O Gil

Morreu ontem Gil de Carvalho. Morreu ontem um poeta. Gil de Carvalho foi um dos fundadores da Três Sinais Editores, a casa editora da qual nasceria, depois, a Guerra e Paz, de cuja equipa inicial Gil de Carvalho fez também parte.

Mas foi a escrita, a poesia (o «coitus cantabile» da sua poesia, de «Alba» e «Aboiz» a «8») , algum ensaio («A Dama Luminosa»), os relatos, de língua a passear entre os lábios, de «A Cidade de Cobre», a sua paixão pela poesia chinesa, as suas deambulações pelos poemas anónimos mongóis, turcos e outros incertos, que marcou e encheu uma vida vivida neste mundo à margem deste mundo.

Ia dizer que nos despedíamos agora, mas a ideia de alguém se despedir de Gil de Carvalho é uma ideia bizarra e ilusória. Há um eco de Gil de Carvalho, da sua linguagem simultaneamente escassa e deslumbrante, que sempre permanecia a preencher a sua ausência. Gil Abrunhosa, Gil Nozes de Carvalho, Gil de Carvalho, de que Gil afinal nos despediríamos?

Talvez amanhã eu consiga alinhavar os estilhaços estereofónicos que, agora, esta ideia da «morte do Gil», meu amigo desde os 18 anos, me faz passar, como um rio turvo, entre a memória e o esquecimento.

Morreu Gil de Carvalho. morreu um grande poeta português, um daqueles raros poetas que vai ser maior e mais presente à medida que os anos passem.

Manuel S. Fonseca, editor

O sex-appeal de uma desvairada fortuna

Talvez o homem seja o mais desacompanhado de todos os animais. Mas subo já a parada: não houve, na história da humanidade, homem mais desacompanhado do que o ultratrilionário Howard Hughes.

Tinha eu 15 anos, deambulava a minha dengosa pobreza remediada pelas ruas da cidade de Luanda, e lembro-me do meu preclaro mentor e barbeiro Mário Prazeres me contar a história de outro barbeiro, de uma vilória alentejana, «lá em Portugal», que não só a si mesmo se desacompanhava, como desacompanhava a própria mulher. Tinha pelo sexo menos interesse do que qualquer um de nós por avencas incandescentes.

Era o que a mulher, com a tristeza de um lenço verde a cobrir-lhe o cabelo, contava a quem lhe oferecesse um dedo de ouvido de atenção que fosse. «Mas – julgo que foi o meu amigo Mário a interpelá-la – a senhora tem dois filhos. Não me diga, senhora do lenço verde, que não são dele.» E ela num resignado arrebatamento: «São dele, são, menino Mário. Mas a canseira que eu tive para que ele mos fizesse!»

Howard Hughes não precisava de se cansar. Morreu-lhe cedo o pai e ainda não tinha 20 anos caiu-lhe nas mãos uma herança analfabeta. Veio para Hollywood com uma mulher tão nova como ele. Depressa se divorciou e deu-lhe para fazer duas coisas: aviões e filmes. Eram a sua paixão. A que se juntava uma febril necessidade de companhia feminina.

Eu peço aos leitores que olhem para o Howard dos anos 20. Era bonito, alto, porventura pouco articulado e tendencialmente silencioso, mas somava a tudo isso o sex-appeal de uma desvairada fortuna. Um rio de mulheres crepitava aos seus pés e a verdade é que se agarrasse num telefone às quatro da manhã – oh, bem bom – não havia uma actriz que não acorresse a amaciar-lhe a ineludível solidão.

Lana Turner, uma das mais fatais das «femmes fatales» de Hollywood, intérprete da mulher adúltera do primeiro «O carteiro toca sempre duas vezes», uma vida cheia com sete casamentos fora os concubinatos, foi uma das actrizes que lhe atendeu o telefone. Confessou que Howard «era um tipo de quem se gosta por ser agradável, mas não era especialmente estimulante». Julgo que a caligrafia de Lana se percebe com facilidade e ainda mais se a ouvirmos dizer que «Howard sussurrou-me que tinha preferência por sexo oral… e eu disse-lhe que não estava nada interessada e ele não pareceu incomodar-se».

Lana disse-o e essa peça botticelliana de menagerie feminina que foi a actriz Gene Tierney prova-o: Howard gostava de se apresentar em público com a mais loura refulgência de Hollywood, mas no fim da linha apreciava mais as mães do que as filhas que o acompanhavam. Queria era falar horas perdidas com a mãe de Lana e à mãe de Gene encheu-lhe 60 metros quadrados de uma sala com gardénias. «Cheira um bocadinho a morte», disse a velha senhora.

Foi Bette Davis que revelou o segredo de Howard, esforçando-se tanto como a mulher do lenço verde do modesto barbeiro alentejano. Bette era casada e o marido, músico, passava as noites a tocar num hotel nobre de Hollywood. Mas desconfiou e mandou pôr um micro no quarto onde Bette e Howard se encontravam. Ficou numa carrinha ao lado a ouvir e descobriu que Howard tinha um problema ejaculatório – poupo-vos a pormenores. Irrompeu pelo quarto adúltero e ameaçou Howard que o tentou esmurrar, mas falhou. Bette ululava contra o marido. Howard, aterrado com escândalo, pagou-lhe o que era então um Euromilhões de 75 mil dólares. Bette Davis, com a nobreza ríspida que era seu dom, devolveu, dólar a dólar, a miserável chantagem do marido e Howard mergulhou ainda mais na sua surda solidão.

Do manto de Gradiva ao colo da Guerra e Paz

Esta é a primeira vez que escrevo em nome da Gradiva. E, logo a seguir,
a newsletter natalícia da Guerra e Paz. Com ternura, para quem gosto e para quem admiro.

Do manto de Gradiva, cinco livros de Natal

Tenho a mão a tremer. É a primeira vez que escrevo aos leitores da Gradiva. Se se lembram de Fanny e Alexandre, de Ingmar Bergman – é um filme de Natal, ó se é!  – lembram-se, é claro, da cena em que o pequeno Alexandre visita uma loja de brinquedos, autómatos, objectos mágicos, uma autêntica gruta de Ali Babá, guiado pelo dono, o judeu Isak Jacobi, amigo da família. É uma cena de maravilhoso puro, de desmedido deslumbramento. Assim me sinto eu, pequeno Manuel, nesta loja mágica chamada Gradiva, criada pelo meu amigo Guilherme Valente. 

O Guilherme pede-me, exige-me, que eu escolha à vontade: «Leva e lê, este Natal.» Agarro logo essa intriga de cem anos, essa viagem e  ocultação de um poema que atravessa o romance de Ian McEwan, O Que Podemos Saber. Que força, que dom poético move cada um de nós, que somos afinal também personagens de McEwan, e nos permite sobreviver ao caos, à iminência da catástrofe, ao crime e à vingança, à doença e ao próprio amor? Leiam-no comigo, este Natal. 

E já o Guilherme me pede que procure outro dos seus objectos mágicos. Tropeço no Nome da Rosa, outro Nome da Rosa, aquele que ao nome de Umberto Eco junta o nome de Milo Manara, mestre do traço erótico. É uma das BD do Guilherme, dessas raridades que ele cultiva: imagino-o sentado com um Eco vindo do reino das sombras e com Manara, a pedir-lhes exuberância, riqueza criativa, mistério e desejo. Dessa matéria se faz este volume BD de O Nome da Rosa.

E sigo viagem com o meu amigo e mestre editor. Desembocamos no cosmos. Recebe-nos Stephen Hawking. Na mão, o seu A Teoria de Tudo: Origem e Destino do Universo. Como é possível que o pensamento humano seja tão claro, que alguém possa escrever argumentos tão luminosos e persuasivos, que fazem com que eu me sinta uma criança de cinco anos encantada? Talvez, afinal, o mundo da ciência seja o verdadeiro mundo do conto de fadas, com o seu universo em expansão, buracos negros e Big Bang.

«Manel – diz o Guilherme – este é para ti!» e dá-me As Lições dos Mestres, de George Steiner. E eu agradeço-lhe, intrigado com o que é o saber e como se transmite. Intrigado também com o rumor subterrâneo que liga, afinal, o saber e o poder. O que é ser um mentor? Mestres, aponta Steiner, foram Sócrates e Jesus, Confúcio, Dante ou Shakespeare. E quem foi, em filosofia o nosso mentor, Guilherme? O magnífico Trindade Santos e o Platão que ele nos ensinou a ler? E o que é ser um discípulo? Conseguirei eu ser, como editor, algo que se pareça a um teu discípulo?

Acabaria assim se Guilherme Valente, editor de meio-século, fundador desta gruta mágica, não me fizesse levantar a cabeça, obrigando-me a olhar de frente para Klara e o Sol, do Nobel Kazuo Ishiguro. Estou de olhos nos olhos com Klara, a amiga andróide. No céu, o Sol contempla-nos. Indiferente à nossa natureza, ilumina-nos, aquece-nos, dá-nos energia. Qual de nós o ama mais?

Foram estes os cinco livros de Natal que trouxe desta primeira viagem ao bosque de frutos encantados que se chama Gradiva, jardim que, com minucioso e fremente amor, Guilherme Valente criou e de que quero agora ser  fiel jardineiro.

Livros Guerra & Paz que serão sempre de Natal

Há prendas, quase uma confissão sussurrada, que só se dão a quem muito se ama. Ou talvez a quem queremos que muito nos ame. Há livros que são essas prendas, suspiros de Natal, afago discreto de um dedo a deslizar na arrepiada pele. 

E se o Natal é mesmo essa onda devastadora de tudo se amar, até mesmo os inimigos, mais do que oferecer a outra face, por que não oferecer, a amigos e inimigos, a surpresa da intensa beleza que vem da China? 

Ouçam, leiam bem o título deste livro do modesto funcionário público do século XIX chinês que foi Shen Fu: No Fio Inconstante dos Dias: Memórias de Uma Vida Flutuante. Quanta ternura e quanta incerteza não peregrinam por esses dias prometidos, por essa vida navegante? É uma história de amor, com concubinas e barcos de flores, com um boémio curso de vinho de arroz, e é também, em fundo, a paisagem chinesa, rios e montanhas, jardins e palácios, amor e morte.

Outra prenda, toda em veludo, é O Crisântemo e a Espada, essa declaração de amor que a antropóloga Ruth Benedict dedicou ao Japão e aos japoneses. Honra e dívida, pais e filhos, devoção filial, fica tão lindamente exposta toda a delicada reserva japonesa, a íntima filigrana de que é feito o povo do sol nascente. 

A antiquíssimas aventuras é que nos leva outra mulher, Jessie L. Weston. Escreveu Do Ritual ao Romance só para nos mostrar de quantos e tão remotos rituais vêm os nossos ideais de cavalaria, a salvação de donzelas, a morte do rei; de tão longínquo e tão enraizado paganismo vem também o que ainda nos sobra de cristianismo. Lê-se como uma novela da Távola Redonda e foi neste Do Ritual ao Romance que se inspiraram A Terra Devastada de T. S. Eliot e o Apocalypse Now, de Coppola. 

A quem queremos oferecer o corpo, a quem queremos que nos ofereça o corpo é que entregaremos a Cartografia do Desejo, o livro com as mais libérrimas fotografias de Alfredo Cunha. Não é apenas o aroma da nudez que Alfredo Cunha nos oferece: em cada fotografia sua está o essencial de um corpo, o seu movimento, e sobretudo a projecção do seu desejo. O desejo é a preto e branco, e é de lençol de seda a suavidade do papel gardapat, cama em que cada fotografia se deita. 

Para acabar, deixem-me ir buscar o sorriso de fina ironia de Agustina Bessa-Luís. Tomando nas suas mãos 12 episódios da nossa história de mil anos, Agustina somou a essa história a glória e o ciúme, a lealdade e a traição, a espada e o punhal. Agustina romanceou, delirou, dramatizou, ironizou, com liberdade prodigiosa, um dos mais espantosos e escondidos dos seus livros, Fama e Segredo na História de Portugal. Passe o Natal com este livro que até ao Menino Jesus de Caeiro arrancaria um sorriso trocista.

Manuel S. Fonseca, Editor

No fogo, toda a verdade

Arde, baby, arde! Do fogo vem uma inconfessável tensão dionisíaca. Quase se apalpa a devassidão relampejante que atravessa o coração do pirómano. Retornados do império, viviam os meus pais em Pinhel, era de noite e houve um incêndio perto do Coa. Fui com a Antónia ver a frente de fogo: era como se a boca do deus da noite – ou será um demónio? – se abrisse na insuperável beleza e fúria de labaredas a correr pela floresta de breu. As chamas iluminavam a beleza juvenil da Antónia: talvez nunca eu a tenha visto tão bela. Como se fosse uma Scarlett O’Hara. E já lá vou.

O pirómano já vem de muito longe. O imperador chinês Qin Shi Huang talvez tenha sido o autor da primordial queima de livros. Três séculos antes de Cristo, para sufocar as cem escolas de pensamento que floresciam na China, o imperador mandou queimar todos os livros, com excepção dos que tratavam de medicina, agricultura e, ora bem, adivinhação. Com um toque de originalidade: queimou os livros e enterrou vivos os autores.

Hitler e Mao Tsé-tung, o nazi e o comunista, não prescindiram das credenciais pirómanas. Hitler, de braço estendido, e em espasmos arrebatados, incitou os seus meninos nazis a esturricar as decadentes obras antigermânicas. No mês de Maio de 1933 os incêndios de livros iluminavam as praças e ruas alemãs. Os mesmos gritos, os mesmos risos de hienas, nos olhos o mesmo fulgor assassino, os jovens comunistas, respondendo ao levantado punho fechado de Mao, queimavam os «quatro velhos»: antiguidades, arquitectura, pintura e livros foram entregues à boca insaciável do fogo purificador.

Mas pode no fogo ferver outro impulso que não seja o do motim e o da destruição? Ainda se lembram, e já me estão a dizer que sim, do «E Tudo o Vento Levou»? O produtor desse filme foi David O. Selznick. Era daqueles tipos que tinha a arrogância dos sonhadores ambiciosos.

Quis e fez de «E Tudo o Vento Levou» uma produção megalómana. Já tinha sob contrato Clark Gable para o papel de herói. Mas ainda andava às aranhas para descobrir a sua Scarlett. Tinha também um estúdio no qual estavam as sobras dos cenários de filmes como «King Kong», «O Jardim de Alá» ou «O Rei dos Reis». Precisava de limpar aquela tralha. O decorador do filme, o genial William Cameron Menzies, disse-lhe: «David, o mais barato é queimarmos este lixo.» A perspectiva do fogo iluminou os olhos de Selznick. Imaginou que se poderia filmar tudo e ser essa a cena do holocausto de Atalanta, cena central do filme.

Foi um ver se te avias. Puseram tubagens a atravessar os velhos e abandonados cenários, com um produto altamente inflamável, ligando-as a uma consola, cada botão podendo deflagrar o incêndio de um dos cenários. Estavam ali 50 bombeiros, 20 polícias, 200 empregados do estúdio, e três duplos de Clark Gable que, em pontos diferentes do incêndio salvariam a ainda inexistente Scarlett. Sete câmaras filmaram aquele apocalipse de fogo.

Até a mãe, já viúva, Selznick trouxe para esse espectáculo que seria ele mesmo a comandar, os dedos nos botões da consola. E o irmão, Myron, viria com convidados. Myron atrasou-se e Selznick teve de começar. A noite de Los Angeles encheu-se de brilho, explosões, cometas a riscar o céu e um Selznick arrebatado, peito inflado, a dar ignição, botão a botão, à miríade de fogo.

É então que chega Myron, com uma mulher desconhecida: «David, apresento-te a tua Scarlett O’Hara.» Era Vivien Leigh, no rosto dela, afogueado, tremulava a luz de mil chamas. E jura Selznick: «Olhei e soube logo que era ela, a Scarlett.» Só no fogo fulge, assim, a mais escancarada verdade.

Ler o futuro na penumbra da infância

«As ruas de Buenos Aires / são já as minha entranhas.» Foram estes os primeiros versos do primeiro poema do primeiro livro que Jorge Luís Borges escreveu. E logo, dois versos à frente, ele diz que essas são as ruas do seu bairro, ruas «enternecidas de penumbra e de ocaso», promessa para o solitário que ele é – prenúncio da solidão do futuro habitante da escuridão em que se converteria. Promessa, digo eu, de uma pátria de que aqueles versos quereriam erguer-se como bandeiras.

Pode um poeta, com obra des­me­su­rada como é a de Borges, adivinhar-se todo no seu pri­meiro poema? Ama­nhã pen­sa­rei tal­vez outra coisa, hoje penso que sim. Essas pequenas ruas «enter­ne­ci­das de penum­bra e ocaso», voltaremos a encontrá-las nos con­tos fan­tás­ti­cos de aven­tura, nou­tros poe­mas de maturidade de Borges. Neste primeiro poema – «As Ruas» – deste primeiro livro – «Fervor de Buenos Aires» –, está o feliz casa­mento entre o con­creto e a meta­fí­sica, que vol­tará insistente e obsessivo no des­lum­bra­mento barroco das «Fic­cões» ou na fan­tas­ma­go­ria do «Aleph». Nas ruas apá­ti­cas de um bairro dos arra­bal­des pressente-se já a refu­ta­ção do tempo, tema tão caro nos con­tos e inqui­si­ções: estas ruas soli­tá­rias e deso­la­das são úni­cas perante Deus e a eternidade. No pri­meiro poema do pri­meiro livro, Bue­nos Aires e Bor­ges fundem-se. Inú­me­ras e soli­tá­rias pala­vras que a seguir tenha escrito não fize­ram mais do que rees­cre­ver aqueles pri­mei­ros versos.

Também Jean-Luc Godard se revelou, inteiro, controverso e perplexo, no seu primeiro filme, «O Acossado». Os actores Jean-Paul Belmond e Jean Seberg, tão inocentes e já tão desesperados, desaguam na traição canalha («dégueulasse», diz Belmondo), incarnando a impossibilidade do encontro, da fidelidade e da felicidade. E não quero sequer falar da estreia no cinema de Orson Welles, desse megalómano «Citizen Kane» que é, sozinho, uma nova história do cinema.

E o que me arrisco a dizer é que talvez toda a nossa vida esteja contida num trivial episódio que a anuncia. Toda a individualidade de Churchill, inóspita e inegociável, se definiu no colégio, St. George, onde estudou. Mau aluno, salvo as boas notas em História e nas redacções, era vítima de duras punições dos colegas e de castigos físico dos professores. «Mãe, espero que me venhas ver. Que infeliz me sinto. Tento ser bom, mas são cruéis comigo…», escreveu numa carta. Tinha 9 anos e a escrita e a oratória eram já a sua linha de fuga.

Com 9 anos também, chegou Napoleão à escola militar de Brienne-le-Chateau. Vinha da Córsega, sotaque carregado, e os camaradas chamavam-lhe «o pequeno selvagem». O puto Napoleão, que tinha já o cartaginês Aníbal e o macedónio Alexandre como conquistadores-modelo, numa das brincadeiras de guerra que faziam no Inverno com fortes de neve, propôs um plano perfeito para conquistar essa fortaleza gelada e branca. Um coro de risos e desprezo – «quem pensas que és, corso?» – cortou-lhe as ilusões. O poder solitário teria de ser a sua salvação.

Termino comigo mesmo e com uma «petite histoire» que já contei. Aprendi a ler depressa. Num jornal, deixando embasbacada a mãe Alice, li: «O burromestre de Berlim». Ela sorriu, aplaudiu e logo corrigiu: «O burgomestre e não burromestre.» É certo que li o que li de um jornal, numa parede das obras, talvez uma mancha de cimento ou tinta a fazer do «g» de burgo um «r» de burro. Mas ficou ali traçado o futuro: aprender fácil e enganar-me com ligeireza. Mas enganar-me-ei por excesso de descontracção ou por fatal escolha estética?

O repouso do guerreiro

os meus livros de novembro
o repouso do guerreiro

Pode entre o ex-comando de muitas batalhas e o ex-maoísta de muita retórica nascer uma amizade à primeiríssima vista? Foi o que aconteceu entre Rui de Azevedo Teixeira e este vosso escriba e editor. O que nos ligou? Por certo a aventurosa vida africana que ambos vivemos e, porventura, o gosto pela inteligência de refeições simples, mas requintadas, que a gota de um vinho sublime transfigura. O Rui brindou-me, e aos leitores portugueses, com uma trilogia de romances de acção e risco e de sagazes angústias amorosas. E se já leram O Elogio da Dureza, O Longo Braço do Passado e O Imenso, Sereno e Doce Rio, venham agora contemplar o repouso do guerreiro amoroso: em Ficções e Ensaios: Fascínios, Espelhos, Labirintos, o Rui, o meu amigo Rui, como se fosse um Borges português, põe-se a degustar outros escritores, de Manuel Alegre a Hélia Correia, de António Lobo Antunes a Clara Pinto Correia. Eis o que vos digo: corram a ver-se ao espelho, com ele, em cada um dos arrebatadores e labirínticos textos deste Ficções e Ensaios.

Outro sereno remanso é o que os leitores descobrirão em Países Estrangeiros, Memórias e Viagens, deambulação do poeta e diplomata Luís Castro Mendes: a ostracização diplomática é uma fonte de inspiração e a verdade é que todo o diplomata, na sua existência entre parêntesis, é um espião dos lugares, um espião da história, um espião da alheia vida de cada povo e cidade em que se infiltra. Leia-se.

Um extraordinário espião do «sonho chinês» é o sinólogo Claude Meyer. Escreveu A China de Xi Jinping, Uma Ameaça à Paz e à Ordem Mundial, um manancial de informação e um guia preventivo do que se pode esperar de Xi Jinping e da sua autocracia. A ambição de supremacia tecnológica e militar chinesa liga-se à obsessão do total controle colectivo e individual. Sim, o que se pode esperar de Xi não é propriamente a promessa de que «cem flores desabrochem». Isto, para que não se diga que não falámos de flores! Da colecção A Minha Estante (está tão bonita!).

Já sabíamos que o wokismo não é flor que se cheire. Mas agora, em Face ao Obscurantismo Woke, 26 professores universitários, cientistas e investigadores decidiram dissecar os efeitos do wokismo na medicina, na investigação científica, na biologia, na filosofia. E os efeitos são um retrocesso científico e uma perda de liberdade que confrangem qualquer espírito livre. Um pseudo-saber militante arroga-se o direito de intimidar, cancelar, excluir e proibir: uma nova Inquisição que queima em praça pública. Pierre Vermeren é o organizador da obra. Da colecção Os Livros Não se Rendem, que a Fundação Manuel António da Mota e a Mota Gestão e Participações sempre apoiam, oferecendo-a às 254 bibliotecas da rede pública.

Quem organizou Bicesse: O Caminho da Paz foi Sónia Neto. Dá, neste seu livro, a palavra a 22 testemunhos dos protagonistas que procuraram o Acordo entre o MPLA e a UNITA, aqui ao lado, em Bicesse, para estancar a guerra fratricida que destruiu Angola. De Cavaco e Silva a Durão Barroso, dos angolanos Lopo do Nascimento a Lukamba Gato, neste livro o que ouvimos e lemos é a História a falar.

São estes os meus cinco livros de Novembro na Guerra e Paz, a que a Euforia, a chancela de new adult, acrescenta um romance, A Fibra das Nossas Almas, de K. M. Moronova. Moronova é uma autora capaz de escrever esta frase: «Tenho 26 anos e quero morrer». E a seguir de trazer para o seu romance um par de olhos crudelíssimos e um avassalador sentido de humor mórbido. Já querem ler? Também eu.

Prometo: na newsletter de Dezembro só falaremos de presentes. Regalos. Gifts. Cadeaux. Prendas, portanto.

Manuel S. Fonseca, editor

Crónica de todas as despedidas

Quero falar-vos de despedidas. Foram já tantas as que vivi. Lembro-me de ter saboreado dois dos mais prodigiosos anos da minha vida na cidade do Lobito, no meio da afrodisíaca independência, numa Angola a ferro e fogo, e lá voltar para recolher uns móveis e cadeirões que me faziam falta em Luanda. Vinha numa carrinha, quase camião, de caixa aberta, a subir os morros da Gabela, a floresta densa, o nevoeiro era um manto sem brechas, e eu sentado no chão da carrinha, entre os móveis, a pujante natureza a roçar-se, tão erótica, pelos meus pujantes 22 anos, os primeiros raios de sol a serem rechaçados, uma lágrima de estupor a fugir-me perante tanta beleza, tanto silêncio e indiferença ao efémero humano. Soube então que a minha vida vadia, rebelde, tão escandalosamente jovem, estava a sair de mim e a esconder o rosto na imutável floresta e nos morros da Gabela. Por lá ficou e deslizará entre lianas, sol tórrido, a neblina das madrugadas.

Um dia, era ainda adolescente, aportou ao cais, em Luanda, um transatlântico italiano majestoso. No convés, vi a mulher mais bela que um adolescente pode ver. Era «a mulher», com a sua aura de mulher, cabelo de deusa, o decote de que nasceram todos os decotes. Chorava. Via-a do cais e, pese embora a minha recente miopia, juro, e jurarei para a eternidade, que ela chorava. Quem a abandonara? Que separação, despedida e dor vinham, com a insuportável doçura da tristeza, acariciar-lhe os braços – seriam morenos os seus braços italianos? – e descer por ela como um rio desce para a foz?

Não chorei muito na morte do meu pai e da minha mãe. Chorei uma só vez. Meti-me no carro e fui de Lisboa a Coimbra – e teria ido em contramão se preciso fosse – mas já não encontrei o meu pai com vida. Já não falava da última vez que o vira, mas ainda escrevera duas palavras na humilde agenda dele, que guardo. Fui ver, sem uma lágrima, o corpo dele na morgue. Já o tinham vestido. Estava tão quieto em cima da mesa. E eu tão calmo a olhar para o pai morto. Sem que previsse, uma torrente violenta fez-me estremecer e um mar de lágrimas irrompeu. Foram três, quatro, talvez cinco minutos de convulsão, choro descontrolado, respiração patética, a mais imprevisível das despedidas e eu tenho a certeza de que o meu pai estava ali. Ainda.

Da minha mãe, a morte estava anunciada. Soube e fui de carro para Coimbra, passava na minha cabeça o filme de tanta ternura, dos dias de amor irrestrito. Uma saudade tranquila. Depois da estação de serviço de Santarém, subia a Serra de Aire, o aflitivo anjo do choro, imparável, dominador, absoluto, tomou-me conta da cabeça, dos olhos e do peito. Não sei por onde o anjo entrou em mim, mas outra vez, como com o meu pai, deixei de ser dono de mim mesmo, arrebatado por essa imensa mão das lágrimas e pelo ronco atroz da dor.

Foram as minhas mais exuberantes despedidas. Fizeram-me bem porque me fundiram num abraço molhado, quase gritado, com pai e mãe, libertando-me para a solidão tão bonita de já não ter ninguém atrás de mim e ser agora eu, ao lado da Antónia, a retaguarda da minha filha e do meu neto, que um dia chorarão por nós o terramoto de três ou quatro minutos convulsos, vindo lá do fim dos tempos.

Contei-vos tudo isto para dizer adeus. Esta é a minha última crónica no Negócios. Por escolha minha. Fiquei com mais uma editora, a grande Gradiva. E quero, por amor aos livros da Gradiva e da Guerra e Paz, dar-lhes toda a minha energia. Aqui, no Weekend e no Negócios, fui feliz. Com os meus directores, com a Lúcia Crespo, minha editora, e, sobretudo convosco, caros leitores. Adeus.

Adeus

Despedi-me dos jornais. Esta foi a minha última crónica no CM. Jà a seguir publica a última crónica no Weekend. Reservo-me uma missão: a de traduzir, escrever e editar mais livros – se possível, melhores livros, nas agora minhas duas editoras, a Guerra e Paz editores e a Gradiva Publicações. Aqui, continuarei, enquanto estiver firme, a trazer notícias de livros e de mil e uma coisas da vidaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa.

Venho despedir-me dos leitores do CM, como há dias, por minha livre decisão, me despedi do Octávio Ribeiro, que, há sete anos, teve a gentileza de me convidar para o CM, e do Carlos Rodrigues, agora meu excelente director. Tal como disse a esses meus dois amigos, digo-vos, caros leitores, que me despeço com entusiasmo. Em vez de choro, alegria.

Quis o destino que, aos 72 anos, me caísse ao colo uma bela editora de livros, a Gradiva. Vou geri-la e ser dela o editor, como já o sou da Guerra e Paz. É uma missão exigente, e com o dobro da responsabilidade, para que parto como se ainda tivesse os meus longínquos 30 anos. Seria leviano não concentrar todas as forças que me sobram nesse projecto.

Quando eu era novo, acreditava que a coisa mais importante da vida era ter um ideal. Hoje, tenho a certeza. E eis do que não gosto no mundo que nos rodeia: não gosto da crispação dos discursos, não gosto da feroz polarização, não gosto da exclusão idiota, seja de quem for, por ser de direita ou por ser de esquerda.

Pode parecer risível querer alguém contrapor-se ao devastador tsunami de radicalismo que nos submerge. Haverá ainda lugar para um inocente neste mundo abrasivo? Já um parisiense cínico, um dia me avisou: é lindo ser inocente, mas convém não abusar. E, todavia, acredito que o livro é o grande contraponto ao radicalismo que nos tolhe. No livro há tempo para se pensar, no livro supera-se o imediatismo dos «sound bites», no livro cabem cambiantes e argumentos, esses argumentos que o subtil Oscar Wilde dizia detestar porque podiam ser convincentes.

Despeço-me, entre os 50 anos do 25 de Abril e os 50 anos do 25 de Novembro. Essa realidade dá-me a melhor imagem da despolarização que procuro: não é pelo PCP se armar em dono do 25 de Abril, que nos rouba a alegria desse dia de liberdade; não é pela direita radical se armar em dona do 25 de Novembro, que nos rouba a celebração desse dia de plural democracia. Num livro tudo isso fica ainda mais luminoso. Encontramo-nos na esquina dos livros. Obrigado.