O horror do humano ao humano

realmotsenses

 Se o erotismo é uma forma de aristocracia, então Anatole Dauman é um príncipe da Renascença. Há três décadas entrevistei-o no Expresso, o jornal que durante mais décadas teve a paciência de me aturar, quatro em intermitência.

Dauman fora o prestigiado produtor de “Hiroshima, mon amour” de Alain Resnais, da perturbadora “Mouchette” de Robert Bresson, do sexuado “Masculin, Féminin” de Godard, das “Asas do Desejo” do sorumbático Wenders, para ir a jogo só com ases.

Conversámos no histórico Avenida Palace. Assentava-lhe bem a nostalgia do cenário. Vestia-se com uma elegância de faubourg Saint-Honoré, segurando um copo de vinho como se fosse um ceptro de imperador. Falava devagar, procurando as palavras por disciplinado amor à retórica e para se consolar com o som do que dizia. Pensei: há seres humanos que têm no narcisismo a maior virtude.

Parte eslavo, parte judeu, francês de cérebro, Dauman era sempre estrangeiro e no fio da navalha. Os filmes que produziu situam-se nos limites de amor e morte que, cúmplices, roçam já pelo crime.

Começo por “Nuit et Brouillard”, de Resnais. A noite e o nevoeiro desse filme, que faz da escuridão humana e das cinzas dela a sua matéria, leva-nos aos campos de concentração, dez anos depois do genocídio. Filma-se a paisagem bucólica de Auschwitz, a rasteira vegetação que cresce, o parvo sol distraindo-se por um fio de estrada: nem gritos, nem sangue, nem as cinzas de um osso ou da carne que já foi um braço, o ansioso seio do amor. Nada, ninguém, diria de forma mais horrenda a inutilidade do crime nazi do que a silenciosa amoralidade da natureza. Os carris sem uso, outrora de nocturno vómito, cães e medo, estão agora cobertos de ervas sopradas pela indolente brisa do Verão. Dizem que a Natureza tem horror ao vazio, mas o que ali se vê é o horror a um humano que a Natureza se obstina a apagar depressa.

Outro filme, de extremo horror do humano ao humano, foi o “Império dos Sentidos”. Dauman pediu ao realizador, o japonês Oshima, uma “tourada de amor”. Com sangue, vermelhíssimos quimonos, uma faca e uma estocada de morte.

Nessa história de ilimitada paixão entre uma criada de hotel e o dono dele, os amantes atacam o corpo um do outro como um exército um território ou o canibal a sua presa: atacam a boca, o sexo, a menstruação, o estrangulável pescoço. “O que sentes?” perguntam. E quando sussurram “não te posso ver sofrer!” é só para ir mais longe, buscar a inenarrável alegria da dor. Nesse filme, que tanto ensinou ao Arcebispo de Braga quando eu o programei na RTP 2, amor rima com morte, sexo com sangue.

Ascese, protestava Dauman, sentado na nobre decadência do Avenida Palace. A ascese de Van Gogh foi a de cortar a própria orelha. A dos amantes do “Império dos Sentidos” culmina na sufocada morte e no corte cerce desse apêndice que num homem é o ramo e os seus frutos.

Fazia amor por amor de fazer amor

 

 

Eberh
Isabelle de Isabelle e de cavaleiro árabe

É que é um cabrão de um deserto! Eis o que um, e logo outro dos meus amigos, me disse. Falavam do confinamento destes dias, dunas de clausura, deserto de quarto, sala, cozinha, batidíssimo pela fina areia doméstica. Ora, ninguém conheceu o deserto como o conheceu Isabelle Eberhardt.

Isabelle tinha a cara desses rapazinhos que a natureza pinta com beleza de menina. Aos dez anos –seis, talvez –, a paixão dessa menina suíça do século XIX já era o deserto. O tutor, talvez pai ilegítimo, ensinou-a a escrever: tanto lhe ensinou matemática, geografia e química, como a aritmética e a geometria dos poetas, de alguns filósofos.

Isabelle só escrevia sobre esse Sáara que nunca vira, mas que a obcecava. Tinha visões do Mahgreb como os nossos pastorinhos de Aljustrel, concelho de Fátima, tiveram visões da Senhora lá do céu. Isabelle lia tudo, correspondia-se com militares e políticos do deserto, escorpiões até, a camuflada víbora-cornuda do deserto argelino. Não se lhe conhecendo bonecas como a boneca sem uma perna que Agustina guardou da infância e um dia me mostrou na sua casa do Gólgota, desta menina sabemos que escreveu, em idade de bonecas, com pseudónimo tão macho com as calças e o casaco que vestia. Igual aos marinheiros de Cronstad, que o miserável escorpião chamado Trotsky assassinaria, fotografou-a de marinheiro vestida um fotógrafo, o mesmo que a levaria, aos vinte anos a finalmente conhecer o deserto. E logo o Sáara se ajoelhou, agarrado às pernas de Isabelle, numa doentia declaração de amor, que é a forma do deserto amar, como sabe quem leu com olhos de ler “O Principezinho”.

Para fúria e ranger de dentes da colónia francesa – e se eu sei como rangem os dentes coloniais – o tão bonito rapazinho que era esta menina de vinte anos vestiu-se de árabe, de homem árabe, albornoz e turbante, e casou com um deles, mergulhando no deserto, em caravanas que se roçavam pelo perigo, pela intriga, pelo golpe de um punhal, tanto ou mais aventureira do que o poeta Rimbaud, traficante de armas e escravos nos desertos etíopes. Aprendeu a língua, converteu-se ao Islão e adoptou o nome de Si Mahmoud Saadi: só como homem podia ter a liberdade das aventuras que vivia com homens, mesmo se fosse, depois, a mulher que nela se escondia a deitar-se e dormir com eles. E tudo os árabes lhe aceitaram, haxixe, álcool, a desregrada vida sexual – fazia amor por amor de fazer amor –, acolhendo-a mesmo na Qadiri, uma irmandade sufi, sem ter de passar pelos habituais ritos iniciáticos.

Temendo que Isabelle, de albornoz e turbante, fosse agora espia e agitadora, as autoridades coloniais francesas encomendaram a sua morte. Atacou-a, estava Janeiro de 1901 exangue, um árabe, com um sabre. Um golpe na cabeça, outro que quase lhe levou um braço, Isabelle sobreviveu. O árabe garantiu no tribunal, e não serei eu a desmenti-lo, que fora Deus a ordenar-lhe o ataque.

Isabelle vagabundeou então por oásis, desertos e montanhas, fez amizade com generais da Legião estrangeira e, rosto afável do colonialismo, quis aproximar militares e o povo árabe. Com malária, talvez sífilis, sem dentes, regressou ao casebre do marido, o árabe da sua vida, na noite em que uma enxurrada, tudo levando à frente, a levou também a ela, para vaguear nesse outro deserto que é a morte. Tinha 27 anos. Encontraram o seu corpo, de cavaleiro árabe vestido, enterrado na lama e nos destroços. Viveu em sete o que em cem anos ninguém vive: a absoluta solidão do deserto, um nomadismo que tem na morte a sua única certeza.

Isabelle_Eberhardt
Isabelle, toda maruja

Crónica publicada no Jornal de Negócios

Água quente para o banho

Gilot
Françoise Gilot elle même. E num desenho de Picasso

Tivesse eu podido roubar uma das nove mulheres de Picasso e raptaria, com o ardor de um Rómulo, Françoise Gilot. Não só pela doçura do seu redondo talento de pintora, mas também pela bela cabeça morena, comandada pela arguta simetria das maçãs do rosto a que a velhice daria, depois, proeminência não destituída de ternura. E nem sequer falei do seu peito comovente que negava, distraído, a lei da gravidade.

Foi esse aroma flutuante que chegou à mesa a que presidia Pablo Picasso. O restaurante era o Le Catalan, 25 rue des Grands Augustins, margem esquerda do Sena, reinava em Paris a besta nazi de 1943. Françoise tinha 21 anos e jantava com outra amiga pintora e o actor Alain Cluny. Picasso conhecia-o e logo veio, prato de cerejas na mão, sentar-se à mesa deles. (Quem, podendo, não andaria sempre com um prato de cerejas na mão!)

“O que é que fazes?”, “Sou pintora”, “Boa piada. Uma rapariga como tu jamais podia ser pintora.” Um ao outro, foi o que disseram. Ou dispararam, que era tempo de guerra. A implicância provocadora desencadeia, sabe-se, erupções e terramotos. Os 21 anos de Florence adivinharam nos 61 de Picasso a catástrofe, uma catástrofe que – seu legítimo livre arbítrio – não queria evitar.

E já solicito o encarecido apoio dos leitores: o restaurante, Le Catalan, tem toda a responsabilidade. Há sítios que rimam com o milagre e a epifania – duas estranhas máscaras que escondem o apocalipse. À mesa de Picasso sentavam-se a bela Nusch e o lírico Paul Éluard, Dora Maar, amante e musa que o pincel do andaluz imortalizou como “a mulher que chora”. E foi no Le Catalan que o poeta parisiense Léon-Paul Fargue tombou nos braços de Picasso, com um inopinado AVC. Ao Le Catalan viriam, mal a bota nazi perdeu a sola, Dorothea Tanning e o seu Max Ernst, Hans Bellmer, e mais viriam Cocteau, Paul Valéry, Boris Vian. Ali se inventaria o melhor do existencialismo, uma balada, um hino, que rezava assim: “Nada mais tenho na existência / do que a essência que me definiu / porque a existência precede a essência / e por isso o dinheiro me fugiu.”

Do Le Catalan ao estúdio de Picasso foi um fósforo. Ofereceu-lhe a água quente que, nesse tempo de guerra, o estúdio ainda tinha, para os banhos que quisesse. Françoise batalhava então contra esse fino entrave da virgindade, que persistia, irrevogável, pela falta dos homens que conhecia, clandestinos na Resistência. Picasso era invasivo e dominador – beijou-a de surpresa a primeira vez, e ela, para surpresa dele, beijou-o de volta –, mas Françoise tem dois desenhos autobiográficos, que traçam com ironia os princípios constitucionais da relação deles, que garantiram a sua feminina autonomia. A um chamou “Adão forçando Eva a comer a maçã”, ao outro “Não me toques”.

Separado embora, Picasso ainda era casado com Olga Koklova – a lei francesa proibia-lhe o divórcio. Casamento suspenso, repartira-se por duas mulheres. Primeiro, Marie-Thérèse Walter, jovem, de corpo solar e saudável, seduzida aos 17 anos; depois, Dora Maar, que, quando soube de Françoise, se cobriu com o lençol da depressão. Marie-Thérèse procurou Françoise e avisou-a: que não tentasse ocupar o lugar dela. “Não se inquiete, o lugar que ocupei estava vazio.”

Ninguém ocupara nunca o lugar que Françoise teve na vida de Picasso. Fascinada pelo espírito lúdico, pela sedutora força física, pela paixão exsudante dele, Françoise tinha vida própria e deixou-o quando quis e entendeu. E disse-lhe. Picasso respondeu: “Nenhuma mulher deixa um homem como eu.” Até Picasso se pode enganar.

Crónica publicada no Jornal de Negócios

Sutiãs e négligés

marilyn

Marilyn Monroe telefonou para casa de Billy Wilder. Atendeu-a a mulher dele. Com aquela voz que provocava arrepios a um eucalipto, pinheiro manso ou até a um rijo carvalho, Marilyn disse-lhe, “diga ao seu marido que se vá…” e usou como ponto de exclamação a expletiva palavra inglesa que começa por “f” e tem quatro impronunciáveis e por vezes aprazíveis letrinhas.

Ora, Marilyn queria ser tudo menos aprazível. Acabara de filmar com Wilder o “Some Like It Hot”, comédia que metia gangsters e uma orquestra de mulheres. Tinha corrido mal tudo o que podia correr mal entre a protagonista, Marilyn, e o realizador, Wilder. Correu tão mal que Wilder deu uma festa à equipa e aos actores no final do filme e, suprema afronta, não convidou a actriz.

Eis a trama do filme. Dois músicos testemunham a matança, à metralhadora, de uns gangsters por outros gangsters. São testemunhas indesejáveis e os gangsters vivos querem matá-los. Os dois músicos disfarçam-se de mulheres, escondendo-se numa orquestra de jazz feminina. Fazem amizade com Marilyn, a cantora, numa cumplicidade de sutiãs, négligés, cuequinhas de renda, afagos e abraços, que foi quando houve anjos a demitirem-se no céu por quererem vir viver na Terra. Queriam talvez provar o que se derretia nos braços de Tony Curtis e Jack Lemmon, os dois músicos homens disfarçados de mulheres, a quem Marilyn revelavas os seus vitoriosos segredos.

Mas uma coisa é o pão, outra coisa é o forno, que é como quem diz, uma coisa é o filme, outra as filmagens. No filme, Marilyn chamava-se Sugar, e para ronronar como só ela ronronaria a simples frase “It’s me, Sugar”, Wilder teve de filmar a cena 47 vezes. Desde “Sugar, it’s me” a “It’s Sugar, me”, Marilyn não acertava com a réplica. Com um ataque de nervos a roer-lhe a cabeça, desatava a chorar e lá se ia a maquilhagem. Wilder escreveu a frase “It’s me, Sugar” na porta a que Marilyn batia, como escreveu depois, em todas as gavetas em que Marilyn teria de ir buscar uma garrafa de bourbon, a frase “where’s, the bourbon”, que Marilyn trocou por “where’s the bottle” “where’s the whiskey” ou where’s the bonbon”, e que ela só conseguiu dizer certo após 59 repetições. Disse a frase de costas, oferecendo o esplendor do seu posterior à câmara – talvez Billy Wilder a tenha dobrado.

Marilyn chegava ao estúdio com duas e três horas de atraso e filmava sempre com a presença, na sombra, de Paula Strasberg, a sua mentora, ou coach, como agora se diz. Quando Paula, com um discreto aceno, desaprovava, Marilyn interrompia ou enganava-se, matando a cena. Mas terá sido mesmo, Paula, essa sombra negra de Wilder a culpada? Jack Lemmon tem outra teoria. Marilyn nunca deveria ser posta em frente a uma câmara enquanto não estivesse pronta – psicológica e absolutamente pronta.

E, no entanto, se “Some Like It Hot” é uma obra-prima, a Marilyn o deve. Nele se aprende o que é uma mulher dançar a sua sexualidade a passos de ingenuidade, ironia, sinceridade, candura e fé. Pode o forno ter tido brasas a mais, lenha que não tenha ardido, mas o pão que de lá saiu é um prodígio de comédia, como Wilder reconheceria, reconciliando-se com Marilyn.

E depois soube-se que Marilyn estava grávidas nas filmagens e teve um aborto espontâneo. Estava casada com Arthur Miller, mas o pai era Tony Curtis, seu parceiro no filme.  Já tinham tido uma relação dez anos antes e, o reencontro foi fatal. Nas imortais palavras dele: “Eu era mais activo do que o Monte Vesúvio: foram homens, mulheres e animais.”

Publicado na minha coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

As duas metades de um corpo

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Quem cantou o Sexo Todo Poderoso foi Edna St. Vincent Millay. Cantou-o em verso e em público, na cama e fora da cama. A mãe dela, Cora, despachou um pai impertinente e, sozinha, criou Edna e as irmãs com hinos à natureza humana. Com a franqueza e sinceridade que nenhum ministro das finanças, nem mesmo o nosso heróico Centeno, há-de ter, Cora disse isto um dia: “Sou uma slut e criei as minhas filhas para serem umas sluts.” Ora bem, a semântica do português não faz justiça à gíria americana: slut está entre puta e vadia, termos moralizantes e depreciativos, que não honram o livre gosto do impreconceituoso amor desta mãe e filha, Cora e Edna, no começo do século XX, há cem anos.

Poeta amadíssima, como é raro acontecer a poetas, e logo mulheres, Edna era pequena, linda, duas destacadas colinas ao peito, um cabelo púrpura, e deslizava pelo mel do amor como hoje os louros adolescentes surfam as águas da Nazaré, em vertigem e a bater records. Dou um exemplo: Edmund Wilson, escritor, viril divulgador de Faulkner e Hemingway, de Rimbaud e T.S.Eliot, já tinha 25 anos e só uma ejaculação a ler um livro, o que o assustara e levara a consultar o médico, quando perdeu com ela a virgindade, assim descobrindo o esplendor e luz perpétua do sexo, do qual se tornou mais fanático do que eu pelo meu glorioso SLB.

 Edna deu a provar à língua de Wilson o delicado óbolo, logo lhe mostrando da moeda as duas faces. O escritor descobriu que, deitando-se com ele, Edna não deixava de se deitar com quem queria, em particular com o seu melhor amigo, outro poeta, John Peale Bishop, colega de universidade em Princeton, como ele soldado na I Grande Guerra. Terá havido estupefacção, como se chamava à surpresa em 1914, choro e ranger de dentes. Prefiro trazer aos meus leitores um momento de lânguida ternura.

Edna decidiu viajar para a Europa e despediu-se dos dois amados, a quem chamava “os meus meninos do coro do Inferno”. Com aquele mórbido gosto que todo o Casanova tem na ruptura, despediu-se deles no quarto. Deitou-se nos braços dos dois, oferecendo a Bishop o seu corpo da cintura para cima, a Wilson da cintura para baixo, pedindo que lhe prodigalizassem firmes gentilezas e a doce gota da cortesia, cada um devendo provar que tinha ficado com a melhor parte. Eis o que me parece ser um programa para um mundo melhor, pelo qual merecem erguer-se estandartes e sonhar amanhãs que cantam.

 Num dos seus mais belos poemas, Edna cantou essa amorosa dissolução: “Que lábios meus lábios beijaram, e onde, e porquê, / Já não sei, nem que braços repousaram / Sob a minha cabeça até amanhecer…” Procurava amantes muito jovens, cuidando que não se encontrassem à sua porta e rifando-os depois com magnanimidade. Chamava-lhes “frescos destroços de naufrágio” quando vinham uivar à sua janela. Muito gostando, para o resto da vida, de Wilson e de Bishop, sempres lhes reprovou que, por ela, não tivessem espatifado a sua amizade masculina.

Casou com um industrial holandês de café que amou e a amava com uma liberalidade que faz espécie a este nosso tempo de assexuada vigilância raivosa. Outro poeta, George Dillon, mais novo 14 anos, foi a sua última aventura. Traduziram juntos As Flores do Mal, de Baudelaire. Não invento, foi Edna que escreveu: beijar a boca de Dillon era tão macio como beijar o mamilo de uma rapariga. Mas Dillon fez o que só Edna podia fazer: rejeitou-a. Antes dos 40, Edna via desvanecer-se o seu prodigioso poder erótico. Nos últimos 20 anos de vida, morfina, álcool e drogas vieram dormir à sua cama.

E-Millay

Publicado na minha coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

O lindo livro de Koons, Jeff

KOONs
Caixa aberta

Caixa vermelhíssima de 38 por 49 cm. As letras prateadas anunciam o artista: Jeff Koons. Abre-se a caixa e sai o livro. Pesado e gigantesco, 600 páginas. Na capa em tela, em colagem de plástico, está a Lagosta que Koons, em tributo daliano, concebeu em 2003.

A edição é limitada, de apenas 1600 exemplares, todos numerados e assinados pelo artista. Tenho o nº 1? Nem o 2. Saiu-me o 1323, quase no fim da lista, número de lista de espera.

Porque é que chamei o livro à colação, juntando-o aos belos livros que já aqui louvei? Porque me diverte e se Koons é mais do que discutível o livro não. Robert Hughes, crítico de arte da minha estimação, jurou:

Koons is the perfect product of an art system in which the market controls nearly everything, including much of what gets said about art.” E depois disse muito pior, coisas sulfúricas.

JK
Naked

Não juro por Koons, pela tão tardia art pop dele. Sei que um dia lhe saiu ao caminho (acho que foi ele que a procurou) Cicciolina, o seu ready made. Vivant, está claro. Foi com ela que Koons, ele mesmo centro da sua arte, edificou o succès de scandale. “Made in Heaven” a série de retratos, esculturas e pinturas que Koons e Cicciolina protagonizaram, teve um retumbante triunfo na Bienal de Veneza, de 1990. Pornografia? Não creio, como não acho que a justificação de Koons, sugerindo que a pornografia pode ser inocente, o sujo belo, ou a insídia converter-se em confiança, esteja espelhada no kamasutra deles.

JHI
Fingers and legs

Arte insuflável, de cores primárias, de matérias brilhantes e neo-barrocas, talvez a mais sincera declaração que nela encontramos seja a forma como Koons ele mesmo, a sua imagem, surge obsessivamente, oferecendo-se como commodity. Tão commodity como os seus aspiradores Hoover da primeira fase, máquinas que respiram. “The suck dirt…” disse ele.

O livro? Já não podem comprar: edição esgotada.

A jovem amante

Faure
Felix Faure tomba no seu teatro de guerra

Ainda os genes do nosso Marcelo e do primeiro Costa peregrinavam pelos seus ancestrais e já Félix Faure era presidente da França. Exaurido pela governação, Félix, em vez de relaxar com uma bica curta, estendia-se ao comprido, com uma jovem amante, Margarite. Faz agora 120 anos, Marguerite veio ao palácio e, botão a botão, soltou a virilidade dos 58 anos do presidente, mimando-o com o acto a que o povo, sensível, dá o nome de uma jóia de peito. A meio, Félix estremece e grita “Sufoco”. E sufocou mesmo, exalando o último suspiro, calças caídas, para comoção da França.

Confesso uma gota de nostalgia face à velha forma de fazer política.

steinheil
A jovem Marguerite

Bica Curta publicada no CM

Uns ovinhos de perdiz

venda informal

Tinha os olhos postos na minha pilinha. Olhava-a com uma inquietação de oito anos de idade. Ali estávamos, ela de olhar mais cego, a interrogarmo-nos um ao outro: estaria a façanha, na sua complexa articulação e intrincado encadeamento, ao nosso alcance?

Quando vi o filme Stand by Me gritei de inveja: também queria, como aquele bando de miúdos, ter descoberto um cadáver numa mata, para o lado do aeroporto de Luanda, onde íamos caçar pássaros. O cadáver dos meus oito anos foi uma calçadeira. Deixemos, para já, a calçadeira ao pé do que era então o meu único par de sapatos.

Da escola da Missão de São Paulo, eu vinha de frescas sandálias ou de imaculados quedes em dias de ginástica. Bando negro com miúdo branco, atirávamo-nos, com uma convicção de Garrinchas, Matateus e Iaúcas, a trumunos de sarjeta. Ou seja, a sarjeta era a baliza e o objectivo era, quem estivesse na posse da bola – uma lata, caixa, um bom caroço de manga – enfiá-la no buraco. Fazíamos da caminhada ramerranesca uma jornada de glórias e humilhações pessoais e uma afronta à manutenção dos esgotos camarários.

Íamos deixando os colegas moradores no musseque Rangel onde desaguava a Avenida dos Combatentes, e sobrávamos dois. Vila Alice à vista, sentávamo-nos com um vendedor de kitaba, paracuca e quifufutila. Largávamos um angolar e a língua deliciava-se entre o picante e o doce, enquanto oferecíamos os ouvidos ao nosso mestre vendedor. Era um mais velho ainda novo, nada de kota, mas sabia já o que nós não sabíamos e queríamos saber: aquilo.

Fazia render as revelações, do manso farfalho a tirar as cuequinhas, até que um dia contou o que sonhávamos que nos contasse. Era assim: corpos nus, abria-se o que é de sua natureza abrir-se e penetrava o que para isso é cilíndrico e de inflada ponta. Depois, obtido o perfeito encaixe, com uma calçadeira, eis que se enfiavam os redondos complementos do impante membro. Os meus dois ovinhos de perdiz também entrariam, portanto, na festa.

Acreditámos. E a calçadeira assombrou tanto a minha infância, como o espectro que Marx dizia assombrar a Europa no revolucionário século XIX. Só havia uma calçadeira em casa e seria perverso tocar-lhe. Com que cara e dinheiro iria eu, oito anos, comprar uma? E diga cá – já os estava a ouvir –, para que quer o menino a calçadeira?

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Publicado no Expresso