Sutiãs e négligés

marilyn

Marilyn Monroe telefonou para casa de Billy Wilder. Atendeu-a a mulher dele. Com aquela voz que provocava arrepios a um eucalipto, pinheiro manso ou até a um rijo carvalho, Marilyn disse-lhe, “diga ao seu marido que se vá…” e usou como ponto de exclamação a expletiva palavra inglesa que começa por “f” e tem quatro impronunciáveis e por vezes aprazíveis letrinhas.

Ora, Marilyn queria ser tudo menos aprazível. Acabara de filmar com Wilder o “Some Like It Hot”, comédia que metia gangsters e uma orquestra de mulheres. Tinha corrido mal tudo o que podia correr mal entre a protagonista, Marilyn, e o realizador, Wilder. Correu tão mal que Wilder deu uma festa à equipa e aos actores no final do filme e, suprema afronta, não convidou a actriz.

Eis a trama do filme. Dois músicos testemunham a matança, à metralhadora, de uns gangsters por outros gangsters. São testemunhas indesejáveis e os gangsters vivos querem matá-los. Os dois músicos disfarçam-se de mulheres, escondendo-se numa orquestra de jazz feminina. Fazem amizade com Marilyn, a cantora, numa cumplicidade de sutiãs, négligés, cuequinhas de renda, afagos e abraços, que foi quando houve anjos a demitirem-se no céu por quererem vir viver na Terra. Queriam talvez provar o que se derretia nos braços de Tony Curtis e Jack Lemmon, os dois músicos homens disfarçados de mulheres, a quem Marilyn revelavas os seus vitoriosos segredos.

Mas uma coisa é o pão, outra coisa é o forno, que é como quem diz, uma coisa é o filme, outra as filmagens. No filme, Marilyn chamava-se Sugar, e para ronronar como só ela ronronaria a simples frase “It’s me, Sugar”, Wilder teve de filmar a cena 47 vezes. Desde “Sugar, it’s me” a “It’s Sugar, me”, Marilyn não acertava com a réplica. Com um ataque de nervos a roer-lhe a cabeça, desatava a chorar e lá se ia a maquilhagem. Wilder escreveu a frase “It’s me, Sugar” na porta a que Marilyn batia, como escreveu depois, em todas as gavetas em que Marilyn teria de ir buscar uma garrafa de bourbon, a frase “where’s, the bourbon”, que Marilyn trocou por “where’s the bottle” “where’s the whiskey” ou where’s the bonbon”, e que ela só conseguiu dizer certo após 59 repetições. Disse a frase de costas, oferecendo o esplendor do seu posterior à câmara – talvez Billy Wilder a tenha dobrado.

Marilyn chegava ao estúdio com duas e três horas de atraso e filmava sempre com a presença, na sombra, de Paula Strasberg, a sua mentora, ou coach, como agora se diz. Quando Paula, com um discreto aceno, desaprovava, Marilyn interrompia ou enganava-se, matando a cena. Mas terá sido mesmo, Paula, essa sombra negra de Wilder a culpada? Jack Lemmon tem outra teoria. Marilyn nunca deveria ser posta em frente a uma câmara enquanto não estivesse pronta – psicológica e absolutamente pronta.

E, no entanto, se “Some Like It Hot” é uma obra-prima, a Marilyn o deve. Nele se aprende o que é uma mulher dançar a sua sexualidade a passos de ingenuidade, ironia, sinceridade, candura e fé. Pode o forno ter tido brasas a mais, lenha que não tenha ardido, mas o pão que de lá saiu é um prodígio de comédia, como Wilder reconheceria, reconciliando-se com Marilyn.

E depois soube-se que Marilyn estava grávidas nas filmagens e teve um aborto espontâneo. Estava casada com Arthur Miller, mas o pai era Tony Curtis, seu parceiro no filme.  Já tinham tido uma relação dez anos antes e, o reencontro foi fatal. Nas imortais palavras dele: “Eu era mais activo do que o Monte Vesúvio: foram homens, mulheres e animais.”

Publicado na minha coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

Bicas a sonhar com o futuro

space

 Estas foram as bicas servidas no CM, de 3.ª, dia 22, a 5.ª, dia 24 de Outubro

Um futuro feliz

Quero, hoje, beber a bica cheia com o cineasta Francis Coppola. Tem 80 anos e anda a montar a produção de um filme, “Megalopolis”, que vai mostrar a raça humana em rumo a um futuro mais feliz.

Delírio de um velho? Também já vou para velho e estou 100% com ele! As visões catastrofistas dos progressistas regressivos negam a realidade. Coppola tem razão: o mundo é hoje muito melhor do que há 80 anos. Há menos miséria e fome, menos mortos em guerra, mais igualdade de mulheres e homens, menos mortalidade infantil. “Megalopolis” vai celebrar a inteligência humana. Confiem nos velhos: já viram e experimentaram muitas vezes o futuro.

Duas mulheres

Pode alguém tomar a bica curta no espaço? Temos de perguntar a Jessica Meir e Christina Koch, astronautas americanas que saíram da nave espacial em que viajavam e mergulharam no vazio para substituir baterias de 100 quilos que pifaram, digamos assim, dias antes. Pela primeira vez, duas mulheres, sem nenhum astronauta masculino a fazer par, flutuaram no cosmos durante sete horas. Do espaço, a 420 km do Brexit, da Catalunha, do novo governo de António Costa, viram a Terra rodar a cada 90 minutos, o Sol pôr-se e nascer, olhos postos no infinito.

Duas mulheres caminharam no espaço e fizeram, bem, o trabalho que tinham de fazer.

Um dedo no olho

Lá vai Jerónimo de Sousa, formoso e não seguro: acerta em tudo mesmo se se engana.  Meteu um dedo no olho do grande capital, culpando-o de esganar o PCP. Ora, o drama de Portugal é não beber a bica cheia com o capitalismo.

Chama-se unicórnio às empresas tecnológicas que valem mil milhões de dólares, essenciais para a riqueza de um país. Na América estão 49% dos unicórnios. Na China, 24%, A Inglaterra e a Índia têm 5%. A Europa está no fim da bicha e Portugal tem três unicórnios. Eis o que nos falta: a Europa tem de ser um pólo do capitalismo, eixo para criar e distribuir riqueza. Isso é que é espetar o dedo no olho do populismo.

Granta: a minha sala de cinema

Já está nas livrarias a revista Granta. A convite de Pedro Mexia, escrevi um texto sobre a experiência da sala de cinema. A escrever um texto teórico preferi servir-me da minha realíssima e concreta experiência e escrevi um texto autobiográfico. Deixo aqui um pequeno excerto.
Façam o favor de comprar a revista para eu não ficar mal visto…

Granta

Com excepção do cinema dos padres capuchinhos, na Missão de São Domingos, até aos dezassete anos, mais de 90% dos filmes que vi, vi-os com os olhos a fugir para o céu. Muitos na melhor das minhas salas, o cinema Miramar, o mais belo do mundo, levantado, como John Wayne levanta Natalie Wood em The Searchers, sobre as barrocas de Luanda. O Miramar, logo depois do seu jardim com as weliwítschias de longos braços estendidos atrás do pasmoso ecrã, caía a pique sobre o mar, tendo em fundo a baía, guindastes e os grandes navios conradianos do porto de Luanda, as refulgentes locomotivas do caminho-de-ferro da linha de Malange. Foi no meio dessa barriga de vida que vi, quinze anos, ainda mal o meu polegar do pé direito roçava a cinefilia, o Pierrot le Fou, de Jean-Luc, esse torcionário Godard, que tão depressa me salva de afogamentos, como me embrulha a cabeça numa toalha, enfiando-ma na água de uma banheira.

Pesca à linha

VintageMusso
Eis Hollywood à mesa no Musso & Franks Grill

Nesse tempo ainda se ia à pesca. Foi há menos de um século, começo dos anos 30, que o escritor William Faulkner e o realizador Howard Hawks foram à pesca. Leva­ram o actor Clark Gable. Gable não sabia que Faulkner era um escritor, mas cheirou-lhe a inte­lec­tual e perguntou quem eram os melho­res escri­to­res. “Hemingway, Willa Cather, Tho­mas Mann, John dos Pas­sos e eu” res­pon­deu Faulk­ner, incluindo-se, sem falsa modés­tia. Gable ficou de boca aberta: “Você escreve, Mr. Faulk­ner?” “Sim, Mr. Gable. E o senhor o que faz?”

Antes de conhe­cer Faulk­ner, Hawks lera um livro dele, “Soldier’s Pay”, e proclamou em Hollywood que des­co­brira o mais talen­toso escri­tor daquela geração. Quem conhe­cia a sua incli­na­ção para reconhecer talentos, levou-o a sério e cor­reu às livrarias. Já Faulkner publicara um novo romance, “O Som e a Fúria”, obra-prima que con­fir­mava tudo. O nome do escritor começou a encher mais bocas do que as braised short ribs of beef do velho Musso & Frank Grill, o Gambrinus da Hollywood da época. E logo essa insaciável Hollywood o convidou. Aceitou e as vestais da literatura hão de sempre chorar a vil traição e achar que foi um desper­dí­cio, uma imo­ra­li­dade.

Outro escritor, Raymond Chandler, a quem quase tudo correu mal em Hollywood, se calhar por ter investido mais nos dry-martinis do que nas short ribs of beef, parece confirmar o tremor e temor dos moralistas: “Se os meus livros tivessem sido só um bocadinho piores eu nunca teria sido convidado para Hollywood. Se tivessem sido só um bocadinho melhores não teria precisado mesmo de vir.”

Não peçam arrependimento e ranger de dentes a Faulkner. Com o diáfano sentido prático de quem monta uma geringonça, Faulkner garantiu que “escre­ver por dinheiro não é pro­pri­a­mente pros­ti­tuir o talento, mas apenas encur­tar as fra­ses.”

Voltemos à pesca. A ami­zade de Hawks e Faulk­ner foi mais longa e bela do que a de Bogart e Claude Rains, em “Casa­blanca”. Não obstante, a colabora­ção deles não escapa a alguma artística ambi­guidade. Faulk­ner queria escrever com a téc­nica do cinema europeu experimental e van­guar­dista dos anos 20. Muita montagem, flash-backs, jus­ta­po­si­ção de rea­li­dade e fanta­sia. Mas Hawks explicou-lhe que talvez não valesse a pena o esforço, tendo em conta a tortura que ia dar, como realizador, ao que Faulkner escrevesse: “Espremo-te a histó­ria que é a primeira coisa que quero. A seguir, que­ro per­so­na­gens. Depois passo por cima de tudo o que tu pen­sas que tem inte­resse.”

Faulk­ner foi o escri­tor que mais bem resis­tiu a Holly­wood. Em Feve­reiro de 1949, a MGM pagou-lhe o que era então a milionária fortuna de 50 mil dóla­res pelos direi­tos de “Intru­der in the Dust”. O livro só tinha saído há um mês. Faulkner desatou a correr pela Sunset Street: “Tenho direito a embebedar-me e a dan­çar descalço.”

E falta-me falar, nesta crónica de pesca à linha, de outro pescador, Hemingway. Era também amigo de Hawks. Hemingway riu-se quando Hawks lhe disse que faria um bom filme do pior li­vro dele. “Qual é o meu pior livro?”, per­gun­tou. E Hawks: “Aquele pedaço de lixo cha­mado ‘To Have and Have Not’.” Hemingway concordou e apostou: “Nin­guém con­se­gue tirar um filme daquilo”. “OK – disse Hawks – arranjo o Faulk­ner para o reescrever. Seja como for, ele escreve melhor do que tu.”

O que terá sen­tido Hemingway? Ciúme ou lisonja? Ele e Faulk­ner admira­vam-se e temiam-se. Aposta feita, nasceu o filme. “To Have and Have Not”, obra-prima, é o filme pedaço de céu em que nasceu, de um assobio, o amor de Lauren Bacall e Humprey Bogart.

Publicado na minha coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo” no Jornal de Negócios

Três bicas já frias

Tenho andando numa azáfama do caneco. Sabe-me a vulcão em erupção. Mas não sei se é bom para a minha idade. Assim como assim, deixei esfriar as bicas de há duas semanas. Aqui estão elas.

zane grey

Bica Curta servida no CM, 3.ª feira, dia 15 de Outubro

A Natureza

Por falar de natureza. O meu pai sabia coi­sas pelo vento, sol e nuvens, se ia chover, se era meia-noite ou meio-dia. Sou de uma gera­ção que soube tudo pelos livros. Muitos livros que li ama­vam o ar alto que roça o céu, a fímbria do mar, o capim do mato. Num livro do Oeste Sel­va­gem, “Desert Gol­d” de Zane Grey, litera­tura de ter­ceira classe, havia um índio yaqui que se fun­dia com a noite, com o rumor de um rio, com os cac­tos do deserto, num pan­teísmo de aven­tura e risco. Falhei a vida: eu nunca quis nem quero ser nenhum livro. Eu que­ria ser o índio – e hoje sei que nunca o serei.

E pronto, já falei de natureza – e do meu pai.

Bica Curta servida no CM, 4.ª feira, dia 16 de Outubro

Umas estátuas

E se o debate político bebesse um jarro de detox? Ou, à ordem dos meus avós Isaura e Brigas, fizesse uma purga? Queixamo-nos da língua grossa de André Ventura. Mas mesmo a linguagem do debate entre esquerda e direita democráticas é um estrugido de populismo.

Vítor Gaspar e Mário Centeno mereciam duas estátuas pela restauração das nossas finanças. Passos Coelho e Costa mereciam outra, a de Passos dois dedos maior do que a de Costa: tiraram-nos da bancarrota. Começar por saudar o óbvio no campo democrático talvez ajudasse a estancar a avassaladora suspeita de café, táxi e facebook de que os políticos são só e apenas corruptos.

Bica Curta servida no CM, 5.ª feira, dia 17 de Outubro

Qual fogo, qual nada

Apetece ir tomar a bica à universidade de Stanford nos Estados Unidos. Cientistas e engenheiros desenvolveram uma espécie de gel, à base de fosfato de amónio, que pode ser facilmente pulverizado em vastas áreas de floresta sujeitas a alto risco de incêndio, impedindo o aparecimento de fogos. Mesmo que venham chuvadas malucas o gel resiste e não deixa que o fogo se propague. Este gel dá beijinhos a Mário Centeno: é barato e fácil de aplicar. E dá beijinhos ao ambiente: não é tóxico, feito de produtos da indústria alimentar e médica. Basta pulverizar zonas de risco e a sua acção é garantida por meses. Nunca o fogo viu nada assim.

De canhão apontado

Esta tem dedicatória: ao meu amigo Victor, em lembrança de um almoço confessional

Tianmen

Tiananmen é uma criação platónica do meu amigo Victor. A vagarosa humanidade abriu os olhos, espantada, em 1989, para os protestos na poética Praça da Paz Celestial, em Pequim. E abateu-se sobre as nossas almas o silêncio frio que precede a tragédia, quando um solitário cidadão chinês, singela camisa e calça, opôs a sua humilde fragilidade tolentina ao poder dos explicativos tanques que o comité central mandou para dissuasiva conversa com o povo da rua. Dancin’ in the street, o mundo assistiu então ao bailado de um homem e um tanque, pas de deux de canhão apontado, que tornou obnóxia e risível a velha arte de Fred Astaire, Gene Kelly e Cyd Charisse.

Ontem, num desses almoços em que só se serve o húmido empadão do passado, mousse de nostalgia à sobremesa, soube que, antes de Tiananmen, a matriz dessa arriscada e épica dança nascera em Luanda, no dia 27 de Maio de 1977. Dançou-a o Victor, meu amigo, kamba, irmão de várias fés.

O que nos juntou, no final dos anos 60 hippies, make love not war, foi Jesus Cristo, bailarino de cruz e espinhos. Jurámos por ele e fomos, de musseque em musseque, pelo método Paulo Freire alfabetizar o povo de Luanda, para que um dia pudesse recitar poemas nas suas praças de Tiananmen. E se alguém disser que não foi isso o que objectivamente fizemos, direi que foi com essa subjectiva intenção piedosa que o quisemos fazer. Resumindo, foi com o coração a gotejar de alegria e a alma a entoar hossanas que recebemos a independência de Angola, a nossa dipanda. E descruzámo-nos, eu e o meu Victor. Eu de esqueleto e músculos oferecidos ao monástico maoismo e bando dos quatro, o Victor encantado com a sufocante vodka soviética e o fidelizado charuto havano.

E agora vejam como dançava o Victor, com o seu branco corpo trangalhadanças nascido em Portugal e a sua bem negra alma angolana. Um dia, na turbulenta Luanda pós-independência, roubaram-lhe um táxi que ele comprara e pintara de preto, um daqueles rijos Mercedes que duravam os quarenta anos de uma ditadura. Vai ele já noutro carro e vê o Mercedes gloriosamente guiado por um soldado das Faplas, ou seja, um John Wayne caluanda. O Victor ultrapassou-o, guinou para a direita e chocou contra ele. O cow-boy saiu de AK na mão. “E agora quem vai pagar o arranjo?”, lhe reclamou o fapla. O Victor disse: “Eu pago o arranjo dos carros. São os dois meus!” O faplinha apontou-lhe a AK, aqui para nós a Scarlett Johansson das metralhadoras. “Dispara já então, camarada, ou foge a pé. Vou chamar o comando, acuso-te de ladrão e não vai ficar bom para ti.” E eis como o Victor ficou com dois carros, numa avenida de Luanda, tendo de explicar como ia a conduzir os dois e chocou contra si mesmo.

Não sabia, ainda, que este fora só um ensaio. O 27 de Maio de 1977 foi dia de golpe de Estado, Nito contra Neto, um banho de sangue. A amada do Victor estava a trabalhar no velho Hospital Maria Pia e sussurram-lhe um “foge, que estás aqui a correr perigo”. O Victor foi em velocidade buscá-la. Mas na volta, já os dois, no cruzamento que leva ao palácio do presidente, cortam-lhe a passagem. Um tanque avança para o carro, o canhão move-se e visa-o. O Victor sai e a equipagem do tanque ameaça: “Ninguém passa. Recua já camarada!” O Victor, o seu carro obstinado como o heróico chinês de Tiananmen, respondeu: “Passo, sim, camarada. Vou para casa. Ou tens de me matar aqui!” Do nada, mandado por algum génio da lâmpada, surge um comandante: “Deixa passar o homem.” E o tanque, pernas de Fred Astaire, amochou e recuou.

Publicado na minha coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

Três bicas curtas

Por razões que não vêm ao caso e se vão manter, há uns bons dez dias que não vinha à Página Negra. Aqui vão as minhas três bicas curtas de há duas semanas,a primeira logo na ressaca eleitoral.

curdos
os nossos homens

Bica Eleitoral
servida no CM na 3.ª, dia 8 de Outubro

Tomo a bica eleitoral e saem-me 5 questões:

  1. Em que futuro populismo desaguarão os votos do populismo científico do falecido PCP?
  2. Estão os 77 deputados do PSD reduzidos à irrelevância de, com a sua abstenção, aprovarem alguma medida mais à direita de Centeno?
  3. Com o galope do Parlamento para a esquerda, a única direita com que Costa tem de dirimir é a Europa e os credores?
  4. A falta de comparência da direita ditará o fim da geringonça, a menos que um Passos Coelho vestido de Joker irrompa na primeira esquina?
  5. A hotelaria já não é o que era: raio de empregados que não perceberam que Costa tinha pedido bica cheia.

A vítima de ouro
servida no CM na 4.ª, dia 9 de Outubro

Criado nos anos 60, bebi em cada bica a utopia do prazer. Era “proibido, proibir” e o orgasmo, intelectual, sentimental ou sexual, atacava 24 sobre 24 horas. Acabou. O manto da proibição está de volta. Proíbe-se o consumo, o avião, o bife com ovo a cavalo. Do gozo do prazer passou-se, num salto de fé, ao gozo da vitimização. Os filhos da classe média idolatram a vítima de ouro e nada se compara à glória de exibir, com um pingo de êxtase, a discriminação de que se reclama ter-se sido alvo. O frémito obscurantista do apocalipse galvaniza a nova multidão. Medo e irracionalismo ressuscitam o milenaríssimo culto da morte.

Os nossos homens
servida no CM na 5.ª, dia 9 de Outubro

Não é só deixar os nossos homens para trás. É consentir que se matem os homens que deixámos para trás. Os nossos homens. É o que Trump está a fazer, estendendo um miserável tapete ao ataque do populista Erdogan aos curdos. Os curdos lutaram com bravura contra os terroristas do Daesh, ao lado das tropas americanas. À custa de sangue, suor e lágrimas, venceram a hidra islamista. Agora, desdenhando a bica curta, Trump mandou retirar os seus soldados e deixou os combatentes curdos, homens e mulheres, à mercê de um inimigo cujo desígnio é a política de extermínio. É cobardia dar à morte os nossos homens e mulheres.

Espanquem-me, sou um privilegiado!

Esta é a primeira parte do documentário. Parte 2 e 3 estão também livres online

Bret Weinstein tem a cara porreira e barbuda de esquerda que a esquerda tinha quando eu era de esquerda. Sejamos claros, Bret, professor de biologia na universidade americana de Evergreen, é de esquerda. Apoiou Bernie Sanders, fez músculo pelos ocupas de Wall Street. Fê-lo em nome da razão e da justiça social. Olha-se para a cara de Bret e apetece ir beber copos com ele.

E eis o que devo dizer, o reitor de Evergreen, George Bridges, precipitou na universidade uma radicalização que poria os nervos em brasa até ao nosso saudoso MRPP. Os estudantes radicais abriram as pastas de ódio, com os translúcidos papéis de racismo e género, e assaltaram o campus.

Podia ser uma lenda, fake news ou outra forma de canalhice reaccionária. Não é: há vídeos de tudo. Num exercício de auto-mortificação que envergonharia penitentes monges medievais, os professores passaram a apresentar-se aos alunos declinando a vergonhosa raça, origem e privilégios, esses cilícios que vêm colados à identidade. E dou exemplos reais: “Eu tenho uma data de altos privilégios, os maiores dos quais, que influenciam o meu ensino, são o ser branca e ser cisgénero”; “Sou mulher, cisgénero, hétero, sou imigrante e ter recebido o visto de residência dá-me muitos privilégios”; “Sou branca, cisgénero, lésbica, a primeira pessoa de família a fazer estudos, de classe média, não sou deficiente, e sou gorda.”

Não julguem que me esqueci da cara barbuda e porreira de Bret Weinstein. Numa universidade dominada por jovens alunos radicais, que hasteiam incendiárias bandeiras de ultra-defesa das minorias rácicas ou de género, Bret disse um dia que não! Bang, bang, foi a morte do artista.

A universidade tinha um chamado “Dia de Ausência”. Nesse dia, por escolha dos próprios, estudantes e professores negros não vinham, demonstrando, assim, a falta que faziam à diversidade da escola. Mas, em 2017, os radicais decretaram que o “Dia de Ausência” fosse ao contrário e que os brancos fossem obrigados a não ir à escola. Salto de fé, passou-se de uma escolha a uma imposição. Bret disse que não e foi dar aulas. Cercaram-no, impediram-no de entrar no edifício e a segurança da escola não se responsabilizou pela sua segurança. Quis debater com os radicais e invocou a razão. Disseram-lhe que a razão e a lógica são instrumentos de privilégio para perpetuar o pensamento opressor branco. Deu a aula ao ar livre.

E se a sua vida se transformou num inferno, mais o ficou quando o reitor, que num exercício de auto-sevícia, vê em si mesmo um fundo de supremacista branco, apoiou os alunos, negando o direito de opinião ao seu privilegiado professor de biologia. Expulsou-o de Evergreen.

O vídeo de uma reunião dos alunos com o reitor mostra o bando de radicais a humilhá-lo, proibindo-o de mexer mãos e braços enquanto lhes dirige a palavra: é ameaçador, dizem, rindo-se como uns alarves. E o penitente reitor, na sua missão de expiação dos privilégios, submete-se com a resignação do cordeiro que está a lavar os pecados do mundo.

A escola, num exercício de auto-culpabilização, estende o tapete à auto-censura, trocando a sua missão, a gloriosa caminhada pela verdade e conhecimento, por uma dantesca ideia de justiça social. Entregues ao pior de si mesmo, os alunos radicais soltam o Pol-Pot que há neles, numa ululante e desumanizada entrega ao ódio e ao sadismo, humilhando até à violência professores. Vejam os vídeos e não me digam que é só caricato: isto é perigoso. O que está às escâncaras em Evergreen, está em surdina no mundo. Aqui também.

Publicado na minha coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios