Vejam, Madame Méliès olha para a curta e singela plaquette que a Cinemateca dedicou a um pequeno ciclo de filmes do seu avô, Georges Méliès, com acompanhamento musical de um pianista que, deve dizer-se, era a dedo que conhecia aqueles filmes. Quantos anos terá esta foto? Trinta e cinco? Foi a meio dos anos 80, acreditava eu estar a meia-dúzia de palmos do meio da minha vida.
Se alguém grita a palavra cinema no cimo das montanhas deste mundo, logo o eco responde “Irmãos Lumière”. Mas se o cinema existe e é o que é, a Méliès o devemos. Contra a severidade e a “escassez” documental dos manos da luz, Méliès abriu os braços ao milagre, ao maravilhoso, ao cómico, à fantasia, à irreverência, à bondade e à maldade, ao espanto e à decepção. Mostrou-nos que a mentira do storytelling é que é o verdadeiro espelho da vida.
Ao lado de Madame Méliès, neta desse prestidigitador, está o traste que escreve e assina esta breve nota pingada a nostalgia.
Publicámos este livro há quase um ano. Foi, se bem sei, o primeiro livro, em Portugal, a responder, a quente, à surpresa da pandemia e do confinamento. Pensou-o e escreveu-o, a este Um Mundo Aflito, José Jorge Letria. Um texto de bom fôlego pensando e sentindo (ou sentindo pensando, como diria António Damásio?) a angústia do desconhecido, a ausência e o vazio daqueles dias. Letria convidou Inácio Ludgero, que fez as fotografias que abrem e dão capa a esse Um Mundo Aflito. São fotografias de desolação, de espanto face à cidade desabitada, às suas ruas, praças e jardins sem gente.
Com delicadeza, o Vasco Ludgero fez este booktrailer que nos inunda de tristeza.
Delon tal qual Luchino Visconti o viu: Rocco e os seus irmãos
Não sei se me lembro mais dos olhos ou do silêncio. Se, por vontade de Deus, Alain Delon tivesse sido um ser invisível a quem nós só víssemos os olhos, saberíamos, ainda assim, que aqueles, de azul e aço, eram os olhos de um samurai, os olhos de Alain Delon.
E poderiam ter sido os olhos de um pasteleiro. Menino de sua mãe, Mounette, e da sua ama, mulher de um guarda prisional, Alain, menino, teve o sonho megalómano de ser pasteleiro. Fez mesmo, como aplicado francesinho, um curso. Terá, nessa concentração de massa tendida e ovos batidos, aprendido o silêncio?
Com o guarda prisional tomou gosto às prisões, às grades que se levantavam, às pesadas portas que se cerravam com estrondo. Sonhou ali fugas a que na adolescência, despejado em casas de correcção, deu corpo: a maior, aos 14 anos, para Chicago, parado pela polícia num porto da costa francesa. Talvez o berço do mutismo de Alain tenha sido o corredor esquivo desse confinamento…
Surpresa, aos 16 foi atrás dos seus obstinados olhos mudos e voluntariou-se para a tropa: acabou na Indochina. Aos 19, num cinema de Saigão, sofria a França a humilhação militar vietnamita, Alain descobre o actor: vê Jean Gabin em Touchez pas au grisbi e sente que, como Gabin, quer ser uma sombra projectada numa tela gigantesca.
É quase ocioso falar da beleza de Delon, mas que mal há em deixarmo-nos deslizar uns minutos pela lábil anca do ócio? Alain, de Paris, só conhecia o Pigalle e a ternura meretrícia das gentis damas que o alimentavam a afagos de rua e calor de quartos de pensão. Com o dedo no mapa, um amigo ordenou-lhe: St. Germain-des-Prés! Como o Gama à busca da pimenta das Índias, assim foi Delon, da margem direita à margem esquerda, cruzando o Sena. Mas ao contrário do Gama, inábil a seduzir samorins e rajás, a ultrajante beleza dos 21 anos de Alain triturou St. Germain: incansável moinho moendo café.
As mulheres fizeram dele o actor que tão dolorosa vontade tinha de ser. Primeiro, Brigitte Auber. Actriz, com uma aparição juvenil e insolente no To Catch a Thief, de Hitchcock, Brigitte deu-lhe casa e educou-o. De bandeja, serviu-o a Michèle Cordoue, mulher do cineasta Yves Allègret. “És exactamente o que o meu marido anda à procura”, disse-lhe, sublinhando que ele era também, exactamente, o que ela buscava para si mesma. Da cama de Michèle para o estúdio do marido, fazendo-o personagem de um filme com o caricato título Quando a Mulher se Intromete, o cinema descobriu Delon. E em Delon descobriu os olhos e o silêncio que Visconti, Antonioni, René Clément, mesmo Godard, reverenciaram, ainda que nenhum tenha tocado a fímbria do manto de Jean-Pierre Melville, que desse silêncio e desse olhar fez a matéria mesma de Le Samouraï, como a caridade era a matéria de Madre Teresa e o inseguro amor a matéria de Marilyn Monroe.
Mudo, sabia escrever. Delinquente, porventura gigolo, mil vezes amante, apolo silente e solitário, Delon sabia escrever. Digo eu, ao ler as duas cartas que escreveu a Romy Schneider. Raptara-a, dizia, aos austríacos, que nunca lhe perdoaram o golpe audaz que fora ter ele roubado a virginal Sissi. A primeira carta, rompendo com ela – “Vivemos o nosso casamento antes da boda. Devolvo-te a tua liberdade deixando-te o meu coração” -, a segunda, no funeral tão inesperado – “Dir-se-ia que uma mão, com doçura, apagou do teu rosto todas as crispações, todas as angústias da infelicidade.” –, ambas reveladoras do menino de sua mãe, que no samurai se esconde. Mudo como um homem, na mão uma escrita de mulher.
Quando filmou One From the Heart (1982), Coppola era o centro do mundo. Vinham vê-lo peregrinos alemães (Wenders, Herzog, Syberberg), franceses (Godard e Berri), ingleses (Michael Powell), jugoslavos (Makavejev), russos (Bondartchuck), sem esquecer os prolongamentos orientais de que Kurosawa é o exemplo maior. O mundo convergia para Hollywood e um plateau da Zoetrope, o estúdio de Francis, bastava para o conter. Mundo e palco pareciam ser uma e a mesma coisa: Do Fundo do Coração não faz senão encenar essa semelhança. O texto que se segue foi escrito para ser lido depois de se ver o filme na Cinemateca. Sem o filme à mão…
One From the Heart acende-se como a luz. A ideia de que estou perante um filme novo é uma evidência irreparável. Tanto se me dá como se me deu que isso custe aos que só conseguem ver o “novo” numa história novinha em folha e que, por isso, consideram (o que dou de barato) que a “história” de One From the Heart tem respeitáveis barbas. Tanto se me dá como se me deu que isso custe aos que só conseguem descortinar o “novo” em cinema de “pura ruptura” e que nem sequer admitem que o filme que “conta uma história” possa ser novo. One From the Heart é novo na arte de criar simultaneidades temporais, é novo no modo como “viaja” de um espaço a outro, e é novo mesmo no modo como associa a música à imagem — o que quer dizer que é também o mais belo (senão o único) melodrama desta década.
A história, repito, poderá ser a mais velhas das histórias — num tempo em que todas as histórias já foram contadas, porque não houve nenhuma que não lembrasse ao diabo — mas nunca ninguém se tinha lembrado de contar a velha história de One From the Heart à velocidade da luz. Em One From the Heart, quando se passa de uma cena à outra, não se passa necessariamente de um plano a outro. De resto, em One From the Heart não se passa. A simultaneidade das opções não se imagina, não se deduz nem se infere: vê-se. E vê-se logo. No mesmo plano (conceito arcaico altamente insatisfatório) chocam-se, por exemplo, as infidelidades de Hank e Franny. Mais ainda, e essa é a suprema audácia, não chega a ser certo que seja a efectiva infidelidade recíproca que vemos: é possível que estejamos a ver a ideia dessa infidelidade, tal como a avisada consciência de cada um dos amantes a projecta.
Para ser sincero, pouco me interessa que Francis Ford Coppola tenha sido o primeiro a contar assim uma história e as ideias dessa história. Esse sublinhado era apenas um recurso retórico. Agora que ele a tenha contado, pela primeira vez, à velocidade da luz e com tão belíssima felicidade, só não é tão bonito como quando se descobre pela primeira o amor porque isso foi Griffith e foi Ford (no cinema, o amor foi descoberto duas vezes pela primeira vez), muito embora continue a dar a mesma vontade de morrer. Há pessoas a quem o facto de Coppola ter feito irromper o “novo” através de meios “novos” provoca um risinho nervoso. A mim dá-me uma espécie de satisfação silenciosa e apaixonada. Ponho-me à escuta e dou a palavra a Coppola: “Aplicar e fazer um novo uso da tecnologia — um novo modo de fazer um filme — poderá implicar uma nova maneira de pensar um filme. Há uma nova área de conteúdo das histórias que se torna acessível através de uma nova tecnologia… Ainda não descobri um nome para isso: ‘cinema electrónico’ não é na verdade correcto e uma coisa como ‘videovision’ soa a campanha publicitária. Testar tudo através dos écrans de vidro, manipular os cenários e as cores, ver muito antes do tempo, de certo modo, como é que tudo irá surgir no grande écran. De modo curioso e talvez contraditório, o uso de um maior número de técnicas torna a realização de um filme mais pessoal. Não é preciso ser-se tão abstracto agora. Na verdade, disponho agora dos meios que me permitem sentar-me e trabalhar como se fosse um romancista, ou seja, praticamente sozinho, trabalhando na minha imaginação aquilo que o filme poderá vir a ser. Estou obviamente a encurtar a explicação, mas a pura verdade é que posso sair da minha sala de trabalho directamente para a sala de projecção e vê-lo”.
As coisas grandes e novas nunca parecem grandes e novas, o que talvez explique o gigantesco flop comercial que foi One From the Heart. As coisas grandes e novas parecem sempre pequenas e familiares, parecem muito simples e sem consequências, e só se dá conta delas quando já transformaram tudo à nossa volta. Sucedeu com One From the Heart onde não só tudo é familiar, como tudo o que vemos só podia ser como vemos que é. Essa impressão de necessidade é um brasão de nobreza. Por exemplo, vermos que tudo foi filmado em estúdio, com a reprodução de uma Las Vegas em miniatura que rivaliza em perfeição com o original, leva-nos a pensar que todo o cinema devia obrigatoriamente ser feito em estúdio e que o contrário é uma detestável perversão. Também nos esquecemos que normalmente, no cinema, para cada cena, se prepara uma determinada iluminação e passamos a acreditar comovida e candidamente que, num filme, a iluminação é musical e deve ter uma linha melódica que sirva o ritmo das emoções, como na cena em que Frederic Forrest “dirige” os carros da Reality Wrecking como quem dirige uma orquestra, ou na prodigiosa manhã que se segue à noite de amor com Nastassja Kinski, ou nessa comovente “desafinação” que é a canção de Hank no aeroporto, ou por fim (no exemplo que deve sempre ser o último argumento de quem esteja perdidamente apaixonado pelo filme) na pequenina e deliciosa fantasia que é o regresso de Teri Garr a casa: a incrível intimidade da cena, desse impossível regresso, faz com que a vejamos menos com os olhos e mais com as mãos, como se o filme nos viesse, feito caixinha de música, parar às mãos.
One From the Heart é o conflito entre a luz e a escuridão, entre o dia e a noite, entre a cidade e o deserto. Claro que, por causa disso tudo, é também o filme do conflito entre as cores: “o conflito entre a púrpura-azul-verde, cores da introversão, e o vermelho-laranja-amarelo, cores da extroversão, é reavivado. O filme é a representação, pelas cores do espectro cromático, das emoções e dos estados de alma que caracterizam os momentos da nossa vida…” disse Vittorio Storaro, o director de fotografia. Ainda mais belo que o estudo cartesiano das paixões, acrescento eu. Tão belo como os mais belos Minnelli no tratamento da cor, One From the Heart reencontra o esplendor do melodrama na fabulosa música de Tom Waits e Crystal Gail, complemento sonoro (melhor seria dizer, um alter-ego) no novo tipo de profundidade de campo inventado por Coppola (a profundidade de campo em Orson Welles é “newtoniana”, enquanto no Coppola de One From the Heart é “einsteiniana”)… Mas para quê reivindicar mais méritos formais? One From the Heart é ao mesmo tempo o teatro, a fábula, o conto de fadas, a prestidigitação de um plano em que Nastassja, feita “circus girl”, desaparece como “spit on the grill”. Como se não bastasse o fogo-de-artifício de tanta ilusão.
Podem apagar a luz ao mundo que não haverá nenhum negro como este. Falo do negro, esse fundo negro, donde Caravaggio faz emergir a sua La Cattura di Cristo. Entra-se na prosaica National Gallery, em Dublin, terra de nevoeiros e sombras, e na placidez de uma sala assombra-nos este negro, o mais brilhante negro que já vi em toda a minha lamentável vida.
Um negro irreproduzível, por exemplo, na net, nesta rede que nos junta. Por mais “fiel” que uma reprodução seja, e na net não há nenhuma, a luz, a textura, a soberania do negro de Caravaggio só podem ver-se vendo o próprio quadro. Vale a pena ir a Dublin só por isso.
Não me lembro já onde, mas sei que um dia, talvez aqui, escrevi que a luz, em Caravaggio, não vem de lado nenhum. Mas donde é que lhe vêm estes profundos, retintos negros que assustam a noite, a própria natureza, negros capazes de apavorar a escura mente de um psicótico?
Ninguém ilumina como Caravaggio. Pode até sugerir-se que, nesta Cattura di Cristo, a luz vem da esquerda alta. Fraca consolação que os factos desmentem. Caravaggio nunca precisou da luz de Deus. A luz não vem de fora iluminar o quadro: insolente, delinquente, Caravaggio pintou a sua própria luz, cada quadro seu sendo um universo auto-suficiente. Por exemplo, à direita de La Cattura di Cristo há um paisano que levanta uma lanterna, confundindo as fontes de luz que se queiram atribuir ao quadro. Que esse paisano seja, como garantem os especialistas, o auto-retrato de Caravaggio, que pecador ali mal se confessa, não me parece um acaso nem pequena ironia. Os rostos de Cristo e Judas são duas lâmpadas acesas no centro (ligeiramente deslocado para a esquerda) deste quadro e, para policiar violentamente a noite, acendem-se – mas como é que é possível se é negro sobre negro? – as armaduras de metálico negro dos soldados romanos.
Drama de luz, Caravaggio delicia-se e atormenta-se também com o drama figurativo. No centro o beijo, a traição (que outra coisa pode um beijo ser?) de Judas ao Salvador.
Num quadro em que todas as personagens, sete homens, estão animadas de um movimento convulsivo, o Cristo é quase passivo, um faça-se em mim segundo a vossa vontade. Mas a boca húmida de Judas está tão próxima e o hálito da traição é-lhe tão insuportável que Cristo não resiste a um ligeiro trejeito de desgosto dos lábios e a um involuntário desvio da cabeça que foge ao hediondo aroma do denunciante. Só o silencioso estalar dos seus dedos encavalitados e das mãos violentamente cruzadas confessam o seu desespero.
Mais à esquerda, num movimento que o isola do resto da cena, Caravaggio pintou um grito. O grito. Pobre Munch! Ao grito, Caravaggio, deu o corpo de João, o mais amado dos discípulos. É um grito sufocado, o terror de uma boca desmesuradamente aberta, só para respirar, como a boca aterrorizada de uma garoupa fora de água. O olhar vítreo e esgazeado do animal que teme pela sobrevivência, braços levantados, falanges insuportavelmente esticadas, à beira da fractura, pintadas a piedade e pânico, revolta por dentro, medo por fora.
Esta La Cattura di Cristo até na sua história externa é dramática. Obra encomendada, em 1602, pelo Senhor da nobre casa Mattei, esteve perdida duzentos anos. Comprada por um escocês, terá passado a privadas mãos irlandesas que, num gesto de reconhecimento pelo apoio dos jesuítas à morte de um independentista da família, a doaram à comunidade de Santo Inácio de Loyola, em Dublin. Suspensa na parede central do refeitório, ali ficou esquecida, passando por ser uma das cópias de Gerard van Honthorst, até que um dos jesuítas convocou dois especialistas italianos de Caravaggio. Autenticada a autoria em 1993, não sem peripécias rocambolescas mais recentes, com o aparecimento de uma cópia capturada pela polícia alemã e anunciada como o original, a tela de Michelangelo Merisi, nascido em Caravaggio, que recebeu 150 scudi pelo quadro, como consta dos documentos encontrados na casa do marquês Ciriaco Mattei, converteu-se no ex-libris da boa colecção de pintura europeia da National Gallery.
É uma ironia histórica um quadro de beijada traição ter ido parar à Irlanda, pátria oprimida em que a independência gerou também iniquidade, suspeita e informadores. Há um Caravaggio, negro e trágico, numa pátria de densas noites de nevoeiro e conspiração, punhais, beijos e silenciosas denúncias.
Jamais pensaria a pintura de Caravaggio a apontar-nos o caminho da devoção. A disposição crua, prosaica e política dos rostos, dos gestos, dos cheiros é a assumpção, por Caravaggio, da arte como ofício auto-suficiente, distanciando-se de toda a teologia ou mesmo opondo-se, e radicalmente, nesse século XVII, a qualquer réstea de funcionalidade religiosa.
Apoio-me na minha mitologia manuelina: gosto da figura de um homem só consigo mesmo. É o que vejo em todos os Caravaggio e, em particular, na Cattura deste homem que outro trai e os demais abandonam. Nos homens que Caravaggio retrata já só há uma humilde e desamparada humanidade. Intranscendente. Caravaggio devia saber. Matou com as próprias mãos.
Esta crónica vem desarvorada do passado. O passado foi há um niquinho de nada, andava tudo de romaria virtual em eleições para não-presidente, que presidente já se sabia quem era e quem depois seria.
Ah, a vontade que tenho de falar do burro. Mas deixem-me antes dizer que André Ventura, o pê-cê João Ferreira e a bloquista Marisa Matias não são animais bíblicos. Bem podem correr a Tora, Evangelhos, Acto dos Apóstolos, que não tropeçam em maldições ou profecias a negar ou oferecer a Terra Prometida na mão lépida de Marisa, na mão coreana de João Ferreira, na mão toda truques de Ventura.
A nossa vida política está cheia de animais? A Bíblia também. No Velho e vingativo Testamento os animais surgem 603 vezes. Com o inteligente burro há 130 histórias: é o animal bíblico por excelência. Expoente desse louvor, com o brilho dos humildes, fiéis e verdadeiros, a que não alinharei asininamente Marisa, Ferreira e Ventura, brilha a burra de Balaão.
O povo de Moisés tinha um pé no ar: baixando-o pousá-lo-ia na Terra Prometida. O rei moabita, Balaque, via que aquela nuvem de seiscentos mil pululantes gafanhotos lhe vinha ocupar as suas terras de leite e mel. Tinha de os impedir. Mas a fama de guerreiros imbatíveis precedia a marcha saltitante do povo judeu. Como sová-los na guerra?
O insidioso Balaque quis enfraquecê-los. Um mágico, Balaão, quimbanda como os de Luanda, era reputado pelas suas inescapáveis maldições. Balaque pediu-lhe que amaldiçoasse os judeus em marcha. Antecipando Ronaldo, ofereceu-lhe igual fortuna em merchandising, off-shores que tomara Salomão.
Não sei se foi em sonhos, ou num daqueles planos picados à Orson Welles que nos restitui à santidade, mas sei que Deus rasgou a celeste abóbada e falou a Balaão: proibiu-o de soltar essa maldição.
Logo voltaram os enviados de Balaque com mil armadilhadas seduções. E de novo, no silêncio da noite, ao ouvido, Deus diz a Balaão: “Se vieram buscar-te, vai e fala com Balaque, mas só lhe dirás o que ouvires que eu te diga.” Ora tenho de lembrar que, como os melhores argumentistas de Hollywood, nunca Deus fala por linhas inequívocas e direitas: uma coisa foi o que disse, outra a que queria.
Partiram. Balaão montado na burra que o imortalizaria. Terão andado como daqui a um comício de Ferreira, Marisa ou Ventura e a burra parou. Estanque, a burra recusou meio passo que fosse. Vara na mão, Balaão vergastou-a uma, três vezes. Gemeu? A burra nem pestanejou. À sua frente, e só os seus olhos de burra o viam, o anjo do Senhor, espada faiscante, estava pronto a matar Balaão, desse ele um passo em frente.
Balaão tenta pequenos desvios e mais duas vezes a burra se recusa a avançar. O bíblico quimbanda, colérico, espanca o animal, que tomba de joelhos como se rezasse. Se vozes de burro não chegam ao céu, é bom que se saiba que vem do céu a voz com que o burro bíblico fala na terra. Deus deu a sua voz, tonitruante, à burra de Balaão que disse: “Porque me bateste três vezes? Não sou a tua burra fiel, a que te leva a todo o lado?”
Mesmo para um mágico, a interpelação foi siderante. “Burra, envergonhaste-me. Por três vezes paraste, humilhando-me ao pé dos ministros do rei! Se tivesse uma espada cortava-te a cabeça.” Só então Deus, que é, como todos sabem, uma mistura do cineasta Dreyer e do escritor Borges, revela ao pasmado Balaão o anjo e a espada crua que o trespassará se der o mais tímido passo.
Falta aos nossos radicais de esquerda e de direita a clarividente burra de Balaão que, fazendo-os tombar três vezes, nos poupe aos seus troca-tintismos e maldições de quimbandas. Talvez assim, radicais em sossego ao pé da burra caída, este povo gafanhoto ficasse mais perto de provar, da Terra Prometida, o leite e o mel.
Publicado há umas boas semanas no Jornal de Negócios. Desculpem, leitores das redes sociais, o atraso
Do roubo é que nasce todo o bem. Entendam-me: não falo do rapinanço, golpada, abafação ou esbulho. Falo do roubo altruísta, do roubo engordado pelo robusto valor calórico dos mais altos ideais.
Vejam o semblante de espanto de Paris ao fim da tarde de 22 de Agosto de 1911. Nessa manhã, um pintor viera ao Louvre para reproduzir a “Mona Lisa”, pondo-se nos sapatinhos de cetim de Leonardo Da Vinci. Estava lá a parede, mas a “Mona Lisa” fora, parece, a banhos. O pintor voltou à tarde: só lá estava a mesma envergonhada parede, quatro pregos inúteis. O museu soube então que a “Mona Lisa” tinha desaparecido.
Roubara-a um italiano, pintor de paredes e pedreiro, vago retratista. Por patriotismo. Vingava a apropriação cultural de que culpava Napoleão, invasor da pátria de Verdi e Berlusconi. Descolonialista avant la lettre, o italiano, se não punha um pé, punha ao menos a mão no privilégio francês e, roubando a “Mona Lisa”, redimia a avassaladora opressão que exsudava do mal lavado imperador corso e dos seus exércitos, herdeiros da astúcia de Asterix e da força bruta de Obélix.
E eis que Paris e o Louvre, com imperial arrogância napoleónica, nem sequer olham para o pequeno italiano. Preferem acusar um poeta, Guillaume Apollinaire, autor do intocável romance “As Onze Mil Vergas”, lembrando eu os mais dados ao artesanato que o termo “verga” é aqui usado num sentido que só de forma muito remota se aplica à cestaria.
Ora, não bastando arrastar um poeta pelo Sena da amargura, logo é também acusado o andaluz Pablo Picasso. E vejam, eu que sou um férreo defensor das límpidas artes, tenho de estar de acordo com as opressivas autoridades: Apollinaire e Picasso roubaram! Um secretário de Apollinaire, aproveitando do Louvre as suas certas facilidades e descuidos, trouxera algumas estatuetas fenícias que dera a Apollinaire e que logo o generoso poeta repartiu com Picasso. Ao lerem a notícia do roubo da “Mona Lisa” no Paris-Journal, coração, cabeça e estômago de Apollinaire e Picasso tiveram a mais anti-artística das convulsões. Ungidos pelo amor às eternas artes, resistiram a afogar as estatuetas no Sena, esse estreito riacho que, pingo a pingo, atravessa Paris. Fizeram entrega anónima no correio do Paris-Journal, pedindo a restituição das estatuetas ao Louvre.
Foi a missão secreta de Apollinaire. Logo o apanharam. A minha militante rectidão moral obriga-me a interromper: esse roubo só trouxe bem ao mundo. Não juro que lhes devamos os arrebatamentos eróticos de Apollinaire, mas devemos às gamadíssimas estatuetas fenícias a fealdade maravilhosa das “Demoiselles d’ Avignon”, a assombrosa geometrização do mundo a que em qualquer tasca de Montmarte se passou a chamar cubismo.
Mas onde estava a “Mona Lisa”? Abençoado roubo, está já em Itália. E não consigo calar uma certa exaltação metafísica: o Salon Carré do Louvre, onde se pendurava antes a “Mona Lisa”, encheu-se de admiradores, extáticos, contemplativos do lugar agora vazio da tela de Da Vinci. Alguns deixam flores. Mesmo Franz Kafka, que não se imaginaria num museu, veio, qual metamorfose, deleitar-se com essa ausência: a fama e proveito de que hoje goza “Mona Lisa” não se deve a Da Vinci, deve-se a um ladrão, o italiano Vincenzo Peruggia.
Preso ao tentar vender a tela, o militante e descolonizador Vincenzo só laborou num erro, obviamente insignificante face a tão patriótico desígnio: Napoleão nunca roubou a “Mona Lisa”. Foi Da Vinci que a ofereceu a Francisco I, rei dessa França onde viveu os últimos anos. Ora… minudências!
Seguindo, com a fidelidade estrita de um Loyola, a receita canónica que Maria de Lourdes Modesto fixou para a posteridade no seu Cozinha Tradicional Portuguesa, estas são as iscas com elas que, confeccionadas e empratadas por este vosso escriba, foram o regalo deste jantar de sábado, porque hoje é sábado e amanhã é domingo.
Uma imagem vale mais do que mil palavras e uma subtil garfada faz estremecer palato e corpo mais do que mil imagens. Não é para me gabar, mas estava bom: as iscas finas, molho não excessivo de sabor intenso, alho e salsa com distribuição à jackson pollock. Sim, estava mesmo muito bom. Eis os limites da democracia (a crer em Tocqueville) e da linguagem (se Wittgenstein for para aqui chamado): nenhum de vós, queridos amigos, o pode negar. Perdoem não vos ter convidado, mas não desconsegui desconfinar-vos.