Leitor Relutante é um convite sedutor à aventura e ao prazer da leitura. O autor explica: «Entre nós, parece haver o culto, de um snobismo provinciano, da “dificuldade”, do “aborrecido”, do “opaco”, da “circunvolução”, do “arrebicado”, do “complicado”, que confundem com o “complexo”

Contra esse snobismo e contra a chatice, Eugénio Lisboa escolhe livros que vão cativar os seus leitores, abrir-lhes portas e iluminar realidades. Eis o princípio que guia este livro: «A leitura é, para os grandes leitores, um prazer, uma instrução e uma terapêutica… não há dúvida de que a grande literatura nos abre grandes e novas perspectivas sobre o mundo em que vivemos: fala-nos de lugares e de pessoas, de ideias e de emoções, de conflitos humanos e de aventuras que nos enriquecem.»

Se eu tivesse de escolher os pontos fortes deste livro, sublinharia três

  1.     É um pequeno cânone da literatura portuguesa que propõe a todos os leitores, mesmo aos que dizem não gostar de ler, os 50 livros e 35 autores portugueses com que vale a pena começar.
  2.     É um cânone diferente dos outros. Além dos leitores fiéis, que vão delirar com as pequenas provocações, o livro quer sobretudo oferecer um cânone a quem quer começar a ler ou mesmo ao leitor irregular.
  3.     Este é um livro que vive a literatura e a leitura com alegria e nos propõe livros cuja leitura nos oferece viagens de prazer e de grande emoção.

Vai chegar às livrarias no dia 23 de Março. Mas para os leitores menos relutantes e desejosos de uma aventura excitante, a Guerra & Paz manda-lhe já este livrinho para casa.

Méliès

Vejam, Madame Méliès olha para a curta e singela plaquette que a Cinemateca dedicou a um pequeno ciclo de filmes do seu avô, Georges Méliès, com acompanhamento musical de um pianista que, deve dizer-se, era a dedo que conhecia aqueles filmes. Quantos anos terá esta foto? Trinta e cinco? Foi a meio dos anos 80, acreditava eu estar a meia-dúzia de palmos do meio da minha vida.

Se alguém grita a palavra cinema no cimo das montanhas deste mundo, logo o eco responde “Irmãos Lumière”. Mas se o cinema existe e é o que é, a Méliès o devemos. Contra a severidade e a “escassez” documental dos manos da luz, Méliès abriu os braços ao milagre, ao maravilhoso, ao cómico, à fantasia, à irreverência, à bondade e à maldade, ao espanto e à decepção. Mostrou-nos que a mentira do storytelling é que é o verdadeiro espelho da vida.

Ao lado de Madame Méliès, neta desse prestidigitador, está o traste que escreve e assina esta breve nota pingada a nostalgia.

Um Mundo Aflito

Publicámos este livro há quase um ano. Foi, se bem sei, o primeiro livro, em Portugal, a responder, a quente, à surpresa da pandemia e do confinamento. Pensou-o e escreveu-o, a este Um Mundo Aflito, José Jorge Letria. Um texto de bom fôlego pensando e sentindo (ou sentindo pensando, como diria António Damásio?) a angústia do desconhecido, a ausência e o vazio daqueles dias. Letria convidou Inácio Ludgero, que fez as fotografias que abrem e dão capa a esse Um Mundo Aflito. São fotografias de desolação, de espanto face à cidade desabitada, às suas ruas, praças e jardins sem gente.

Com delicadeza, o Vasco Ludgero fez este booktrailer que nos inunda de tristeza.

Basta ver-lhe os olhos

Delon tal qual Luchino Visconti o viu: Rocco e os seus irmãos

Não sei se me lembro mais dos olhos ou do silêncio. Se, por vontade de Deus, Alain Delon tivesse sido um ser invisível a quem nós só víssemos os olhos, saberíamos, ainda assim, que aqueles, de azul e aço, eram os olhos de um samurai, os olhos de Alain Delon.

E poderiam ter sido os olhos de um pasteleiro. Menino de sua mãe, Mounette, e da sua ama, mulher de um guarda prisional, Alain, menino, teve o sonho megalómano de ser pasteleiro. Fez mesmo, como aplicado francesinho, um curso. Terá, nessa concentração de massa tendida e ovos batidos, aprendido o silêncio?

Com o guarda prisional tomou gosto às prisões, às grades que se levantavam, às pesadas portas que se cerravam com estrondo. Sonhou ali fugas a que na adolescência, despejado em casas de correcção, deu corpo: a maior, aos 14 anos, para Chicago, parado pela polícia num porto da costa francesa. Talvez o berço do mutismo de Alain tenha sido o corredor esquivo desse confinamento…

Surpresa, aos 16 foi atrás dos seus obstinados olhos mudos e voluntariou-se para a tropa: acabou na Indochina. Aos 19, num cinema de Saigão, sofria a França a humilhação militar vietnamita, Alain descobre o actor: vê Jean Gabin em Touchez pas au grisbi e sente que, como Gabin, quer ser uma sombra projectada numa tela gigantesca.

É quase ocioso falar da beleza de Delon, mas que mal há em deixarmo-nos deslizar uns minutos pela lábil anca do ócio? Alain, de Paris, só conhecia o Pigalle e a ternura meretrícia das gentis damas que o alimentavam a afagos de rua e calor de quartos de pensão. Com o dedo no mapa, um amigo ordenou-lhe: St. Germain-des-Prés! Como o Gama à busca da pimenta das Índias, assim foi Delon, da margem direita à margem esquerda, cruzando o Sena. Mas ao contrário do Gama, inábil a seduzir samorins e rajás, a ultrajante beleza dos 21 anos de Alain triturou St. Germain: incansável moinho moendo café.

As mulheres fizeram dele o actor que tão dolorosa vontade tinha de ser. Primeiro, Brigitte Auber. Actriz, com uma aparição juvenil e insolente no To Catch a Thief, de Hitchcock, Brigitte deu-lhe casa e educou-o. De bandeja, serviu-o a Michèle Cordoue, mulher do cineasta Yves Allègret. “És exactamente o que o meu marido anda à procura”, disse-lhe, sublinhando que ele era também, exactamente, o que ela buscava para si mesma. Da cama de Michèle para o estúdio do marido, fazendo-o personagem de um filme com o caricato título Quando a Mulher se Intromete, o cinema descobriu Delon. E em Delon descobriu os olhos e o silêncio que Visconti, Antonioni, René Clément, mesmo Godard, reverenciaram, ainda que nenhum tenha tocado a fímbria do manto de Jean-Pierre Melville, que desse silêncio e desse olhar fez a matéria mesma de Le Samouraï, como a caridade era a matéria de Madre Teresa e o inseguro amor a matéria de Marilyn Monroe.

Mudo, sabia escrever. Delinquente, porventura gigolo, mil vezes amante, apolo silente e solitário, Delon sabia escrever. Digo eu, ao ler as duas cartas que escreveu a Romy Schneider. Raptara-a, dizia, aos austríacos, que nunca lhe perdoaram o golpe audaz que fora ter ele roubado a virginal Sissi. A primeira carta, rompendo com ela – “Vivemos o nosso casamento antes da boda. Devolvo-te a tua liberdade deixando-te o meu coração” -, a segunda, no funeral tão inesperado – “Dir-se-ia que uma mão, com doçura, apagou do teu rosto todas as crispações, todas as angústias da infelicidade.” –, ambas reveladoras do menino de sua mãe, que no samurai se esconde. Mudo como um homem, na mão uma escrita de mulher.

Publicado no Jornal de Negócios

Do Fundo do Coração

Quando fil­mou One From the Heart (1982), Cop­pola era o cen­tro do mundo. Vinham vê-lo pere­gri­nos ale­mães (Wen­ders, Her­zog, Syber­berg), fran­ce­ses (Godard e Berri), ingle­ses (Michael Powell), jugos­la­vos (Maka­ve­jev), rus­sos (Bon­dart­chuck), sem esque­cer os pro­lon­ga­men­tos ori­en­tais de que Kuro­sawa é o exem­plo maior. O mundo con­ver­gia para Hollywood e um pla­teau da Zoe­trope, o estúdio de Francis, bas­tava para o con­ter. Mundo e palco pare­ciam ser uma e a mesma coisa: Do Fundo do Cora­ção não faz senão ence­nar essa seme­lhança.
O texto que se segue foi escrito para ser lido depois de se ver o filme na Cine­ma­teca. Sem o filme à mão…

One From the Heart acende-se como a luz. A ideia de que estou perante um filme novo é uma evi­dên­cia irre­pa­rá­vel. Tanto se me dá como se me deu que isso custe aos que só con­se­guem ver o “novo” numa his­tó­ria novi­nha em folha e que, por isso, con­si­de­ram (o que dou de barato) que a “his­tó­ria” de One From the Heart tem res­pei­tá­veis bar­bas. Tanto se me dá como se me deu que isso custe aos que só con­se­guem des­cor­ti­nar o “novo” em cinema de “pura rup­tura” e que nem sequer admi­tem que o filme que “conta uma his­tó­ria” possa ser novo.
One From the Heart é novo na arte de criar simul­ta­nei­da­des tem­po­rais, é novo no modo como “viaja” de um espaço a outro, e é novo mesmo no modo como asso­cia a música à ima­gem — o que quer dizer que é tam­bém o mais belo (senão o único) melo­drama desta década.

A his­tó­ria, repito, poderá ser a mais velhas das his­tó­rias — num tempo em que todas as his­tó­rias já foram con­ta­das, por­que não houve nenhuma que não lem­brasse ao diabo — mas nunca nin­guém se tinha lem­brado de con­tar a velha his­tó­ria de One From the Heart à velo­ci­dade da luz. Em One From the Heart, quando se passa de uma cena à outra, não se passa neces­sa­ri­a­mente de um plano a outro. De resto, em One From the Heart não se passa. A simul­ta­nei­dade das opções não se ima­gina, não se deduz nem se infere: vê-se. E vê-se logo.
No mesmo plano (con­ceito arcaico alta­mente insa­tis­fa­tó­rio) chocam-se, por exem­plo, as infi­de­li­da­des de Hank e Franny. Mais ainda, e essa é a suprema audá­cia, não chega a ser certo que seja a efec­tiva infi­de­li­dade recí­proca que vemos: é pos­sí­vel que este­ja­mos a ver a ideia dessa infi­de­li­dade, tal como a avi­sada cons­ci­ên­cia de cada um dos aman­tes a projecta.

Para ser sin­cero, pouco me inte­ressa que Fran­cis Ford Cop­pola tenha sido o pri­meiro a con­tar assim uma his­tó­ria e as ideias dessa his­tó­ria. Esse subli­nhado era ape­nas um recurso retó­rico. Agora que ele a tenha con­tado, pela pri­meira vez, à velo­ci­dade da luz e com tão belís­sima feli­ci­dade, só não é tão bonito como quando se des­co­bre pela pri­meira o amor por­que isso foi Grif­fith e foi Ford (no cinema, o amor foi des­co­berto duas vezes pela pri­meira vez), muito embora con­ti­nue a dar a mesma von­tade de mor­rer.
Há pes­soas a quem o facto de Cop­pola ter feito irrom­per o “novo” atra­vés de meios “novos” pro­voca um risi­nho ner­voso. A mim dá-me uma espé­cie de satis­fa­ção silen­ci­osa e apai­xo­nada. Ponho-me à escuta e dou a pala­vra a Cop­pola: “Apli­car e fazer um novo uso da tec­no­lo­gia — um novo modo de fazer um filme — poderá impli­car uma nova maneira de pen­sar um filme. Há uma nova área de con­teúdo das his­tó­rias que se torna aces­sí­vel atra­vés de uma nova tec­no­lo­gia… Ainda não des­co­bri um nome para isso: ‘cinema elec­tró­nico’ não é na ver­dade cor­recto e uma coisa como ‘vide­o­vi­sion’ soa a cam­pa­nha publi­ci­tá­ria. Tes­tar tudo atra­vés dos écrans de vidro, mani­pu­lar os cená­rios e as cores, ver muito antes do tempo, de certo modo, como é que tudo irá sur­gir no grande écran. De modo curi­oso e tal­vez con­tra­di­tó­rio, o uso de um maior número de téc­ni­cas torna a rea­li­za­ção de um filme mais pes­soal. Não é pre­ciso ser-se tão abs­tracto agora.
Na ver­dade, dis­po­nho agora dos meios que me per­mi­tem sentar-me e tra­ba­lhar como se fosse um roman­cista, ou seja, pra­ti­ca­mente sozi­nho, tra­ba­lhando na minha ima­gi­na­ção aquilo que o filme poderá vir a ser. Estou obvi­a­mente a encur­tar a expli­ca­ção, mas a pura ver­dade é que posso sair da minha sala de tra­ba­lho direc­ta­mente para a sala de pro­jec­ção e vê-lo”.

As coi­sas gran­des e novas nunca pare­cem gran­des e novas, o que tal­vez expli­que o gigan­tesco flop comer­cial que foi One From the Heart. As coi­sas gran­des e novas pare­cem sem­pre peque­nas e fami­li­a­res, pare­cem muito sim­ples e sem con­sequên­cias, e só se dá conta delas quando já trans­for­ma­ram tudo à nossa volta. Suce­deu com One From the Heart onde não só tudo é fami­liar, como tudo o que vemos só podia ser como vemos que é. Essa impres­são de neces­si­dade é um bra­são de nobreza. Por exem­plo, ver­mos que tudo foi fil­mado em estú­dio, com a repro­du­ção de uma Las Vegas em mini­a­tura que riva­liza em per­fei­ção com o ori­gi­nal, leva-nos a pen­sar que todo o cinema devia obri­ga­to­ri­a­mente ser feito em estú­dio e que o con­trá­rio é uma detes­tá­vel per­ver­são.
Tam­bém nos esque­ce­mos que nor­mal­mente, no cinema, para cada cena, se pre­para uma deter­mi­nada ilu­mi­na­ção e pas­sa­mos a acre­di­tar como­vida e can­di­da­mente que, num filme, a ilu­mi­na­ção é musi­cal e deve ter uma linha meló­dica que sirva o ritmo das emo­ções, como na cena em que Fre­de­ric For­rest “dirige” os car­ros da Rea­lity Wrec­king como quem dirige uma orques­tra, ou na pro­di­gi­osa manhã que se segue à noite de amor com Nas­tas­sja Kinski, ou nessa como­vente “desa­fi­na­ção” que é a can­ção de Hank no aero­porto, ou por fim (no exem­plo que deve sem­pre ser o último argu­mento de quem esteja per­di­da­mente apai­xo­nado pelo filme) na peque­nina e deli­ci­osa fan­ta­sia que é o regresso de Teri Garr a casa: a incrí­vel inti­mi­dade da cena, desse impos­sí­vel regresso, faz com que a veja­mos menos com os olhos e mais com as mãos, como se o filme nos viesse, feito cai­xi­nha de música, parar às mãos.

One From the Heart é o con­flito entre a luz e a escu­ri­dão, entre o dia e a noite, entre a cidade e o deserto. Claro que, por causa disso tudo, é tam­bém o filme do con­flito entre as cores: “o con­flito entre a púrpura-azul-verde, cores da intro­ver­são, e o vermelho-laranja-amarelo, cores da extro­ver­são, é rea­vi­vado. O filme é a repre­sen­ta­ção, pelas cores do espec­tro cro­má­tico, das emo­ções e dos esta­dos de alma que carac­te­ri­zam os momen­tos da nossa vida…” disse Vit­to­rio Sto­raro, o direc­tor de foto­gra­fia. Ainda mais belo que o estudo car­te­si­ano das pai­xões, acres­cento eu.
Tão belo como os mais belos Min­nelli no tra­ta­mento da cor, One From the Heart reen­con­tra o esplen­dor do melo­drama na fabu­losa música de Tom Waits e Crys­tal Gail, com­ple­mento sonoro (melhor seria dizer, um alter-ego) no novo tipo de pro­fun­di­dade de campo inven­tado por Cop­pola (a pro­fun­di­dade de campo em Orson Wel­les é “new­to­ni­ana”, enquanto no Cop­pola de One From the Heart é “eins­tei­ni­ana”)… Mas para quê rei­vin­di­car mais méri­tos for­mais? One From the Heart é ao mesmo tempo o tea­tro, a fábula, o conto de fadas, a pres­ti­di­gi­ta­ção de um plano em que Nas­tas­sja, feita “cir­cus girl”, desa­pa­rece como “spit on the grill”. Como se não bas­tasse o fogo-de-artifício de tanta ilusão.

O negro é uma invenção de Caravaggio

La Cattura di Cristo

Podem apa­gar a luz ao mundo que não haverá nenhum negro como este. Falo do negro, esse fundo negro, donde Cara­vag­gio faz emer­gir a sua La Cat­tura di Cristo. Entra-se na pro­saica Nati­o­nal Gal­lery, em Dublin, terra de nevo­ei­ros e som­bras, e na pla­ci­dez de uma sala assombra-nos este negro, o mais bri­lhante negro que já vi em toda a minha lamen­tá­vel vida.

Um negro irre­pro­du­zí­vel, por exem­plo, na net, nesta rede que nos junta. Por mais “fiel” que uma repro­du­ção seja, e na net não há nenhuma, a luz, a tex­tura, a sobe­ra­nia do negro de Cara­vag­gio só podem ver-se vendo o pró­prio qua­dro. Vale a pena ir a Dublin só por isso.

Não me lembro já onde, mas sei que um dia, talvez aqui, escrevi que a luz, em Cara­vag­gio, não vem de lado nenhum. Mas donde é que lhe vêm estes pro­fun­dos, retin­tos negros que assus­tam a noite, a pró­pria natu­reza, negros capa­zes de apa­vo­rar a escura mente de um psicótico?

Nin­guém ilu­mina como Cara­vag­gio. Pode até sugerir-se que, nesta Cat­tura di Cristo, a luz vem da esquerda alta. Fraca con­so­la­ção que os fac­tos des­men­tem. Cara­vag­gio nunca pre­ci­sou da luz de Deus. A luz não vem de fora ilu­mi­nar o qua­dro: inso­lente, delin­quente, Cara­vag­gio pin­tou a sua pró­pria luz, cada qua­dro seu sendo um uni­verso auto-suficiente. Por exem­plo, à direita de La Cat­tura di Cristo há um pai­sano que levanta uma lan­terna, con­fun­dindo as fon­tes de luz que se quei­ram atri­buir ao qua­dro. Que esse pai­sano seja, como garan­tem os espe­ci­a­lis­tas, o auto-retrato de Cara­vag­gio, que peca­dor ali mal se con­fessa, não me parece um acaso nem pequena iro­nia. Os ros­tos de Cristo e Judas são duas lâm­pa­das ace­sas no cen­tro (ligei­ra­mente des­lo­cado para a esquerda) deste qua­dro e, para poli­ciar vio­len­ta­mente a noite, acendem-se – mas como é que é pos­sí­vel se é negro sobre negro? – as arma­du­ras de metá­lico negro dos sol­da­dos romanos.

Drama de luz, Cara­vag­gio delicia-se e atormenta-se tam­bém com o drama figu­ra­tivo. No cen­tro o beijo, a trai­ção (que outra coisa pode um beijo ser?) de Judas ao Salvador.

Num qua­dro em que todas as per­so­na­gens, sete homens, estão ani­ma­das de um movi­mento con­vul­sivo, o Cristo é quase pas­sivo, um faça-se em mim segundo a vossa von­tade. Mas a boca húmida de Judas está tão pró­xima e o hálito da trai­ção é-lhe tão insu­por­tá­vel que Cristo não resiste a um ligeiro tre­jeito de des­gosto dos lábios e a um invo­lun­tá­rio des­vio da cabeça que foge ao hedi­ondo aroma do denun­ci­ante. Só o silen­ci­oso esta­lar dos seus dedos enca­va­li­ta­dos e das mãos vio­len­ta­mente cru­za­das con­fes­sam o seu desespero.

Mais à esquerda, num movi­mento que o isola do resto da cena, Cara­vag­gio pin­tou um grito. O grito. Pobre Munch! Ao grito, Cara­vag­gio, deu o corpo de João, o mais amado dos dis­cí­pu­los. É um grito sufo­cado, o ter­ror de uma boca des­me­su­ra­da­mente aberta, só para res­pi­rar, como a boca ater­ro­ri­zada de uma garoupa fora de água. O olhar vítreo e esga­ze­ado do ani­mal que teme pela sobre­vi­vên­cia, bra­ços levan­ta­dos, falan­ges insu­por­ta­vel­mente esti­ca­das, à beira da frac­tura, pin­ta­das a pie­dade e pânico, revolta por den­tro, medo por fora.

Esta La Cat­tura di Cristo até na sua his­tó­ria externa é dra­má­tica. Obra enco­men­dada, em 1602, pelo Senhor da nobre casa Mat­tei, esteve per­dida duzen­tos anos. Com­prada por um esco­cês, terá pas­sado a pri­va­das mãos irlan­de­sas que, num gesto de reco­nhe­ci­mento pelo apoio dos jesuí­tas à morte de um inde­pen­den­tista da famí­lia, a doa­ram à comu­ni­dade de Santo Iná­cio de Loyola, em Dublin. Sus­pensa na parede cen­tral do refei­tó­rio, ali ficou esquecida, passando por ser uma das cópias de Gerard van Honthorst, até que um dos jesuí­tas con­vo­cou dois espe­ci­a­lis­tas ita­li­a­nos de Cara­vag­gio. Auten­ti­cada a auto­ria em 1993, não sem peri­pé­cias rocam­bo­les­cas mais recen­tes, com o apa­re­ci­mento de uma cópia cap­tu­rada pela polí­cia alemã e anun­ci­ada como o ori­gi­nal, a tela de Miche­lan­gelo Merisi, nas­cido em Cara­vag­gio, que rece­beu 150 scudi pelo qua­dro, como consta dos docu­men­tos encon­tra­dos na casa do marquês Ciri­aco Mat­tei, converteu-se no ex-libris da boa colec­ção de pin­tura euro­peia da Nati­o­nal Gallery.

É uma iro­nia his­tó­rica um qua­dro de bei­jada trai­ção ter ido parar à Irlanda, pátria opri­mida em que a inde­pen­dên­cia gerou tam­bém ini­qui­dade, sus­peita e infor­ma­do­res. Há um Cara­vag­gio, negro e trá­gico, numa pátria de den­sas noi­tes de nevo­eiro e cons­pi­ra­ção, punhais, bei­jos e silen­ci­o­sas denún­cias.

Jamais pen­sa­ria a pin­tura de Cara­vag­gio a apontar-nos o cami­nho da devo­ção. A dis­po­si­ção crua, pro­saica e polí­tica dos ros­tos, dos ges­tos, dos chei­ros é a assump­ção, por Cara­vag­gio, da arte como ofí­cio auto-suficiente, distanciando-se de toda a teo­lo­gia ou mesmo opondo-se, e radi­cal­mente, nesse século XVII, a qual­quer rés­tea de fun­ci­o­na­li­dade religiosa.

Apoio-me na minha mito­lo­gia manuelina: gosto da figura de um homem só con­sigo mesmo. É o que vejo em todos os Cara­vag­gio e, em par­ti­cu­lar, na Cat­tura deste homem que outro trai e os demais aban­do­nam. Nos homens que Cara­vag­gio retrata já só há uma humilde e desam­pa­rada huma­ni­dade. Intrans­cen­dente. Cara­vag­gio devia saber. Matou com as pró­prias mãos.