A bélica, delinquente e sagrada sala de cinema

Escrevi, o ano passado, este texto para a revista Granta, a pedido de Pedro Mexia. Foi com uma alegria infantil que voltei às salas de cinema da minha infância e adolescência. Agora, mais de meio-ano depois, e acabada de publicar uma nova Granta, trago o meu mini-ensaio para esta Página Negra. É um texto longo, aviso – é preciso uma chávena de paciência e uma colherinha de vontade para se ler até ao fim.

Miramar

A bélica, delinquente e sagrada sala de cinema
Manuel S. Fonseca

Padre, polícia, sargento. Sargento, polícia, padre. Foi esta a litania que encafuou a minha vida na bélica, delinquente e sagrada sala de cinema.

Explico-me louvando-me na inescapável biografia. Até aos cinco anos de idade, tanto como a electricidade, a imagem era-me estranha, sendo ambas, electricidade e imagem, práticas ou técnicas que pressentia inumanas. O meu primeiro choque com esse bestiário civilizacional foi em Lisboa, numa qualquer agência que preparava, em 1959, as famílias lusíadas para a colonização do ardente império onde António de Oliveira Salazar nunca pôs a mansa pantufa. A mão camponesa de minha mãe, com o seu doce aroma a bravo esmolfe, levantou-me a lavada meia manga da camisa para que um enfermeiro me agraciasse com a tripla vacina tropical – febre-amarela, varíola, cólera – e, ia eu começar a fungar, apagam-se as luzes e vi, pela primeira vez, a imagem.

Irrompem da parede branca uns luminosos pretinhos, os primeiros pretinhos da minha vida, ranhosamente sorridentes, seminus. Corriam na parede de luz, saltavam, fugiam às mães, sem nunca saírem do rectângulo que fulgurava no escuro da sala. Eu já tinha visto um lobo, duas raposas, já andara de burro e mula, vira o vertiginoso Inverno feito água em fúria na curva do Coa que fica mais perto de Vale de Madeira, Pinhel, mas só agora via, por fim, a unicórnia imagem e o esplendor explosivo, porventura mentiroso ou pelo menos fingido, dessa luz branca aureolada a sombras, coisa que por eu não saber dizer então, logo ali me cegou e engasgou, em ledo engano me embalando para sempre. Esta era a imagem que em verdade, em verdade me disse: abre os olhos e vê.

Poupo os leitores à viagem transatlântica no paquete Vera Cruz até Luanda. Os meus pais eram muito ricos, não tendo, como as pessoas verdadeiramente ricas, mesmo dinheiro nenhum. Fui, por isso, morar num musseque, o mais livre, acre e lendário dos musseques, o Sambizanga, um bom meio quilómetro para o interior, a contar da Casa Branca, território do tamanho de Dante, se é que eu não queria mesmo dizer, da Divina Comédia, tão labirínticos eram os seus círculos concêntricos.

Ainda não voltara a ver a imagem, e veio o 4 de Fevereiro de 1961. Camuflados nas silenciosas barbas da noite, nacionalistas angolanos assaltaram prisões, o forte colonial. Os tiros correram pela madrugada como boémios desgarrados. Eu ainda não tinha ouvidos para ouvir e não ouvi esses independentes tiros da rebelião, mas lembro-me, apesar de ser a céu aberto em plena rua, e lembro-me como de mais nenhuma imagem, desse primeiro domingo a seguir ao 4 de Fevereiro. Foi o meu encontro com a angustiante vida real. Corriam outra vez os pretinhos e perseguiam-nos bandos de famílias brancas – e outros negros e cabo-verdianos, diga-se –, atacando-os a golpes de paus e pedras, o lombo pesado do ramo da palmeira, e não havia essa imóvel parede de aureoladas sombras e mecânica luz para onde os meus desvalidos e sacrificiais anti-heróis pudessem fugir e fingir ser mentira a dor e o sangue que deveras sentiam. Em verdade, em verdade vos digo, esta era a imagem que qualquer um veria mesmo de olhos fechados e só quem não tem olhos para ver atirará a primeira pedra.

 O padre

shane

Tinha eu, portanto, sete anos e duas imagens, a imagem explicativa de Lisboa e a imagem implicativa de Luanda. Ambas eram verosímeis, qual delas a verdadeira? De uma e de outra salvou-me o padre anti-hitchcockiano.

O episódio de Sir Alfred é conhecido. O carro que lhe levava o peso ofegante por uma estrada nas montanhas suíças passou por um cura e um rapazinho, a mão do padre no ombro do moço. Ecoou pelas colinas a católica suspeição do grito de Hitchcock: “Run for your life, boy.”

Já o meu padre nunca quis saber do meu ombro, só dos meus olhos. De hábito franciscano, a chicote, que era o cordão do piedoso burel marron, punha em ordem a vagabundosa fila de miúdos negros e esparsos infiltrados brancos a que eu me juntava, impaciente por entrar numa suposta caverna e ver o mistério que se ia oficiar. Íamos ver o rapaz, íamos ver o artista.

Paguei o quê? Um angolar? Era uma sala de bancos corridos, sem costas, por serem costas os joelhos dos da fila de trás. Janelas altas, depressa tapadas por umas corridas cortinas negras. Preso à parede do fundo, um esticadíssimo lençol. Fez-se um escuro de alcatrão e uma violenta e luminosa realidade entrou na transparência da minha vida e dos meus sete anos. A sala escura encheu-se de cores americanas, iguaizinhas às que em Marrocos levaram Nicolas de Staël à pintura e depois ao leniente suicídio. As cores americanas vinham a cavalo, verdes e magentas num bosque ou ribeiro, o amarelo-torrado de um fero, seco e estéril monte, o luzidio negro de um colt a cuspir vermelho e som. Era um western e não era coisíssima nenhuma que não fosse o paraíso, ou céu, como então eu chamava ao paraíso.

Esta já não era a imagem explicativa de Lisboa, pequeno rectângulo a preto e branco, pedagógico, transparente e sem esquinas; esta também não era a imagem real, fixa, e por isso assustadora, dos vizinhos perseguidos e perseguidores do 4 de Fevereiro, do inapagável sangue que fica na casca do ramo de palmeira. Esta nova imagem era a imagem de um conluio americano com os meus padres capuchinhos italianos e redimia, em glória e artifício, a imagem explicativa e a imagem implicativa. Por aquela imagem, pela imagem do cinema sem nome da Missão de São Domingos podia fugir-se, e já corrijo, podia subir-se à montanha das bem-aventuranças. Cinema de cavalos, saloons, espadachins, trirremes, ben-hures e espártacos, beijos roubados, céus em azul cião.

  Ia dizer que a sala do cinema sem nome tinha, no seu negrume capuchinho, a cara tisnada da inocência, mas minto. Tinha era o corpo inquieto e a voz aguda e vibrante da inocência. A inocência era o corpo em labaredas de uns cem candengues, cem miúdos, que lambiam o esticadíssimo lençol branco, numa apoplexia de bom-dia à felicidade, que nunca mais voltarei a soletrar assim. Gritava-se, apostrofava-se, ululava-se, aplaudia-se. Ah, a insustentável e cósmica dilatação do esticadíssimo lençol, que ficava muito maior do que mundo e vida! Sim, a ameaçadora tela engolia-nos e nós, para avisar o artista, atirávamos-lhe tudo o que tínhamos à mão, por fim os sapatos. Esta foi a imagem que o meu padre me deu, a do cinema onde entrávamos calçados e, cheios de um amor franciscano, saíamos descalços.

 O polícia

La violetera

À Sétima Esquadra da PSP de Luanda acariciava-a a brisa mítica que os westerns emprestam a taxa de juros zero ao Sétimo de Cavalaria. Alvo dos nacionalistas rebeldes do 4 de Fevereiro, a esquadra ocupava uma posição estratégica no enquadramento do fim da cidade do asfalto com os musseques a sudoeste e a estrada de Catete, via de saída de Luanda para o interior de Angola. A cruel mistura de lenda, heroísmo e estratégia fê-la crescer, convertendo-a num forte a que, como condecoração, se deu um cinema. Havia, para os polícias e famílias, uma boa sala de cinema, a céu aberto, na Sétima Esquadra. Chefes e subchefes no balcão, agentes na plateia.

Sem que Salazar soubesse, confirmando assim o que os nossos pais diziam da putativa corrupção dos ministros dele, nós, os miúdos do bairro, furávamos o regime corporativo e vínhamos, mini-foras-de-lei e em incipiente delinquência nos intestinos da lei e ordem, ver as matinés de Marisol e Joselito, La Violetera de Sarita Montiel, Cantinflas e outras obscenas amenidades para maiores de 6 anos. Como depois, quando crescemos para a idade dos heróis de Stand by me (esses macaquinhos de imitação do que, muito antes, os meus amigos e eu vivemos), viemos à procura de outra imagem, a dos filmes draculianos e exorcizantes, de que saíamos aterrorizados, dez minutos até casa numa nocturna caminhada tropicalmente gelada por cada fantasma cintilante, por cada reflexo bizarro, pelo assobio da viração do vento nas árvores, pela fugidia sombra num quintal, mil demónios e cazumbis a morderem-nos o cáqui dos calções e as nossas pernas lisinhas, um medo bruxo, de caixões e nosferatu, a bombear-nos o coração.

Eis a dupla imagem que, depois do meu padre, o meu polícia me deu. Primeiro, a imagem da frivolidade, da alimentar, desopilante e formativa frivolidade. Por causa das prendadas filhas, as mais bem vestidinhas dos chefes e subchefes, sereias mudinhas que nos obrigavam a virar o pescoço volúvel e dúctil para o balcão, o meu polícia fez prevalecer a sala de cinema sobre o filme, sofrida, amarga e mesquinha traição, que os meus amigos e eu fingíamos não ver ou sentir e escondíamos uns dos outros.

O meu polícia deu-me, depois, a experiência do oculto e do sobrenatural e desse foguetão afectivo que a acompanha, o sentimento apaixonante chamado medo. Saí da Sétima Esquadra armado, dois coldres à ilharga, num a deliciosa frivolidade, no outro, o nocturno estrado do medo.

 O sargento

rain people

Era um quartel. Do outro lado da Estrada de Catete para quem vinha da Vila Alice, passado o Colégio dos Maristas e o Seminário, na estrada de areia dos quartéis, o RIL, Regimento de Infantaria de Luanda, tinha um cinema a que o nosso pós-infantil e desgovernado ideal de heroísmo militar chamava, com desdém, o cinema dos sargentos. Esplanada ao ar livre, ecrã gigante, uma plateia férrea e geometricamente hierarquizada em oficiais, sargentos e praças, foi nesse cinema, com o Cruzeiro do Sul por testemunha, que descobri a mulher adulta, casada e autónoma.

E tenho antes de dizer que, sentado na fila da frente, a minha mão quase a tocar a locomotiva que Buster Keaton conduzia, já lá descobrira o silencioso segundo riso, que, pelas alminhas, não deve ser confundido com o reactivo anti-riso contemporâneo, a que talvez o impiedoso Nietzsche chamasse humor de escravo. Keaton apareceu-me num fim de tarde de domingo, o filme chamava-se The General, mas a tradução portuguesa, Pamplinas Maquinista, mais reforçava a festiva euforia do que hoje seria o quim barreirismo da matinée infantil. Andava já de adolescência inquieta e começava a fazer fine bouche (se assim posso dizer) à gargalhada de boca, rapidinha e esquecível. Ora, cada gag de Keaton era depois da gargalhada que se agarrava ao palato. Peço desculpa e a mais benigna compreensão do leitor para o que vou dizer: Keaton traficava uma imagem que, sendo já de boa boca, tinha um fim de garganta funda, como se diz, entendamo-nos, que só os vinhos de Bordeaux têm. O humor dele era, descendo em espiral, riso depois do riso, segundo riso, um riso de peito e alma.

E já salto do comboio de Keaton para voltar à mulher. A mulher casada deu-ma a descobrir o meu sargento, mostrando-me Shirley Knight, ao volante de uma station, a deixar a sua casa numa plácida smalltown que, tivesse Angola auto-estradas, podia ser de Angola. Eu vi-a, de uma das minhas noites de cacimbo dos dezassete anos, saía ela de casa numa manhã de Inverno. A chuva pequenina, cambutinha, prima do cacimbo angolano, espalhava poças pelas ruas de Chattanooga, no Tennessee, onde Francis Ford Coppola filmou esta mulher grávida que, sem destino, deixa mansamente o marido e se mete à interminável estrada.

A luz, meu Deus e meus amigos! Tão fina e filtrada a luz, luz do sudeste americano a arrancar brilhos e reflexos ao asfalto, uma renda de humidade, a imarescível humidade que a insatisfeita melancolia, se autêntica, não ousa dispensar. Shirley Knight encosta e acolhe a essa melancolia dois homens, James Caan e Robert Duvall. E Shirley devia ter-me acolhido a mim: eles não a amaram e incompreenderam mais do que eu.

Tudo nessa Shirley Knight é gentil, salvo o que é inexplicável ou insondável, que é praticamente tudo. As suas indizíveis razões, a sua inegociável solidão, a sua seguríssima incerteza comoveram a minha adolescência e eu, no cinema do meu sargento, que já me tinha dado a imagem do desumilhante e nietzschiano segundo riso, tomei de assalto a imagem independente e impossuível da mulher. Numa esplanada de ancas oferecidas à lua, ao cacimbo e às estrelas, o mouco rumor da guerra colonial que a plateia de soldados insinuava, conheci e entrou-me na pele a imagem da grave e errática liberdade da mulher casada. Quero que conste no meu cadastro: The Rain People chamava-se o filme de que Chove no Meu Coração foi o piedoso título português.

A sala e o telhado

searchBIG

Com excepção do cinema dos padres capuchinhos, na Missão de São Domingos, até aos dezassete anos, mais de 90% dos filmes que vi, vi-os com os olhos a fugir para o céu. Muitos na melhor das minhas salas, o cinema Miramar, o mais belo do mundo, levantado, como John Wayne levanta Natalie Wood em The Searchers, sobre as barrocas de Luanda. O Miramar, logo depois do seu jardim com as weliwítschias de longos braços estendidos atrás do pasmoso ecrã, caía a pique sobre o mar, tendo em fundo a baía, guindastes e os grandes navios conradianos do porto de Luanda, as refulgentes locomotivas do caminho-de-ferro da linha de Malange. Foi no meio dessa barriga de vida que vi, quinze anos, ainda mal o meu polegar do pé direito roçava a cinefilia, o Pierrot le Fou, de Jean-Luc, esse torcionário Godard, que tão depressa me salva de afogamentos, como me embrulha a cabeça numa toalha, enfiando-ma na água de uma banheira.

Sei, contaram-me, da teoria uterina da sala de cinema. O útero dos meus filmes tinha a escuridão da noite original, primeva, tinha nuvens e ventos, estrelas e lua, às vezes o lampejo líquido, um clair de mar. E que não se tenha o impudor de confundir este meu mergulho, de prazer visceral, com a deriva tubo de escape do drive-in. Vi filmes cercado de cosmos por todo o lado, menos por um: o istmo que me aproximava umbilicalmente da clássica sala de cinema era a plateia cheia. Nas minhas esplanadas, a tropical céu aberto, o meu pequeno eu sentava-se lado a lado, à frente e atrás, com uma alienada massa de zombies enfeitiçados, olhos, esqueleto e almas entregues à mais genuína, total e torrencial crença. O meu espanto de alma, o meu pequenino fervilhar do baixo-ventre, a ânsia do meu coração pateta, o êmbolo irrespirável que me devastava os pulmões nunca estiveram sozinhos. Juntos, como na gruta de Lascaux, éramos uma plateia farfalhante, sentados em cima do mesmo medo, do mesmo desejo, da mesma alegria. Estremecíamos, sufocávamos, ríamos, chorávamos pré-historicamente em conjunto. Repare-se, estávamos ali sentados, ligeira inclinação para o ecrã, posição fetal, em pleno parto, nascendo de novo a 24 imagens por segundo. E connosco, novos adões, novas evas, renascia em nós, por nós e para nós, o raio da nua humanidade inteira, nova Gaia, novo Eros, saídos de um escuro e espesso caos.

Tremo só de pensar no rasto de pecado da minha adolescência fílmica. E talvez deva antes dizer, da minha adolescente obscenidade fílmica. Elizabeth Taylor, Gina Lollobrigida, Stella Stevens, Natalie Wood, Brigitte Bardot, Virna Lisi, Ursulla Andress, Raquel Welch, Sophia Loren, Barbarella, ou Jane Fonda sei lá, Julie Christie, com os seus três metros se estivessem de pé, dez metros se bem deitadas, vinham espetar-se-me directamente na veia, num consentimento fulvo e mamífero. O cinema consente.

Hipertrofia da vida, o cinema oferece rostos, ramagem de olhos, nariz e lábios, franja de sexo, como se fossem áscuas de ouro. O cinema esfaqueia, estrangula, assassina e logo, fade out, fade in, a nova imagem, a imagem seguinte tudo lava e redime. Bigger than life, já me juraram e não me mentiram. E é por isso que o cinema hipersensibiliza. Massaja, espanca de luz e bang, bang as nossas glândulas estéticas, arrastando-as para inconfessáveis devaneios psíquicos. Se a este mistério, se a este sombrio ritual se pode chamar uma educação, essa foi a minha educação. Nos anos 60, em Luanda, África Ocidental Portuguesa, futura República de Angola.

Confesso. Eu sou do mais escuro dos séculos, o século XX. Sou do século em que o amor irrompia como um jacto de luz sem beliscar a cósmica escuridão. Jamais desmentiria quem a isto chamasse cinema.

Miramar

Joana Maluca

Luanda

Vindo da minha última crónica, saio da casa militar dos malucos de Luanda e desato a deambular pelas ruas da minha infância e adolescência, pela Missão de São Paulo, o gárrulo e multi-aromático mercado de tantas quitandeiras desse bairro, ou pelos areais e ruínas entre o Liceu Feminino e o Hospital Militar, e em todas essas ruas, areais e ruínas só me aparece, insistente, o vulto da Joana Maluca.

 A Joana Maluca era a louca de Luanda, tormento da minha infância. Foi nela que primeiro vi o esgar que um dia descobri ter também atormentado o pintor norueguês Edvard Munch e o levou a pintar o terrível “Grito”. Que anjos negros e espessos, que anjos brancos, albinos, translúcidos como medusas, embalaram Munch e embalaram Joana, mulher negra e louca da minha infância?

Munch pintou quatro “Gritos”, neles variando a angústia, o fundo alucinado e as cores dessa hora desvairada que é cada crepúsculo. Discípula de Munch, Joana trazia no avental rasgado quatro pedras que atirava à turba de miúdos, fossem pretos, mulatos ou brancos, que lhe gritassem em coro, “Joana Maluca, Joana Maluca”.  Soprada pela loucura, levantava os panos que a cobriam e expunha a nudez desamparada e íntima aos gritos de “Querem ver cinema, querem?” E os miúdos que éramos, ríamos, perturbados por esse entontecedor cocktail de medo, loucura e baixa vergonha. E fugíamos das pedras fulminantes.

Não sei o que atirou aquela mulher de rosto munchiano para a esquina da amargura. Uns diziam que uma história de amor com um branco ruim, outros com um atleta japonês, outros falavam da morte do seu bebé. Munch contava que o seu romance com a loucura era romance de toca e foge: as alucinações iam e vinham como migrantes no oscilante Mediterrâneo. Trataram-no, leio, a electrificação, não sei se a inóspitos e célebres electrochoques, se a variante mais moderada. A terapia da Joana Maluca era a pedrada multirracial. E que ninguém fosse queixar-se aos pais. Toda a piedade estava reservada a essa mulher nómada, errante, Joana Maluca, que a cidade venerava como a aldeia venera o seu louco, permitindo que acompanhasse as procissões ao lado do arcebispo.

E eis que, na independência, conheci o branco maluco. Matriculei-me na Faculdade de Direito de Luanda, ali mesmo, Marginal sobre a baía, em frente o amado Atlântico Sul, cálido lençol azul e verde, estendido até às Américas. Era um mais velho que ficara, sem retorno, sem família. Na cantina davam-lhe a refeição que em Luanda já escasseava.

O mais velho era pacífico, mas de repente vinha um atlético anjo munchiano e ele dava uma espectacular cambalhota – quase um flic-flac – no pequeno jardim do pátio ao pé da cantina. E o branco maluco, a seguir, soltava os seus anjos guinchantes e despejava a odiosa desordem rácica, com insultos em que “pretos de merda” era só o amuse-bouche. Os meus colegas negros, a maioria, sentados já na sua pátria independente, tratavam, então, o mais velho branco maluco com a mesma santidade que a cidade colonial dedicara a Joana. Toleravam-no e acalmavam-no: o espectáculo da loucura é uma fada sinistra que nos assombra e nos provoca, seja qual for a nossa cor ou pátria, uma perturbadora epilepsia interior, secreta, que não sabemos como parar.

Tenho a vaidade de pensar que a Joana Maluca, com a boca que a insanidade torcera, foi o anjo da guarda da minha infância, e que o circense e paroxístico branco maluco da faculdade de Luanda foi um Anjo Gabriel, desenhando a fronteira da tolerância aos meus vinte anos extremistas e totalitários.

Publicado em “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

 

O chimpanzé

macaco.jpg

Bica Curta servida no CM, na 5.ª feira, dia 21 de Novembro

Hoje tomo a bica na Vila Alice, meu bairro da Luanda colonial. Eram dez da manhã e estava à janela o meu ocioso amigo Victor Silva, agora advogado em Faro. Na esquina, mercearia do senhor Amaral, descarregava a camioneta da Coca-Cola. Eis que surge do nada um chimpanzé. Foge a boa gente, fecha-se a mercearia. O solitário chimpanzé sobe à camioneta, desata a partir garrafas e a ingerir a bebida capitalista, beiços feridos nos gargalos escaqueirados.

Ninguém, nem tu Victor, propôs um brinde ao nosso digno antepassado! E, todavia, estava ali, líquida, uma lição: livre, a natureza delicia-se com o capitalismo.

Os maximbas lá da Lua também eram verdes?

Esse é o problema que estou com ele: qual era então a cor dos maximbas lá da Lua no tempo do caparandanda?

Tudo começou quando me mandaram já essa imagem candongueira:

maximbombo
Esse aqui é mentira

Essa imagem é mentira, então. Esse é um autocarro do Puto. Lisboeta. E um muadié, só para me uatobar, aldrabou o letreiro Vila Alice, linha 8. Eu que lhe trouxe aqui, fiquei já como mujimbeiro. Não vou lhe admitir. Esse meu avilo me uatabou bem! Me fez de zuzuto, mas também não vou lhe ameaçar de kilunza. Foi brincadeira, mesmo.

E vieram já aí os outros avilos, “Hmm, komé meu, lá na banda maximbombo era azul!” E tem já uns kotas que através do esquecimento juram sangue de Cristo que só tinha maximbas rés-de-chão. Vamos então parar de esbucular e falar a verdade sem mais curibotas.

Este é o maximbas azul de sobe já no primeiro andar.

Maximbas

E agora, para a desbunda mesmo, desconsegui essas três à la minuta, prova então que os maximbas também foram verdes e verdes se kazukutavam por Luanda  até pelo menos 1964.

Essa foto chegou da diáspora canadiana, via meu kamba e kota Abilio Nunes:

Luanda_verde

Nessa aqui tem maximbas verde de dois andares bem estacionado. Será que vai para a Vila Alice?

_Luanda

E aqui se pode ver que até conviveram as duas cores numa intercolorização de selo de povoamento.

Luanda_

E dou por encerrada a minha contribuição para o desvendamento do mistério do Maximbas Verde, na  Lua dos anos 60.

O meu maximbas

maximbombo

Komé então! Olha só aí, meu irmão, o maximbas lá da banda. Carreira 8, Vila Alice-Mutamba, Mutamba-Vila Alice, o meu maximbombo, que me dava colo, levava e trazia, quando ia à Lello, na Baixa, à caixa de correio do meu pai nos Correios em frente, ao Estúdio do Restauração ver a Faca na Água, do Polanski, a Mouchette, Amor e Morte, do Bresson, ou quando ia a um quarto de cassata ao Baleizão, ou à Emissora Católica, Rádio Ecclésia falar com o senhor Brandão Lucas.

Mas olha só a banga desse verde engraxado, rutilante! Matrícula DD-56-73, o povo lá dentro no rés do chão, candengues lá em cima, na janela da frente, vista panorâmica sobre essa nossa lua, luanda, cidade colonial africana, cidade de já tanto asfalto como a norte em África não havia mais nenhuma, um casco central arquitectónico de sobrados, e novos prédios lindos, lá no cimo da colina o kinaxixe moderníssimo, que se estivesse ainda estoicamente de pé seria património universal. De pé, esse meu maximbas, linha 8, Vila Alice, minha pátria.

ps – agora a foto é aldrabada. Foi um velho kamba que me endrominou (practical joke à inglesa). E eu aguento-me com boa cara, está claro. Sim, os maximbas de Luanda eram azuis  e a matrícula é a de Portugal e não a de Angola. Fui bem comido! Mas o texto é meu e é verdadeiro e fica aqui na mesma.

 

Noites de ponta e mola

faca

A morte de Abel, Tintoretto

A ponta e mola brilhou numa noite dos meus 14 anos. Voltei a vê-la em “The Outsiders” e “Rumble Fish” de Francis Coppola, filmes que depois me mostraram o espectáculo da morte a que aos 14 anos não assisti. Mas conto.

barriga
espetou-lhe na barriga uma faca darwiniana

A faca enterrou-se na carne macia e jovem. Subiu, cega e oblíqua, da bar­riga para o estô­mago. Eu morava dois quarteirões adiante e estas coisas acon­te­ce­ram em Luanda. Foi a primeira vez que a palavra morte apagou um rosto do resto dos dias da minha vida.

Como o Matt Dillon de “The Outsiders”, o V era mais velho do que eu. Dois anos, um mundo de difer­ença. Mas fazíamos junto, a pé (às vezes com o Videira, o mais célebre contínuo do liceu), o caminho do Sal­vador Cor­reia até ao Cin­ema Império, pas­sando pela Sagrada Família, o descam­pado em frente ao Hos­pi­tal Mil­i­tar, um inóspito car­reiro até ao Liceu Fem­i­nino e, à frente, atrav­es­sando a D. João II, o cin­ema Império, com a defesa civil ao lado, as mora­dias alin­hadas entre as tra­seiras do cin­ema e a Estrada de Catete.

Tudo terá acontecido para que Coppola viesse um dia a filmar, em “Outsiders”, com liberdade poética, a cena em que Johnny, quase uma criança, mata um miúdo do bando inimigo, salvando Ponyboy, o melhor amigo. Nessa noite que ainda não sabia ser a última, V andava também em bando – sem­pre em bando. Julgaram sur­preen­der um ladrão. Lará­pio só, não ladrão de colarinho e off-shores como hoje se con­hecem. Era um miúdo do musseque, ani­mado pela vontade de risco, pelo orgulho de deam­bu­lar no bairro branco. Vinha em rito de ini­ci­ação. A inútil e essencial cor­agem adolescente.

Como Ponyboy e Johnny, o miúdo do musseque, sentindo o cerco, pas­sou a acos­sado. Imag­ino que tenha ficado ani­mal encol­hido entre muro e sebe, leopardo atento, a res­pi­ração a fer­ver, mús­cu­los ten­sos até doer, pronto para ser invisível e lutar. Matar, se fosse pre­ciso. As som­bras bran­cas cor­riam, sem que nen­huma o visse. Imag­ino que V o tenha apan­hado de sur­presa, num tempo sem som, igual a uma ton­tura, o mesmo tempo insonoro que Coppola mostrou em “Rumble Fish”.

Mais apto, mais rápido, o miúdo, jovem máquina de luta de musseque, espetou-lhe na bar­riga uma facada dar­wini­ana. De baixo para cima, irremediável. E correu, flecha entre as árvores, perdendo-se na anónima meia-noite dos trópi­cos. Voltou a casa, aos seus, à adormecida mãe na esteira. Respiração a mil, mas de coração livre e sobrevivente. No chão do bairro branco ficara estendido o menino de outra mãe.

Soube no dia seguinte: mataram o V, o V morreu. No cemitério – éramos um bando, sem­pre um bando – não con­seguíamos chorar. Ríamos ner­vosa­mente. Digo, então, que a primeira vez que vi a morte me ri ner­vosa­mente, tão ner­vosa­mente como me ri quando, pela primeira vez, sangue em alvoroço, me apaixonei.

Em “Rumble Fish”, Rusty James (Matt Dillon) leva uma sova homérica num beco. Vemos o corpo separar-se do corpo. o segundo corpo, um corpo flutuante, hesita ainda, com pena do frio vulto de que saiu e jaz em terra, mas já com vontade de descobrir celestiais nuvens de aventura e desconhecido. Em “Rumble Fish” o corpo dá um pontapé à morte e volta ao corpo térreo, original. Em Luanda, em vez do apelo de lutas, namoros, farras de sábado, uma bebedeira na Ilha, o corpo flutuante de V escolheu o desconhecido. Escolheu harpas e arcanjos, ou esse rumor cósmico que é som e não é som e que torna toda a metafísica inútil.

rusty
o corpo flutuante hesita ainda

O paraíso

joaquim Lopo
foto de Joaquim Lopo, com a devida vénia

Tive um vislumbre do que é o paraíso. Tinha vinte anos, uma das melhores idades para se ver o paraíso, e a primeira coisa que descobri foi que, no paraíso, Deus primava pelo absentismo. Não estava lá.

Não fui o único. Em verdade vos digo, tudo se passou numa noite de copos, antecâmara do paraíso, tanto mais que já era, nesse ano de 1975, na Luanda lagarta em metamorfose, minuciosamente difícil encontrar copos. Com argúcia científica e o faro dos predestinados, dois amigos meus tinham levado o velho Volkswagen negro de tasco clandestino em tasco clandestino, bebendo em bares sombrios os geladíssimos finos que abrem portas à fina areia da eternidade.

 A cidade de Luanda era um caos: paradisíaca e deliciosa ausência de lei a beijar os lábios da semi-anarquia. Os meus amigos a que, para salvaguarda da sua fortuna e bom nome, chamarei Simão e Mário, regressavam à Vila Alice, nosso bairro, paraíso instalado entre dois promontórios, albergando em simétrica oposição, dois figadais inimigos, o MPLA e a FNLA.

Conduzia o Simão e deixou o Mário na poética rua Eugénio de Castro. O Mário já abria o portão do quintal, quando, do nada, como só no paraíso acontece, viu emergir, à frente do velho carocha, metralhadora na mão, um jovem combatente, anjo ou semi-deus negro. “Komé Kamarada – disse ele, com os k todos, ao meu amigo Simão – tens de me levar no bairro Pica-Pau.” A metralhadora apontava, com celestial negligência, à cabeça do Simão, o que se deve entender mais como distracção do que como ameaça. Parlamentou-se. O Simão invocou mil perigos e as patrulhas na Estrada de Catete por onde teriam de passar. “E como é que o camarada se chama?”, rematou, com espírito conciliatório, a bonomia de um arcanjo bem bebido.

O camarada chamava-se Sempre Fixe, juvenilíssimo rosto resplandecente e suado, numa exaltação de quem acabou ler de uma assentada as incendiadas páginas do “Marriage of Heaven and Hell”, de William Blake. Por outras palavras, uma ganza como a minha mãe, Alice Fonseca, nunca me viu.

Já o solidário Mário voltara ao carro. Entrou para o banco traseiro, Sempre Fixe no da frente, metralhadora apontada ao condutor. E arrancam, quase três amigos, como se se conhecessem há 500 anos. “Komé Kamarada, vira só então a metralhadora para lá, pode ser?” Sempre Fixe, com calma seráfica, mete o dedo no cano e carrega no gatilho. “Não tem bala, isso não dispara já. Vamos no Pica-Pau buscar munição.”

E eis, ao longe, a primeira patrulha. “kamarada, acelera, então, não pára, não pára.” Pé no acelerador, o Simão passa pela patrulha portuguesa na 7ª esquadra, numa bisga olímpica, jamaicana. Talvez não fosse, de tão negro, um carro, terão pensado os soldados portugueses, a remoer saudades e um apropriado je m’en fiche, se esta fosse uma crónica francesa.

Nem um tiro, embrenham-se na poeira do musseque e já estão no centro do Pica-Pau, o Sempre em Fixe a saltar do carro e recomendação de mil cuidados, que no paraíso os amigos são mesmo para as ocasiões: “Vai já, camarada, vai já, aqui é perigoso. Tem cuidado.”

O salvífico Volkswagen, a respirar heroísmo, voltou a passar sem parar pela patrulha portuguesa, ainda a esfregar os olhos e Simão regressa ao paraíso doméstico, com a amada a dizer-lhe: “Onde andaste? Houve aqui duas horas de tiroteio.” Só então o meu amigo percebeu onde é que Sempre Fixe esgotara as munições. E percebeu também que escaparia sempre, incólume, a todos os tiroteios. Como se um Messias lhe dissesse: “Em verdade te digo, estarás comigo no paraíso.”

Crónica publicada no Jornal de Negócios

Isto não é um prato de búzios

búzios

Não é Magritte quem quer, mas posso jurar-vos: um prato de búzios não é um prato de búzios. Aliás, só houve, em toda a história de humanidade, um prato de búzios. Comi esse prato de búzios em 1971, em Luanda.

Era a primeira vez que comia. Reparem, não é que alguma vez tenha passado fome. Fui alimentado por pais carinhosos que, à confiança, me deixavam sair à noite, desde os 15 anos, com dois amigos mais velhos, o Abílio e o Simão. Eu era a boca que eles levavam, a quem davam um fino gelado no Polana. Tinha é de mastigar um prego no prato, ou uma fatia de pão e presunto aquecidos no voracíssimo Baleizão. Eu era, portanto, alimentado em regime doméstico e em regime ambulatório. E era alimentado graciosamente. Tinha 17 anos e nunca pagara um angolar, cinquenta centavos que fosse, por uma travessa de camarões, uma perna de churrasco, o desfastio de um feijão com óleo de palma polvilhado a farinha de mandioca.

Naqueles tempos de guerra colonial, o Abílio era um refractário, o Simão um comando, isto para dizer as coisas de modo ameno, sem entrar em pormenores. Eles eram os melhores amigos e o que interessa é que me amavam como se eu fosse o maninho mais novo. Íamos de Volkswagen preto, de tasca luandina em tasca luandina. Bebíamos filosóficos copos de cerveja mais gelados do que o Pólo Norte, mais gelados mesmo do que duas páginas de Schopenhauer, se me perdoam a trivialidade.

A entrar eramos eclécticos: tanto entrávamos onde se cantasse o fado, como onde se dançasse um tangível e escrupuloso merengue. Tenho de confessar que uma noite me sentei inesquecivelmente. Jamais alguém se sentou como me sentei, quando me sentei ao lado de Elias diá Kimuezo, o cantor de “Ressurreição”. Se quisesse poderia descrever cada nervura do tampo da cadeira, a textura das calças pretas de terylene, a forma como o meu rabo, sem que eu lhe pudesse dar ordens, se deixou ficar meio suspenso, incapaz de se afundar na inútil cadeira. Elias era a voz, a formidável solidão da canção quimbunda nos ouvidos de um branco. Diá Kimuezo tinha um fino na mão, eu outro; falou comigo e era o mesmo único e indivisível fino que bebíamos às três da manhã, num bar da estrada de Catete.

Mas volto a meter a mão onde tenho de a meter: não gastei um angolar, cinquenta centavos que fosse. O Abílio e o Simão, com uma fraternidade bêbada, pagavam tudo, os bilhetes no estádio dos Coqueiros, a ululante liberdade das praias da Ilha, copos e copos, a educação do infante – a minha.

Aos 17 anos, de bandeira, como se fosse um glorioso ponta de lança, cai-me no pé o emprego absoluto. Das 7 às 13, num hospital, com não sei quantas fisioterapeutas e um salário de brinca na areia. O primeiro que recebi – ó Luanda de um raio – convidei os meus dois irmãos velhos e, do nada, como um big bang, na sofisticada cervejaria Amazonas, nasceu e proliferou o prato de búzios. Paguei. Ah, que bonito o dinheiro cristalino, a moeda tilintante. E era o único prato de búzios da história da humanidade. Nunca mais nenhum me saberá tanto a liberdade, amor e mar.

Amazonas _Luanda