Carta ao meu neto no seu primeiro Natal

Carlos, vais estrear-te, neste ano da graça de 2021, em Natáis. É bem possível que uma malta mais céptica, e um bocadinho para o retorcido, te venha dizer que o Natal é uma chuchadeira. Eu sou o teu avô e vou este ano para o meu 68º Natal – e ainda bem que não é o Natal 69, por assuntos e mujimbos que, por ora, ainda não vale a pena estar a mencionar-te. Ora, pela experiência de 68 Natáis quero dizer-te que não dês muita atenção aos cépticos e tenhas até um bocadinho de pena deles. O Natal é um caleidoscópio de emoções, se é que tu, aí atrás desse babete bem babadinho, sabes o que quero dizer. Já vais ver que o Natal é bom e vou começar pelos cheiros e sabores.

Abre-me essas narinas, Carlos, e cheira: a casa rescende a açúcar, não é? Fritam-se sonhos, e vais ver que na boca são parecidos com os que à noite te fazem rir em pleno sono, derrete-se chocolate, faz-se a calda para as fatias douradas, a que também se chamam rabanadas. A casa tresanda a aromas densos e cálidos. Vais dizer-me que, assim, lábios, dentes e língua já estão cheios de ciúmes do nariz e narinas. Ai, é?! Então prova. Leva à boca os pastéis de bacalhau, os rissóis, os rabinhos de polvo frito, deixa deslizar na língua o leite creme ou o arroz-doce, uma finíssima fatia de perú trinchado, um camarão a nadar em maionese.

E os olhos, Carlos! Anda pela casa uma agitação descomandada, uma histeria feliz, amarrota-se e estica-se papel de embrulho, cortam-se fitas, corre-se para apanhar as bolas e as estrelas de decoração do pinheirinho do pai Natal, atira-se alguém em vôo para não deixar cair ao chão um ai-meninojesus, um são josé ou um burrinho. Este ano, és tu o meninojesus do nosso presépio, eu o teu burrinho, a avó faz de rainha maga. A Rita e o Paulo, tua mãe e teu pai, são a tua sagrada família.

Ah, e perguntas tu, entre gói-gói-góis, então o Natal é uma festa religiosa? E lá venho eu, com os meus 68 Natáis, dizer-te que só é se tu quiseres, porque sendo-o a nada te obriga, embora seja de uma velha religião que se vivia em catacumbas que esta festa vem. E é por causa dessas catacumbas que o caleidoscópio do Natal, esse que te fez abrir as narinas, regalar a tua boca e iluminar os teus olhos lindos, faz passar um vento maravilhoso pela tua alma ou espírito ou mente, como lhe queiras chamar: é o vento da humanidade, da tremenda gentileza e da inenarrável boa-vontade que, nestes dias, parece inspirar quase toda a gente.

A ti, nessa cara tão redonda e de sorriso esplêndido, toda a gente te quer encher de beijos. Mas não te admires que neste dia do teu primeiro Natal, os beijos venham mais lambuzados e os abraços te sufoquem, e as festinhas na cabeça te ponham ainda mais carequinha. É neste dia que nos inunda a todos, como se fosse uma daquelas ondas da Nazaré, um impulso para gostar de toda a gente. O amor, essa coisinha tão rara, que vem encastrada em tão poucas conchas, avassala cada um de nós: apetece-nos abraçar os intratáveis vizinhos do lado, o carteiro, a senhora da pastelaria. O Presidente da República já não é novidade, que toda a gente o abraça todos os dias.

Sim, o amor ao outro, seja quem for o outro, por mais estrangeiro, por mais humilde ou por mais soberbo que seja o outro, é a herança desse culto das catacumbas, chamado cristianismo, que há 68 anos me adoça o palato e de que eu gostava que tu fosses fiel guardião por mais 100 anos. Não sei se virás ou não a ser cristão, eu já o fui e deixei de o ser, mas não renego o melhor que nessa religião de catacumbas bebi, o amor aos outros, conhecidos ou desconhecidos, amigos íntimos ou mesmo inimigos a quem nunca quererás que aconteça o mal. Guarda e preserva essa pequenina jóia de humanidade.

Terás, agora, a ajudar-te a tua avó, linda, de amena vaidade por ser tão bonita, sempre inquieta e de, ainda hoje, juvenil insatisfação. E terás, a levarem-te ao colo, o teu pai e a tua mãe, o Paulo que é um génio de musicais semi silêncios, mergulhado nos mistérios da intangível informática, a tua mãe, minha tão querida Rita, valente, afirmativa, sentimental quando larga lágrimas como um comovido lençol. Bem os vi, nestes meses que já levas em gloriosa vida, amarem-te com o mais puro, o mais lindamente animal e desinteressado amor do mundo.

E eu sou o teu avô, remansadamente feliz de ter esta família, deliciado a ver-te, meninojesus de baby grow, no meu presépio. Que o amor deste primeiro Natal esteja sempre contigo.

A guerra e a paz de um editor em 2021

Num tempo em que se voltaram a queimar, destruir e proibir livros, a Guerra e Paz editores fez, em 2021, um dos seus melhores anos a ler, acarinhar e publicar novos títulos. Eu sou o editor e queria contar-vos tudo ao ouvido. E desculpem se tomo a liberdade de tais e indevidas intimidades. Querem que eu ponha a máscara? Eu ponho a máscara!

Deixem-me falar já de alegrias: a minha maior alegria foi publicar, este ano, o livro Entre a Lua, o Caos e o Silêncio: a Flor, a mais completa e livre Antologia de Poesia Angolana que já se fez, e que a minha querida Irene Guerra Marques e o meu amigo Carlos Ferreira (Cassé) organizaram, soberanos e generosos: um deslumbramento pintado às três faces do miolo. E que bom que o dstgroup nos tenha apoiado, mostrando que as empresas têm um papel no enriquecimento do imaginário dos portugueses.

A poesia, este ano, fez-me estremecer. A Ana Paula Jardim foi de Roupão Azul ganhar o Prémio Glória de Sant’Anna, enquanto a Eugénia de Vasconcellos, com o seu Livro da Perfeita Alegria, nos convida a um sobressaltado recolhimento, quase monástico, a cantar vésperas, culminando na fulgurante pulsão lírica de O Recreio dos Fâmulos, de Jorge Melícias. Sim, estremeci. De Angola, o Manuel Rui mandou-me um livro bilingue, Do Rio ao Mar, com traços rupestres do Ondjaki – que coisinha linda esse livro de amor à língua portuguesa, que vai e vem da boca poética portuguesa à boca poética angolana. Juntou-se-lhe a bela crise da Meaidadee de amizade, de outro angolano, o Carlos Ferreira, Cassé.

Sim, eu fiz-me ao mar. Fui com Pêro Vaz de Caminha, tanto mar, e vim de lá com a Carta do Achamento do Brasil, que o Onésimo Teotónio Almeida prefaciou, fazendo um volumezinho que é só de assombro e maravilha: nunca olhos humanos se perderam, surpreendidos, noutros olhos humanos como neste livro de inocência se perdem: descoberta, que descobrimento! Viajaram comigo, neste livro, a Câmara de Santarém e a querida Joana Emídio do jornal O Mirante. Obrigado. Ah, psiu, psiu… deixem-me dizer que a Carta é Livro Branco e da mesma colecção, branquinha, é o nosso Cântico dos Cânticos que, da inenarrável e inesquecível Agustina, tem um prefácio com um título que nos faz conjecturar e corar: Um tijolo quente na cama. E faço uma pausa para o irem a correr ler.

Agora, vamos lá ver de quem foram, em 2021, os melhores peidos – oh, desculpem, que vergonha… Juro que foram, vindos do século xviii, os de Jonathan Swift. Os seus Benefícios de Dar Peidos aromatizaram a colecção Livros Negros, a que se assoam também o escandalosamente educativo e libertário Manual de Civilidade para Meninas e o sufocante Solilóquio do Rei Leopoldo, de Mark Twain.

Já conhecem os Clássicos Guerra e Paz. Com a Clepsydra, que tem um bilhete inédito de Camilo Pessanha, que o Ilídio Vasco, organizador, desenterrou, são agora meia centena, quase todos no Plano Nacional de Leitura, com aquelas capas de multiplicação de ícones à Andy Warhol: a novidade é que os clássicos se modernizaram e já sentaram à sua mesa o F. Scott Fitzgerald, esse leviano príncipe da depressão e da turbulência: Terna é a Noite, livro de minha juvenil paixão, mas também O Grande Gatsby e O Estranho Caso de Benjamin Button.

Vamos ler? Vamos Ler! Um Cânone para o Leitor Relutante foi o desafio que o nosso veteraníssimo, sábio e polémico ensaísta e poeta Eugénio Lisboa lançou a todos os portugueses: e para que menu soberbo nos convida chamando ao repasto, um a um, os 50 romances portugueses que podem fazer de um refractário um leitor. O livro de Eugénio Lisboa é dos Livros Vermelhos, como vermelho é o combativo De Raça, da «raçada» e destemida Rachel Khan, e tão mesmissimamente vermelho é ainda o Autos-de-fé, a Arte de Destruir Livros, áspera denúncia das novas inquisições, denúncia em que este editor da Guerra e Paz é solidário e acompanha um Michel Onfray, que aqui nos pede que sempre estejamos do lado da razão.

E eu dou comigo a pensar que começa a fazer medo este activismo cancelatório, que despede pessoas como Salazar despedia professores nas universidades e nas escolas, só pelo livre pensamento a que se atrevessem. Confesso: militaremos contra o obscurantismo racializado, de género, identitarista. Como?
Publicando livros como publicámos o Woke, da delirante Titania McGrath, sátira arrasadora, ou como publicámos o exemplar, didáctico e racionalíssimo Teorias Cínicas, de Helen Pluckrose e James Lindsay. Não passarão, os passarões! Mas também revisitando a História através dos Atlas Históricos, colecção a que acrescentámos três novos títulos, sobre o Império Romano, o Médio Oriente e os velhos tão novos Estados Unidos da América. Revistámos também Fernando Pessoa, e o seu olhar sobre a História do seu tempo, cercada pelo totalitarismo fascista e comunista, num livro a que chamei Que Salazar era o Salazar de Fernando Pessoa?

Ia dizer que começámos este ano a produção sistemática de ebooks e de audiobooks, na assunção de que são inescapáveis formas complementares do livro físico. Destacou-se a recepção ao Assim Nasceu uma Língua, de Fernando Venâncio, que com ciência e razão tantos nos ensina sobre a história da língua portuguesa. O livro do professor Venâncio tem agora um complemento, a ousada História do Português desde o Big Bang, assinado pelo linguista Marco Neves.

E continuo a falar-vos ao ouvido, agora da nova colecção, Histórias de Liderançabiografias de gestores e gente da indústria, parceria com a Fundação Amélia de Mello e a Nova School of Business, ou da velha parceria com a Sociedade Portuguesa de Autores, com o fio da memória, o último dedicado a José Pacheco Pereira. Mas falemos de romances, d’O Sonho de Amadeo, do brasileiro Leonardo Costa de Oliveira, que ganhou o Prémio UCCLA, e de Desaparecida, de Ricardo Lemos, vencedor do Prémio Lions. Quem ganhará prémios, estou certo, é o angolano Boaventura Cardoso com o seu épico Margens e Travessias. E nos corações dos leitores ganharão um lugar especial o Desamor, de Nuno Ferrão, romance que o meu amigo Dinis Machado leria com prazer, e O Salteador da Infância Perdida, digressão romanesca de José Jorge Letria à sua mais recôndita memória.

Pode a imaginação casar-se com a razão? Pode e termino com dois livros de triunfo da ciência e do pensamento: voltou a A Estrutura das Revoluções Científicas, clássico de Thomas S. Kuhn, na edição comemorativa dos seus 50 anos, e estreámo-nos com um cientista sueco, Ulf Danielsson, de quem publicámos O Mundo Como Ele É, com prefácio de Carlos Fiolhais.

Com a publicação de 90 novos títulos, resistimos ao segundo ano de pandemia, ao fecho injustificável das livrarias, que destruiu, a editores e livrarias, o primeiro trimestre de 2020, à bizarra alteração da lei do preço fixo, em que 90 % dos agentes que fazem, amam e põem oxigénio na boca do livro não foram sequer ouvidos.

Esta é, queridos leitores, a Guerra e Paz. Já temos a cabeça, corpo e alma, em 2022: prometemos começar em Março uma nova colecção, os romances de guerra e paz e uma nova e exigentíssima colecção de não-ficção, que conjugue filosofia, história, economia e ciência. Do Antigo Egipto à Guerra Fria, passando pelo Holocausto, e mesmo pelos Descobrimentos, nada do que é humano nos será estranho. Feliz Ano.
Manuel S. Fonseca

Estão abertas as candidaturas ao Prémio Literário Lions 2022

A Associação Internacional de Lions Clubes – Distrito Múltiplo 115, Fundação Lions de Portugal, e a Guerra e Paz Editores têm a honra de anunciar a abertura das candidaturas ao Prémio Nacional de Literatura Lions de Portugal de 2022, prémio que tem um valor monetário de dois mil e quinhentos euros, atribuído ao autor da obra premiada,

As candidaturas serão recebidas por email (e só por email), numa forma muito simplificada, que facilita a participação dos autores. As condições a que devem submeter-se as candidaturas estão expressas no Regulamento que pode encontrar nas páginas online do Lions de Portugal e no site da Guerra e Paz editores.

As candidaturas abrem no dia 15 de Dezembro do corrente ano e encerram às 23h59 do dia 25 Janeiro de 2022.

A Guerra e Paz editores publicará a obra vencedora, tal como publicou já o romance Vidas por Fios, de José Martinho Gaspar, vencedor da edição de 2019, Os Dentes do Tejo, de Evelina Gaspar, romance vencedor do Prémio de 2020 e o romance vencedor de 2021, A Desaparecida, de Ricardo Lemos.

O Prémio Nacional de Literatura Lions de Portugal foi criado em 2011 e destina-se a premiar a melhor novela ou romance inéditos de autores portugueses, tanto de autores estreantes como de autores já com obra publicada.

Concebido para servir a causa da leitura e para servir os autores e a literatura portuguesa, este é um prémio que se enquadra nos objectivos de ligação e divulgação da cultura que norteiam, também, a acção do Lions de Portugal.

O regulamento do Prémio Prémio Nacional de Literatura Lions 2022 pode ser consultado aqui.

Não é entrevista, é conversa

O programa, um daqueles lugares onde se conversa muito bem, chama-se Encontros Imediatos. É a casa do João Gobern e da Margarida Pinto Correio. Passei lá duas horas. A falar e a ouvir música. Fiquei deslumbrado e, apesar de estar com uma voz cavernosa, pus-me a falar que ninguém me calava. Esta é a primeira parte da conversa.

https://www.rtp.pt/play/p4311/e582148/encontros-imediatos

Depois saímos, demos uma volta, e atirámo-nos à segunda parte.

https://www.rtp.pt/play/p4311/encontros-imediatos