Ferro ou seda?

Tinha um marido. O marido tinha nome, claro: chamava-se “o marido de Margaret Thatcher”. A mulher mais poderosa de Inglaterra não vivia na solidão, esquivando-se com esse seu “marido de Thatcher” à mitologia da solidão da mulher célebre, política, escritora, artista, gaveta em que se tenta sempre enfiar a mulher que brilha neste nosso humaníssimo céu de tantos anseios, alegrias, e algumas inescapáveis ignomínias.

 Nunca conheci a dita dama de ferro – e talvez não fosse de ferro, mas só da mesma fibra de outra mulher, Maria de Lourdes Pintasilgo, que atravessou ditadura e democracia: as nossas. Lembro-me que, ainda eu era director de programas da SIC, andava já a experimentar o que poderia ser um editor, e decidi fazer uma Bíblia em que cada um dos livros bíblicos viesse precedido pelo prefácio de uma personalidade: Eduardo Lourenço escreveu sobre os “Salmos”, Agustina sobre o “Cântico dos Cânticos”, Jorge Sampaio sobre o “Ecclesiastes”: era uma via láctea de figuras insignes. Eu queria que Pintasilgo escrevesse, se bem me lembro, sobre “O Evangelho Segundo Mateus”.

Foi da praia da Altura que convidei quase todos os prefaciadores, Adriano Moreira, Pacheco Pereira, João Bénard, o poeta João Miguel Fernandes Jorge, a Clara Ferreira Alves. E todos me disseram que sim. Dessa praia, de dunas e de um areal que antecipa o Sahara, liguei também a Maria de Lourdes. Louvou a ideia, acarinhou logo ali “O Evangelho de Mateus”, porventura o seu texto preferido no “Novo Testamento”, e disse-me que não, que não podia. Usei todos os meus fracos recursos: o mar tranquilo de Altura ia e vinha, como iam e vinham as minhas razões e as contra-razões de Pintassilgo. Tinha compromissos e não podia pô-los em perigo ou sequer beliscá-los.

Não havia nada de ferro na voz de Maria de Lourdes. Beijava com doçura a ideia, o proposto evangelho que o seu texto glosaria, mas era de uma inabalável firmeza na defesa do que tinha, em tempo, de fazer muito bem. Foi uma firmeza de uma hora e vinte minutos, talvez o mais longo telefonema da minha vida: lição de saber e encantamento bíblico, lição também de uma vontade que sabia o que queria e para onde ia, sem tergiversação.

Será a firmeza o traço de ouro da mulher que se distingue? A pergunta é só uma forma manhosa de confessar o que penso. E tanto alinho em minha defesa Angela Merkel como Joana d’Arc, Greta Garbo como Virginia Woolf. Talvez haja firmezas de ferro e firmezas de seda, digo eu.

Como era, por exemplo, a firmeza de Sacagawea, a índia que guiou a expedição de Lewis e Clark? O presidente Jefferson pediu a Meriwether Lewis que explorasse a América desconhecida, para lá do Missisipi, percorrendo as Rocky Mountains, chegando à costa do Pacífico. A expedição arrancou em 1805. Uma mulher acompanhava os 33 homens que a constituíam. Era a índia Sacagawea, escravizada por outra tribo e comprada por um francês, que casou, se assim se pode dizer, com ela. Falava línguas índias, francês e inglês. Levava às costas o filho recém-nascido. Foi ela, essa sua imagem maternal – outra forma de firmeza – que garantiu, como se fosse uma password, a travessia pacífica da expedição. Há um pico, no Oregon, e um rio, no Montana, com o seu nome; um selo e uma moeda de dólar, ambos deste nosso século, têm o seu rosto: de tocante beleza, diga-se.

A inabalável firmeza, eis o que junta as tão diferentes Thatcher, Pintasilgo e Sacagawea. E eu, para honrar a recusa de Pintasilgo, fiz mesmo essa Bíblia, 1500 exemplares, em caixa de acrílico, que mandei vir da China.

Publicado no Jornal de Negócios

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