Eu tinha prometido. Cumpro. Esta é uma crónica dedicada ao realizador, produtor, cinéfilo António da Cunha Telles. Publiquei-a no Weekend, do Jornal de Negócios. A foto, que reproduzo com a devida vénia é de Rui Gaudêncio.

O António era como dois ou três cisnes que deslizam mansamente. Estou a falar do António da Cunha Telles, que deslizará mansamente no paraíso desde a semana passada, e a quem eu falhei, nessa indubitável canalhice que é a obsessão quotidiana: não vi um pequeno comentário que ele escreveu – “Manuel, o seu texto é lindíssimo …” – depois de ler uma crónica minha sobre o casamento de Godard. Dava agora um ano da minha vida por ter-lhe logo a seguir telefonado.
Esclareço os supinamente distraídos. O António da Cunha Telles era um madeirense trangalhadanças, gigante desengonçado, que caminhava num passo lírico e se nos dirigia com delicadeza palaciana. Ficará para a história do cinema português: ressuscitou a figura do produtor e foi o pai e a mãe do chamado cinema novo português, lusitana réplica da nouvelle vague que teve em Paulo Rocha e Fernando Lopes, os nossos primeiros Godard e Truffaut. Foi cineasta também: autor de Os Meus Amigos e demiurgo de uma pequena musa de cabelo curto num filme de belo título, O Cerco. A deusa chamava-se Maria Cabral.
Fiz, com o António, 20 telefilmes, quando dirigi a SIC Filmes. Quando o António vinha à SIC, a Carmo Faria, que me secretariava, via nele o seu lago de paz: em vez da guerrilha urgente e ríspida da maioria dos contactos de uma televisão, o senhor Cunha Telles respirava cortesia e a Carmo sabia que ao lado dele podia caminhar como uma princesa.
Hoje, arrependo-me de não ter tido tempo para lhe ouvir mais histórias. Já, nos meus anos de Cinemateca, tinha percebido o seu gosto pela vida, numa noite em sua casa, com o cineasta Samuel Fuller. Havia copos, charutos, conversa livre e solta, e o António, havano na mão, ronronava por ali, como um grande gato satisfeito. O ecrã gigantesco na sala, raridade nesse tempo, era testemunho de encantada cinefilia.
Era uma cinefilia que confundia com a própria vida. A história que me contou do seu barco é de filme. Num leilão, licitava-se um barco que fora encontrado abandonado – de traficantes? – no alto mar. Uma pechincha. O António comprou-o. Descobriria, no iate, chamemos-lhe assim, um álbum de fotografias e nomes. Uma família inglesa, julgo, que o António desatou a procurar. Encontrou-a. De facto, o barco era deles. Tinham sido apanhados por uma tempestade e julgaram que iam morrer. Lançaram o mayday, mayday e foram salvos, abandonando aquele caixão. O António quis devolver-lhes o barco: aceitaram as fotografias, mas recusaram a nau catrineta, tão assombrados estavam com a tormenta e a iminência da morte. O iate do António, o Pandora, que é nome da sua filha, menina de um dos sorrisos mais luminosos de Lisboa, foi, na sua orgulhosa modéstia, um lugar de sortilégio na marina de Cannes, em muitos festivais de cinema.
E tinha um cozinheiro, holandês, se bem sei. Creio que foi o holandês que, em troca de poder ficar a residir no bote, ensinou o António a nadar e se propôs como cozinheiro. Estarei a misturar duas histórias diferentes, certo é que o holandês cozinhava bem.
Tenho raiva: não fui ouvir as histórias do cinema português que o António me queria contar. E queria que eu as contasse de uma certa maneira. Sobre a minha crónica do casamento de Godard disse-me, e cito: “Este lado íntimo do cinema, que não está nem pode estar na imagem, mas só na memória de quem ama o cinema, é tão bonito que não tem preço.” E acrescentou no final, a tão poucos dias da sua morte: “… talvez seja a eternidade pagã para deleite de iniciados!” A raiva que eu tenho, António, de só responder agora!