
Eis o que é imperdoável na catequese contemporânea, a rasteira miséria da linguagem. A multiculturalistas, identitários, trans e outros bandos falta-lhes o prazer dos cambiantes, a argúcia da elipse, a liberdade polissémica da palavra.
Eu, por exemplo, e para dar um mau exemplo. Eu fui um miúdo católico. Vejam, vejam-me, ali vou eu com 10 anos e já me ajoelho no confessionário da Missão de São Paulo, em Luanda; do outro lado, na semiobscuridade, o padre Miguel ou o padre Luís, dois capuchinhos italianos. E começo: “Perdoe-me, senhor padre, porque pequei!” E o meu bom padre: “Então, meu figlio, qué fizeste?” E ali estou eu, pecador, a murmurar, “Invoquei o nome de Deus em vão”.
Que beleza de pecado! Apetece repetir mil vezes o verbo e ligá-lo a esse adjectivo que é sinónimo de frívolo ou fútil. Eis o que é o pecado: “invocar”, que tanto pode ser “implorar” e “suplicar”, como “chamar à discussão”, o nome de Deus (não o seu rosto ou corpo, mas tão só o seu nome) “em vão”, ou seja sem fundamento, sem realidade substancial, de forma jactante ou fátua.
Acho que foi outro católico, o escritor G. K. Chesterton, que, num arrebatamento épico, disse: “Há alguma coisa de errado com um homem que não queira quebrar pelo menos um dos Dez Mandamentos!” Conscientes desse indisputável ardor humano, já os meus padres capuchinhos me perguntam: “E outros pecatos, minino?” E eu confesso: “Pequei, meu padre, por palavras, pensamentos, actos e omissões!” Há um brilho vaidoso nesta enumeração. Reconheça-se, “omissões” é o gran finale: com esse termo, um miúdo de 10 anos proclama, ao ouvido do seu padre, a dissipação da memória, o triunfo do oblívio, da postergação e do truncamento.
A catequese católica era rica no léxico, oferecendo vias, umas rápidas, outras subtis e mesmo irónicas, de plurissignificação. O mundo do pecado abria-se, vasto: um católico tem sempre impudentes planícies de palavras e pensamentos para vaguear e pequenas ruelas teologais, patrísticas e escolásticas para recuos e clandestinidades a que, actos ou omissões, o obriguem a recorrer.
Quando penso nisto, confesso, chego a ser tentado a reconverter-me agora ao catolicismo, como se converteram Graham Greene ou Paul Verlaine, Svetlana, a filha de Estaline, Afonso I, esclavagista rei do Congo, o impudente Oscar Wilde, e dizem que mesmo Hemingway, por influência da segunda mulher, Pauline. Mas também está bem viver-se no fio da navalha, como o fazia a fonte de escândalo e pecado que era a actriz Mae West. Natalícia, disse um dia: “Pai Natal, querido, venha, venha, e enfeite a minha árvore.” E nem sei se estou a traduzir bem, se foi mesmo árvore ou arbusto que Mae disse.
Não era católica, mas ia muitas vezes à missa com o seu catolicíssimo manager, o irlandês Jim Timony, beato de alto coturno e missa diária. Mae West despejava, aliás, toneladas do que ganhava nas obras sociais católicas. Num dos seus filmes, She Done Him Wrong, Mae é cantora num cabaret de má fama. Um agente federal undercover, Cary Grant, prende-a e quer pôr-lhe algemas. Ela olha desdenhosa e diz: “Não nasci com essas coisas.” “Se tivesse nascido com elas, muitos homens – diz Grant – teriam estado a salvo.” E logo Mae West: “Não sei, as mãos não são tudo o que tenho.” Impressionado com a promiscuidade dela, Grant ainda lhe diz: “Mas nunca encontrou um homem que a fizesse feliz?” Sincera, Mae responde: “Oh, montes de vezes!”
Sem o pecado, sem a prodigiosa, dupla e dúplice linguagem cristã, sem a polissemia dessa velha catequese, nunca teríamos tido este humor redentor. Eis o que reprovo aos secos e literais puritanos contemporâneos.