Eu pecador me confesso

Feliz 2023

Eis o que é imperdoável na catequese contemporânea, a rasteira miséria da linguagem. A multiculturalistas, identitários, trans e outros bandos falta-lhes o prazer dos cambiantes, a argúcia da elipse, a liberdade polissémica da palavra.

Eu, por exemplo, e para dar um mau exemplo. Eu fui um miúdo católico. Vejam, vejam-me, ali vou eu com 10 anos e já me ajoelho no confessionário da Missão de São Paulo, em Luanda; do outro lado, na semiobscuridade, o padre Miguel ou o padre Luís, dois capuchinhos italianos. E começo: “Perdoe-me, senhor padre, porque pequei!” E o meu bom padre: “Então, meu figlio, qué fizeste?” E ali estou eu, pecador, a murmurar, “Invoquei o nome de Deus em vão”.

Que beleza de pecado! Apetece repetir mil vezes o verbo e ligá-lo a esse adjectivo que é sinónimo de frívolo ou fútil. Eis o que é o pecado: “invocar”, que tanto pode ser “implorar” e “suplicar”, como “chamar à discussão”, o nome de Deus (não o seu rosto ou corpo, mas tão só o seu nome) “em vão”, ou seja sem fundamento, sem realidade substancial, de forma jactante ou fátua.

Acho que foi outro católico, o escritor G. K. Chesterton, que, num arrebatamento épico, disse: “Há alguma coisa de errado com um homem que não queira quebrar pelo menos um dos Dez Mandamentos!” Conscientes desse indisputável ardor humano, já os meus padres capuchinhos me perguntam: “E outros pecatos, minino?” E eu confesso: “Pequei, meu padre, por palavras, pensamentos, actos e omissões!” Há um brilho vaidoso nesta enumeração. Reconheça-se, “omissões” é o gran finale: com esse termo, um miúdo de 10 anos proclama, ao ouvido do seu padre, a dissipação da memória, o triunfo do oblívio, da postergação e do truncamento.

A catequese católica era rica no léxico, oferecendo vias, umas rápidas, outras subtis e mesmo irónicas, de plurissignificação. O mundo do pecado abria-se, vasto: um católico tem sempre impudentes planícies de palavras e pensamentos para vaguear e pequenas ruelas teologais, patrísticas e escolásticas para recuos e clandestinidades a que, actos ou omissões, o obriguem a recorrer.

Quando penso nisto, confesso, chego a ser tentado a reconverter-me agora ao catolicismo, como se converteram Graham Greene ou Paul Verlaine, Svetlana, a filha de Estaline, Afonso I, esclavagista rei do Congo, o impudente Oscar Wilde, e dizem que mesmo Hemingway, por influência da segunda mulher, Pauline. Mas também está bem viver-se no fio da navalha, como o fazia a fonte de escândalo e pecado que era a actriz Mae West. Natalícia, disse um dia: “Pai Natal, querido, venha, venha, e enfeite a minha árvore.” E nem sei se estou a traduzir bem, se foi mesmo árvore ou arbusto que Mae disse.

Não era católica, mas ia muitas vezes à missa com o seu catolicíssimo manager, o irlandês Jim Timony, beato de alto coturno e missa diária. Mae West despejava, aliás, toneladas do que ganhava nas obras sociais católicas. Num dos seus filmes, She Done Him Wrong, Mae é cantora num cabaret de má fama. Um agente federal undercover, Cary Grant, prende-a e quer pôr-lhe algemas. Ela olha desdenhosa e diz: “Não nasci com essas coisas.” “Se tivesse nascido com elas, muitos homens – diz Grant – teriam estado a salvo.” E logo Mae West: “Não sei, as mãos não são tudo o que tenho.” Impressionado com a promiscuidade dela, Grant ainda lhe diz: “Mas nunca encontrou um homem que a fizesse feliz?” Sincera, Mae responde: “Oh, montes de vezes!

Sem o pecado, sem a prodigiosa, dupla e dúplice linguagem cristã, sem a polissemia dessa velha catequese, nunca teríamos tido este humor redentor. Eis o que reprovo aos secos e literais puritanos contemporâneos.

Pelé

Na morte de Pelé nem uma lágrima. Um sorriso, um tremor apenas. Rola-me pela face um grão de nostalgia, julgo que a nostalgia de 1965, se é que lhe consigo dar uma data. Havia um cineminha num pequeno clube de Luanda, o Vila Clotilde, o Vilinha. Ou seja, havia uma tela e projectavam-se lá filmes. E, antes dos filmes, nessa Angola colonial, que nunca soube o que era televisão, exibiam-se imagens de actualidades. Eis o que vi, um URSS-Brasil. E não juro que tenha sido o que, nesse ano, se jogou na pátria dos sovietes, se o que se jogou no Maracanã.

Sei que era o “futebol científico” contra a imparável rebeldia do samba e bossa nova. E olhem, Pelé está à entrada do meio campo da URSS e metem-lhe a bola. Cai-lhe pela direita um russo e Pelé passa-lhe a bola em arco sobre a cabeça. Mas logo, pela esquerda, lhe tomba outro russo em cima. Sem deixar cair a bola que vem do primeiro arco, Pelé faz novo arco, em sentido contrário – ualálá – e o russo passa, perdido, como um comboio descarrilado, sem saber onde vai parar.

Esses dois movimentos estão gravados na minha cabeça nostálgica como dois arcos de uma capela perfeita. Já me esqueci de certos romances de Faulkner, de alguns contos de Borges, de um ou outro filme de Hawks. Do que fez o pé divino de Pelé, nessa jogada inútil, desinteressada, de pura ars gratia artis, há em mim um menino exaltado, eufórico, guloso, que nunca se esquecerá.

Nunca vi Pelé num estádio – ao contrário desse príncipe chamado Eusébio – mas soube, nessa matinée cheia de miúdos e miúdas de 12, 13 e 14 anos, que estava, num cinema de Luanda, a ver um rei.

Nem uma lágrima hoje, rei Pelé. Um grão de nostalgia, sim. A mais bela nostalgia, a nostalgia de 1965.

Sua Majestade, até já.

Tenho tanta sorte

Podia ser a entrada do diário de um editor em balanço, no dia 26 de Dezembro de 2022. Mas é só, vá lá, uma forma de agradecer a protecção a meia-dúzia de deuses e deusas, ao Menino Jesus, a Nzambi, Kalunga e Iemanjá, e sobretudo uma forma de agradecer a quem, sem ressentimento, sem espírito vindicativo, tem um desprendido gosto em conversar sobre livros e sobre a vida.

As apostas de 2023

As minhas apostas de 2023: tenho tanta sorte!

Ainda nem acredito que eu possa ter tanta sorte. Vejam bem, Jorge de Sena passa a morar na Guerra e Paz editores. Vou ter toda a ficção do autor de Sinais de Fogo e a primeira opção para a não-ficção, os retumbantes ensaios de Sena.

Começo, em Março, com Andanças do Demónio e O Físico Prodigioso. Ainda em Março, os leitores da Guerra e Paz vão poder ler o ensaio Amor, uma preciosidade enciclopédia. Em Abril, a Guerra e Paz publica uma nova edição de O Príncipe, de Maquiavel, acompanhada pelo ensaio Maquiavel, que Sena dedicou a esse singular filósofo e diplomata. As Novas Andanças do Demónio chegam em Abril, e em Junho, Literatura Portuguesa, fulgurante viagem pela nossa literatura, das origens a meados dos anos 70, apresentação que Sena escreveu para a Enciclopédia Britânica, e que todos devíamos ler . E nem vos falo do que chegará no segundo semestre de 2023: são sinais e são de fogo.

Ah, a minha sorte não pára! Em 2023, terei oito novos títulos na colecção Os Livros Não se Rendem. De Isaiah Berlin, autor do inspirado O Ouriço e a Raposa, duas novas preciosidades: Esperança e Medo: Dois Conceitos de Liberdade e História das Ideias, A Busca do Ideal. E que alegria poder publicar um livro que saiu das nossas livrarias há quase um quarto de século: do filósofo Allan Bloom, o livro que adivinhou o que aí vinha com o comunitarismo identitário, A Destruição do Espírito Americano, The Closing of the American Mind. Em Abril, do mais anti-autoritário filósofo e historiador das ciências, Thomas S. Khun, um livro póstumo, A Pluralidade dos Mundos, Para uma Teoria Evolucionista do Desenvolvimento Científico, que a University of Chicago Press acaba de lançar, e de que a Guerra e Paz foi a primeira editora no mundo a adquirir direitos de tradução.

Meu Deus, e vou ter Atlas, novos Atlas: o Atlas Histórico do Mediterrâneo, de Florian Louis, o Atlas da Primeira Guerra Mundial, de Yves Buffeaut, e uma aposta portuguesa, o Atlas Histórico da Escrita, da autoria do linguista Marco Neves. Também o linguista Fernando Venâncio, meu estremecido autor, me vai dar um novo livro, um mimo estético, que leva por título Os 70 Estilos da Língua Portuguesa.

E agora deixem-me falar de romances. Estava a faltar-me um thriller: aqui está ele, A Casa do Outro Lado do Lago, de Riley Sager, que foi um instantâneo New York Times bestseller. E, coisinhas completamente diferentes, tenho uma bela história de amor e infância, A Vida Mortal e Imortal de Rapariga de Milão, de Domenico Starnone (há rumores que pode ser ele a verdadeira Elena Ferrante), e tenho um ambicioso romance do mais português dos autores brasileiros, o meu amigo Paulo Nogueira, que publica Era Uma Vez Tudo, polifónico puzzle de escrita com dez personagens principais. Mais e muito estranho, coisa do outro mundo, vinda da Coreia, a insólita auto-ficção de Baek Se Hee, Quero Morrer Mas Também Quero Comer Ttokbokki.

Teremos novos livros de José Jorge Letria, em particular as entrevistas de vida e obra, na colecção “o fio da memória”, parceria com a Sociedade de Autores (SPA): reeditaremos mesmo os esgotados Eduardo Lourenço e Urbano Tavares Rodrigues. Ao aplauso à SPA, junto um minuto de sincero aplauso a outros dos nossos dilectos parceiros: devemos à Fundação Amélia de Mello o alto patrocínio à colecção Histórias de Liderança, singular homenagem a empresários e gestores, em colaboração com a Nova School of Business and Economics: é economia e é inteligente; e devemos à Mota Gestão e Participações e à Fundação Manuel António da Mota, a magnífica acção mecenática que permitiu criar a colecção Os Livros Não se Rendem e oferecer quase 6 mil exemplares à rede nacional de bibliotecas públicas. Obrigado, também, aos meus camaradas da Cofina: há novas batalhas à espera.

Tive a sorte de ter autores premiados em 2022, Eugénia de Vasconcellos ganhou a Menção Honrosa no Prémio Ruy Belo com o seu Livro da Perfeita Alegria e Boaventura Cardoso recebeu o Prémio dstangola/Camões pelo romance Margens e Travessias. E prémio em 2023 é ter a sorte de publicar livros sobe a História das navegações portuguesas. Os polémicos, e agora tão abominados Descobrimentos, vão ser redimidos, como a grandiosa aventura humana que lhes deu corpo bem merece, com a bênção da Guerra e Paz : já em Janeiro, Os Descobrimentos e Outros Temas Politicamente Incorrectos, livro corajoso, frontal e fundamentado de João Pedro Marques; depois, na rentrée de Setembro, de João Paulo Oliveira e Costa, A Revolução dos Descobrimentos, com uma visão multifacetada e ecuménica do que foi, definitivamente, uma verdadeira revolução.

Ecos ainda do Império, Manuel S. Fonseca (ou seja, “moi”, eu mesmo), publicarei, em Fevereiro, Crónica de África, viagem em três partes – infância, adolescência, independência – pela minha encantada, melosa, terna e exaltante (digo eu) experiência angolana: tanto me vão poder ver a saltar de ramo para ramo de uma mangueira, como a rastejar debaixo de tiroteio à porta do apartamento de Savimbi, no Terreiro do Pó, no Lobito.

E, no entanto, a verdadeira loucura é esta: do mais importante historiador do fascismo, o italiano Emilio Gentile, vou editar uma monumental História do Fascismo, livro de 1300 páginas, agora publicado em Itália, e de que Guerra e Paz foi a primeira editora a adquirir direitos internacionais. Olhem a minha sorte, pode ser que leve a editora à insolvência, mas será uma morte em glória! With a bang, not a whimper!

Morra o medo. Viva 2023.

Manuel S. Fonseca, editor

O delicado orgasmo de 1933   

Há uma remota probabilidade dos leitores e leitoras mais velhos se recordarem ainda desse desaparecido artefacto que dava pelo nome de orgasmo. Com o #metoo e a parafernália linguística woke, a sexualidade mudou de lençóis, suor e cama, e já ninguém sussurra em êxtase o nome de Hedy Lamarr.

E, não obstante, foi dela o primeiro orgasmo no cinema, que era ainda mudo. O filme, Ecstasy, era checo e de 1933, Hedy era finamente vienense, e tinha a beleza que nos faz pensar que talvez tenha mesmo existido o paraíso. No filme, Hedy era mal casada. Vemo-la vir matar o incontido vulcão insatisfeito, fogo que dentro dela se amotina, nas águas de um recôndito lago. Quer, lindamente nua, afogar-se. Salva-a o braço vigoroso de um engenheiro. Que depressa lhe dá mais do que um braço. E já estão na cama, o que o cinema, então, mal mostra.

É pela transcendente cara de Hedy que tudo vemos. Em grandes planos, pelo movimento dos olhos, da sôfrega boca, pelo ritmo das belas narinas de mulher, esse filme mudo de 1933 sugere, diria mesmo que mostra com gosto e escândalo, cá em cima, no inflamado rosto de Hedy, a explosão que não se podia ao tempo mostrar lá em baixo. E a seguir, reabertos os olhos, a plenitude do fumo de um cigarro é a coda que fecha essa sinfonia de exsudado deleite.

A vida de Hedy honrou o esplendor dessa convulsão de 1933. Casou mal e desonradamente com um milionário traficante de armas que, depois de ter comprado quase todas as cópias do filme, fruste tentativa de extinção daquele sublime orgasmo, levava Hedy a jantar, primeiro com Mussolini, que tinha uma secreta cópia do filme orgástico, depois com Adolf Hitler. Escuso de dizer que Hedy, a judia Hedy Lamarr, não sem antes ter pensado matar os dois facínoras fascistas, fugiu. Rigorosamente vigiada pelo escroque milionário e todo-poderoso, há rumores de que se escondeu dele num bordel de Paris. Chegou clandestina e anti-fascista a Londres, onde Hollywood a raptou. Mais do que derreter-se com a torrencial Dalila que ela foi no Sansão e Dalila do velho Cecil B. DeMille, esta crónica quer cantar a requintada e secreta inteligência com que Hedy brindou a América e da qual hoje somos ignorantes beneficiários.

Nem falo da asa que desenhou, após estudar barbatanas de peixes e asas de pássaros, para que Howard Hughes pudesse ter um avião mais rápido. Falo do sistema de comunicação. Por ter ouvido a Hitler referências a radares e rastreamentos de torpedos, com um pianista seu amigo, George Antheil, Hedy Lamarr, que tinha intuição e veia de cientista, imaginou um sistema secreto de comunicação. Desenvolveu-o com Antheil ao piano, criando um sinal de salto de frequência das ondas de rádio que impediria os nazis de rastrear os torpedos americanos, evitando assim que os radares do odioso Hitler pudessem bloqueá-los.

É verdade que a utilidade da invenção patenteada de Hedy não teve aplicação na II Guerra, mas a descoberta teve posterior aplicação prática e anda connosco, a roçar-se pelo nosso peito, enfiada no nosso bolso, nas malas das senhoras, e tantas vezes a apertamos com enlevo na mão.

O sinal de salto de frequência inventado por Hedy, não só enganaria os radares nazis, depois os radares soviéticos da Guerra Fria, como veio a ser imprescindível para os actuais wi-fi, bluetooth e gps. A invenção de Hedy é o esqueleto da tecnologia que suporta a nossa democracia digital. Não sabemos, mas andamos com Hedy Lamarr na mão, afloramo-la com a ponta do dedo. Em casa ou na rua, anda sempre connosco o delicado orgasmo de 1933.

Ainda tenho as pernas bonitas?

Sem a obstinada ajuda da insónia, teria Marcel Proust escrito os sete volumes do seu Em Busca do Tempo Perdido? E teríamos a culpa e redenção do Lord Jim, o horror do Coração das Trevas se o polaco Joseph Conrad não tivesse as insónias que tinha? E de que cabeça, senão de uma cabeça insone como era a de Charles Dickens, teriam irrompido personagens como o Oliver e o seu fiel Jack Dawkins, ou o desumano e avarento Ebenezer Scrooge, que renasce, pão-duro, a cada Natal.

Diz-me como dormes, dir-te-ei como escreves! Quase juro que o sono ou a falta dele é a musa inspiradora dos grandes criadores. Eu disse musa e devia ter dito afrodisíaco. Balzac levantava-se à uma da manhã, o que explica a sua obra prolífica. Às 4, levanta-se Murakami, e levantava-se a inquieta Sylvia Plath. Com a pontualidade de um relógio de cuco, o filósofo alemão Kant levantava-se às 5. Já Nabokov, acordado por Lolitas, tal qual Edith Wharton e Flannery O’Connor, levantava-se às 6 da manhã. Joyce às 10, Scott Fitzgerald às 11, Charles Bukowski, às 12, são exemplos de despertar tardio.

Em insidiosa concubinagem com o sono, Joyce escrevia na cama, como aos domingos Nabokov. Domingos ou dias úteis, Franz Kafka conta que, ao dormir, uma dor vertical subia-lhe em flecha da cana do nariz ao crânio, como se uma ferida lhe rasgasse a fronte, e já nada mais podia fazer que não fosse perseguir a dor que o cortava em pedaços: nessa dor estavam as suas histórias, se não as agarrasse durante a noite, desvaneciam-se de dia.

Na cama, no remanso da noite, e foi Stephen King, de quem nem sequer sou leitor, que muito bem o disse, aprende-se a ficar estático e a encorajar a mente a libertar-se do bulício racional do dia. Ouvem-se então, digo eu, o farfalhar das paredes a libertarem o calor acumulado do dia, os canos da água a resfolegar, o sussurro dos fantasmas nos móveis (a que António Lobo Antunes, deu voz, magistral, em O Tamanho do Mundo), o latido de um cão longínquo, um carro a gemer solidão na noite, o primeiro avião, vindo talvez de Casablanca, que voa sobre a Praça de Espanha antes que o primeiro raio de sol acorde Lisboa.

E já estou aqui a querer louvar a doçura do sono, mais do que a subversiva insónia. Mesmo um grande poeta como era W. B. Yeats cantou o regalado deleite que é o limbo em que caímos, quando estamos simultaneamente a dormir e acordados. Chamou-lhe transe hipnótico. E, se quisermos ser justos, o que seria da literatura sem o sono conjugal?

Na gentil escuridão da noite começa a subtil batalha pela cama dividida, a perna que força outra perna – ainda tenho as pernas bonitas, perguntas, e se digo sim, dizes: mas nem sequer olhaste, e eu, estamos a dormir, queres que acenda a luz? – a redonda nádega que vem invadir o meu lado e que a distraída mão logo assedia, prova que todos os conflitos fronteiriços começam na cama, o “vira-te para o outro lado” quando o ressono estremece o quarto, os sonhos de que acordamos em êxtase, mesmo se, que saiba, nunca tenha tido o privilégio do pequeno milagre que é o teu riso no meio de um sonho.

Bem sei que a literatura gosta de cultivar uma transgressiva imagem neurótica, alcoólica, excessiva e impulsiva, mas não é menos literário saber que Salman Rushdie, que já leva quatro casamentos, se levanta e vai, ainda de pijama, logo escrever: para fazer sair “esse pequeno volume de energia criativa” que o sono conjugal alimentou. Ainda assim, que ninguém despreze o aviso de Virginia Woolf: “Ninguém pode pensar bem, amar bem, dormir bem, se não tiver jantado bem.”

Dança, Messi, dança!

Esta é uma das minhas bicas curtas, publicadas no CM. Soube-me a mel. Ou de como cantar Messi em 640 caracteres.

Vejam, Messi está no meio-campo e anda por ali uma bola perdida. Os pés de Messi são flippers a beijar o esférico, taka-taka, e o argentino desata a correr. Persegue-o o croata Josko, a tentar que ele não entre na área. Messi pára, Josko que remédio. Josko está de máscara, como se num baile em Veneza, e Messi dança com ele. Messi dança-o primeiro para trás, logo um passo de valsa em frente. E já estão, como funâmbulos sobre a linha final, o gigantesco Josko, perdido, rendido, só a querer admirar os pés alados de Messi.

O golo? Messi deu-o a Alvarez. Só quis correr, dançar, beijar a bola, os preliminares da arte que se chama futebol.

Um grande gato feliz

Eu tinha prometido. Cumpro. Esta é uma crónica dedicada ao realizador, produtor, cinéfilo António da Cunha Telles. Publiquei-a no Weekend, do Jornal de Negócios. A foto, que reproduzo com a devida vénia é de Rui Gaudêncio.

Um hedonista

O António era como dois ou três cisnes que deslizam mansamente. Estou a falar do António da Cunha Telles, que deslizará mansamente no paraíso desde a semana passada, e a quem eu falhei, nessa indubitável canalhice que é a obsessão quotidiana: não vi um pequeno comentário que ele escreveu – “Manuel, o seu texto é lindíssimo …” – depois de ler uma crónica minha sobre o casamento de Godard. Dava agora um ano da minha vida por ter-lhe logo a seguir telefonado.

Esclareço os supinamente distraídos. O António da Cunha Telles era um madeirense trangalhadanças, gigante desengonçado, que caminhava num passo lírico e se nos dirigia com delicadeza palaciana. Ficará para a história do cinema português: ressuscitou a figura do produtor e foi o pai e a mãe do chamado cinema novo português, lusitana réplica da nouvelle vague que teve em Paulo Rocha e Fernando Lopes, os nossos primeiros Godard e Truffaut. Foi cineasta também: autor de Os Meus Amigos e demiurgo de uma pequena musa de cabelo curto num filme de belo título, O Cerco. A deusa chamava-se Maria Cabral.

Fiz, com o António, 20 telefilmes, quando dirigi a SIC Filmes. Quando o António vinha à SIC, a Carmo Faria, que me secretariava, via nele o seu lago de paz: em vez da guerrilha urgente e ríspida da maioria dos contactos de uma televisão, o senhor Cunha Telles respirava cortesia e a Carmo sabia que ao lado dele podia caminhar como uma princesa.

Hoje, arrependo-me de não ter tido tempo para lhe ouvir mais histórias. Já, nos meus anos de Cinemateca, tinha percebido o seu gosto pela vida, numa noite em sua casa, com o cineasta Samuel Fuller. Havia copos, charutos, conversa livre e solta, e o António, havano na mão, ronronava por ali, como um grande gato satisfeito. O ecrã gigantesco na sala, raridade nesse tempo, era testemunho de encantada cinefilia.

Era uma cinefilia que confundia com a própria vida. A história que me contou do seu barco é de filme. Num leilão, licitava-se um barco que fora encontrado abandonado – de traficantes? – no alto mar. Uma pechincha. O António comprou-o. Descobriria, no iate, chamemos-lhe assim, um álbum de fotografias e nomes. Uma família inglesa, julgo, que o António desatou a procurar. Encontrou-a. De facto, o barco era deles. Tinham sido apanhados por uma tempestade e julgaram que iam morrer. Lançaram o mayday, mayday e foram salvos, abandonando aquele caixão. O António quis devolver-lhes o barco: aceitaram as fotografias, mas recusaram a nau catrineta, tão assombrados estavam com a tormenta e a iminência da morte. O iate do António, o Pandora, que é nome da sua filha, menina de um dos sorrisos mais luminosos de Lisboa, foi, na sua orgulhosa modéstia, um lugar de sortilégio na marina de Cannes, em muitos festivais de cinema.

E tinha um cozinheiro, holandês, se bem sei. Creio que foi o holandês que, em troca de poder ficar a residir no bote, ensinou o António a nadar e se propôs como cozinheiro. Estarei a misturar duas histórias diferentes, certo é que o holandês cozinhava bem.

Tenho raiva: não fui ouvir as histórias do cinema português que o António me queria contar. E queria que eu as contasse de uma certa maneira. Sobre a minha crónica do casamento de Godard disse-me, e cito: “Este lado íntimo do cinema, que não está nem pode estar na imagem, mas só na memória de quem ama o cinema, é tão bonito que não tem preço.” E acrescentou no final, a tão poucos dias da sua morte: “… talvez seja a eternidade pagã para deleite de iniciados!” A raiva que eu tenho, António, de só responder agora!

Os livros não se rendem

Este sábado, dia 3/12, às 17:00, no auditório da Fundação Eça de Queiroz, em Tormes, tem lugar a apresentação de Os Livros Não Se Rendem, colecção que quer reunir alguns dos melhores ensaios dos últimos 70 anos, da História e Filosofia à Economia, Política e Antropologia.

É mais do que uma apresentação de livros. Começa aqui uma parceria inovadora que é mérito total e exclusivo da Fundação Manuel António da Mota e da Mota Gestão e Participações.

A apresentação será feita por Manuel Carvalho, director do Público, e estará presente o Ministro da Administração Interna.

Dos meus 17 anos de editor da Guerra e Paz este é, pelo significado da colecção, e pela iniciativa que terá lugar a partir dela, o momento mais alto, a mais nobre realização, em que participo.

Convido os meus amigos do Porto, Braga, Viseu e próximos de Tormes, Baião, a virem assistir ao evento.