Dos realizadores estrangeiros em visita à Cinemateca, nenhum foi mais extrovertido, empático, nonchalant e bon vivant do que Claude Chabrol, Fui eu o organizador do ciclo e do catálogo e tocou-me, por isso, ser o seu “guia. Mas o Luís de Pina (nas duas fotos) e o João Bénard (na de baixo) eram, é claro, os mestres sábios. Eu seguia-os. Depois desta sessão, fomos beber copos e comer bifes para o Bacchus (acho que se chamava assim), em frente ao Teatro da Trindade
Infelizmente não tenho fotos de outro francês, o Jacques Demy, que era também, no seu estilo mais suave, uma ternura e com quem partilhei aguardentes, quando ainda se podia beber do mesmo copo. Nem tenho fotos do georgiano Paradjanov, com quem jantei, com o Manuel Costa e Silva, director de fotografia e realizador, no velho Paris, na Baixa, o mais “anos 60” dos restaurantes da baixa pombalina, desaparecido há uns bons anos.
Mas ninguém sorria e ria, contente de estar a papar a vida ao segundo, como o feliz Chabrol!
Agora que todos cortamos no açúcar e no sal, eis o que vos quero dizer: a surpresa é a pimenta da vida.
Ia começar por mim, mas logo me deparei com o escândalo de dois escritores. Dostoievski tinha a excitação do espancamento. Os seus romances são vastas e abismais paisagens de injúria e humilhação, em que os actos masoquistas se multiplicam como estrelas no céu. Surpresa: só nos “Irmãos Karamazov” há setenta e cinco cenas – e atrevam-se a desmentir-me, se puderem – em que personagens se aviltam, dobrando-se, ajoelhando-se ou beijando o chão face a outras personagens. Ou seja, sofrem fisicamente e gostam de sofrer, como Dostoievski gostava de ser punido: bastava-lhe até que a castigo físico fosse mimado para ele se excitar.
E falo agora da professora de Jean-Jacques Rousseau, que nunca leu esse Dostoievski ainda por nascer. Descobriu, surpresa e assustada, que o menino Jean-Jacques adorava que ela lhe batesse. Com palmatória? Nas mãos, no filosófico posterior? Ela descobriu, diz-se, tarde de mais: Rousseau ficou adicto, um espancófilo. É ele que há de escrever “Emílio ou a Educação” propondo uma nova pedagogia ao mundo. Nas “Confissões”, o apologista do remorso que é Rousseau, anuncia candidamente que só o espancamento lhe desperta a sexualidade.
E, antes de falar de Alexandre Dumas, cravo-me eu aqui, entre escritores. Peço desculpa, mas não me dobro, ajoelho ou beijo o chão: nem tenho nenhuma confissão a fazer. Lembro-me só de uma das mais misteriosas surpresas da minha vida. Vivia no Lobito, em 1975. Na guerra da independência de Angola, tomei partido e tive de recuar – Mark Twain, com o seu gosto pelo exagero, diria fugir – quando Unita e África de Sul atacaram a cidade. Voltei, meses depois. O meu velho dois cavalitos tinha sido queimado e, no apartamento, por onde passara o caos, sobrevivia, ileso, o meu exemplar do “Pequeno Livro Vermelho”, do abominável Mao Tsé-tung. Há a lenda de que a uma explosão nuclear só as baratas resistem: aquele livrinho era o indemne insecto no meio da sala apocalíptica.
Há quem saiba transformar em doce a amarga surpresa. Alexandre Dumas, o pai, nunca foi um exemplo de fidelidade. Casara-se com Ida Ferrier atraído por um dote que lhe pagou muitas dívidas: Ida foi o seu banco bom. Uma noite de tempestade fê-lo voltar a casa. Encontrou na cama de Ida outro homem, o seu melhor amigo Roger de Beauvoir, padrinho desse casamento. Ainda houve um segundo de paralelepipédica fúria córnea, e quem sabe se Alexandre Dumas não teve até vontade de bater em Dostoievski, mas ouvindo a gelada angústia do vento e da chuva lá fora, Alexandre Dumas deixou que tombasse a pax romana naquele quarto: “Ajeitem-se, por favor, e arranjem espaço para mim!”
E deixem-me contar uma história que, por bem trovata, merecia, não o sendo, que fosse verdadeira. É a história que se conta de todas as actrizes mais mediáticas ou pulposas do que propriamente talentosas. Acreditemos, então, que Pia Zadora representava o “Diário de Anne Frank” num palco nova-iorquino. A peça arrastava-se e a Zadora daria de Anne Frank uma imagem catequista e intragável. Espectadores engoliam punhos para afogar o tédio troiano. No palco, batem à porta, Zadora esconde-se. Logo, à procura da adolescente, entram os faunescos – perdão, ciclópicos – nazis. O mais ultrajado dos espectadores, sem tempo a perder e para evitar surpresas, grita do meio da sala: “Ela está escondida no sótão!”
A verdade não tem graça nenhuma: Pia Zadora nunca representou “O Diário de Anne Frank”. Tem mais graça bater em Dostoievski.
Todas as fotos têm uma história. Esta também. O João Lopes e eu éramos ao tempo programadores da Cinemateca e críticos de cinema no Expresso. Fomos entrevistar o Wim Wenders. O Paulo Branco, é claro, tinha-o trazido, e já não sei se foi antes ou depois, filmou com ele em Lisboa. Se bem me lembro almoçámos e conversámos no terraço do Hotel Tivoli e fomos depois andar pelos telhados de Lisboa, mais concretamente pelos do cinema Éden, nos Restauradores. Tinha acabado de ser fechado o cinema, mas ainda, no nosso idealismo, pensávamos que o poderíamos salvar. Nem as asas do desejo de Wenders fizeram o milagre. O Éden tombou e foi Virgin, primeiro, e hotel depois, sabe Deus para quê, que tudo durou bem menos do que as décadas de fitas, tiros e beijos do Éden. O João e eu aprimorámo-nos com gravatinhas. O Wim Wenders parece saído do nova-iorquina Interview e o Paulo está com um dos mais selectos penteados que algum dia lhe vi, apenas uma traiçoeira fralda a assomar por baixo do pullover.
No princípio não era só o Verbo. Era o Verbo e era a Lata em que se enrolava, como a coleante víbora do paraíso, o nitrato ou acetato do filme. Naquele tempo, em verdade, verdade vos digo, a Lata era o Pão de que se alimentavam as nossas descuidadas bocas. No princípio, nesse verdadeiro Génesis, que foi o nascimento da Cinemateca Portuguesa – rabinato e papado que me perdoem –, a Lata, a sagrada Lata fazia o papel do Pai Celestial que provê aos biquinhos das aves do céu e faz crescer os lírios do campo. A Lata era o Verbo, a sala de cinema o seu templo.
Lembro-me de ter ouvido, não sei se há dias, se há vinte anos, uma professora com um decote deleuziano a falar da sala de cinema, espaço e tempo e coisa e tal. O decote cerzia a sala toda em rizomas, suspensão e movimento. Deixo-me morrer devagarinho nesse decote desconstrutivista e, já de olhos fechados, recordo três doces sobressaltos épicos da minha pequena vida de programador de cinemateca.
Um espectro que assombra a humanidade
De repente, com a boca a saber-me a madalenas, lembro-me do Grande Auditório da Gulbenkian na noite em que, mil e duzentas pessoas a transbordar das cadeiras, balcão e plateia em overbooking, o João Bénard subiu ao palco para apresentar, em sessão dupla, o Nosferatu de Murnau e o Nosferatu de Herzog.
Era a Cinemateca transplantada para a Gulbenkian e parecia o costume, uma sala contente de o ver e ouvir, à espera de imagens e de movimento. Veio o escuro e veio a avassaladora mudez do filme de Murnau, num tempo em que as cinematecas ainda projectavam filmes mudos sem música. A surpresa do total silêncio para uma plateia sem hábitos desse cinema, sem o hábito dos gestos desmesurados de Max Schreck o mais nosferatu, o mais vampiro que um actor algum dia se deixou filmar, fez a sala tossir, pigarrear.
Normalmente, abafados pela banda sonora, no cinema não nos ouvimos. Ali, a sala ouvia-se: mexer o rabo na cadeira ouvia-se, engolir ouvia-se, bater as pestanas também. E a sala, nervosa de se ouvir, frente a um ecrã de sombras, medo e silêncio, começou a rir-se. Foram os primeiros vinte minutos de cinema mudo mais memoráveis, caóticos e irrespeitosos de que me lembro: até que o filme de Murnau, sinfonia silenciosa, raptou os risos, as gargantas e os catarros, os rabos inquietos e, dos anos 80 em que estavam, levou os espectadores para os anos 20.
Nada se compara à experiência que é o espectáculo de uma sala a render-se a um filme, uma sala a descobrir o sublime em gestos que, sem a confiança da entrega, seriam ridículos, mil e duzentas pessoas desconhecidas, odiosamente diferentes, com o sangue gelado pela nocturna silhueta de um vampiro que só pode ser vencido pela gloriosa luz da aurora. Uma sala e é a humanidade toda junta, irmanada, no canto escuro, esconjurando os mais assombrosos espectros.
Luís de Pina, fotógrafo, e eu, embevecido, a ouvir o Eng. Belmiro de Azevedo
Tinham mães que os amavam
E saio da Gulbenkian. Chama-me à sala da Cinemateca, Luís de Pina, que por ser dela director era meu director também. Chego e vejo que a calva e resplandecente cabeça de Luis de Pina paira sobre um tormentoso mar punk. Já voltaremos à sua cabeça. Antes, deixo-vos com uma pérola de filosofia social: desiludam-se os proactivos, não cria comoções sociais quem quer e, às vezes, nem quem pode.
O João Bénard concebera um megalómano Ciclo do Cinema Musical. Sonhávamos com plateias a cantar e dançar o Singin’ in the Rain. Entre as obras-primas escolhidas para ovação e aclamação, o João deixou escorregar um filme mais recente, piscadela de olho a uma minoria juvenil, que se vestia de negro e primava pelo brilho metálico.
Era o The Great Rock and Roll Swindle e foi programado para a então única sala da Barata Salgueiro, de uns compostinhos 250 lugares. O que aconteceu foi tudo menos composto. O filme era o dos alucinantes Sex Pistols de que faziam parte o malcriadíssimo e mal-cheiroso Johnny Rotten e o negramente lendário Sid Vicious.
De repente, duas da tarde no arabizante palacete da Cinemateca, da rua emergem vagas também malcriadíssimas e mal-cheirosas. Onda a onda, iam-se acastelando miúdos e miúdas de furiosos cabelos espetados, farpas negras ou de cores néon, mil brincos a rasgar orelhas. Vestiam de negro, um negro que de luto nada tinha.
Comiam pastéis de bacalhau, arroz que a mãe de algum fizera (tinham mães que os amavam, claro), e bebiam litrosas de tinto. Punks. Estávamos, até à rua, inundados de punks. Já tínhamos visto meia-dúzia. Descobríamos que eram um exército e não cabiam no cinema.
A Cinemateca não tinha telhados de vidros, mas eram de vidro as portas da sala. A pressão das botas negras da infantaria punk fez-se sentir. O nosso porteiro teria pouco mais de metro e meio. A ele podia eu gabar-me, mas não muito, da minha altura; voluntariei-me para parlamentar à massa ululante. Observaram-me com curiosidade entomológica: um coro de arrotos e outros flatos fez-me recuar.
Com o seu amável corpanzil de Robert Mitchum, surgiu o Luis de Pina. Olhar e palavras doces, apelou à compreensão ciclónica dos punks portugueses. A um ligeiro movimento de alívio e aparente conciliação seguiram-se ultrajantes manifestações de alegria que compreendiam homéricas cuspidelas e – volto a ver aqui a calva cabeça – uma escura bota a cruzar os ares, visando o meu director. Não sei o que é que eles respiravam, mas os vidros ficaram aflitos e embaciados e o da bilheteira estalou com estrondo. A alegria punk é assim, física, corporal, sem dualismos cartesianos: o corpo é a alma. Chegou a polícia, o sossego do cassetete.
As primeiras imagens do filme mandaram a sala ao chão. O que lá dentro se berrou, lá dentro ficará para sempre, e o triunfo da escatologia que se seguiu teve de ser lavado durante uma semana. Sim, era o público entregar-se, espontâneo, a um filme! Não há doutor nem engenheiro social que invente uma comoção daquelas.
Depois do “Je Vous Salue”, fomos jantar. Mas este é outro jantar: que volta estarei eu a dar ao João Bénard?=
Ave-maria cheia de graça
E volto ao decote deleuziano. Sai dele, como a língua do Espírito Santo, Jean-Luc Godard, exemplo supremo da alta costura francesa. Filmou, da Virgem Maria, uma estranha anunciação. Chamou-lhe Je Vous Sale Marie e não há, no Portugal de 1985, distribuidor que lhe pegue. Pegou-lhe a Cinemateca que o está já a exibir. Entremos na sala.
Entrámos e veja-se: o caldo entornou-se. Um jovem católico virou-se para o chefe de polícia e disse-lhe em tom de desgarrada: “Gostava que fizessem isso à sua mãe?” Ó meu amigo, palavras não eram ditas e já o até então polidíssimo agente lhe enfiava uma gravata que, vi eu, fez o ar dos pulmões do jovem bater no tecto da sala.
Tossia ele, tossia toda a velha sala da Cinemateca. Krus Abecassis, lendário presidente da Câmara, prometera escaqueirar tudo se a Cinemateca se atrevesse a exibir o filme. Fomos perguntar ao João Bénard, que era quem mandava em nós, se nos atrevíamos. O João foi claro: “Nessas coisas sou uma senhora séria. Ora, como sabem, senhora séria não tem ouvidos.”
Preparámo-nos para o combate. Se de algum lado estava, a Graça estava do nosso lado. João Bénard era de um catolicismo doce que lhe impregnou o olhar e a escrita toda a vida, logo a ele que, tanto mudando, em nada de essencial algum dia mudou. Sentíamo-nos, por isso, legitimados para passar um filme que mostrava o desejo de gravidez e o bendito ventre cujo fruto talvez fosse Jesus.
Éramos democratas, mas não éramos parvos: armou-se um dispositivo de Aljubarrota. Vigilância da PSP e dois dos nossos projeccionistas, o Grave e o Gigante, tipos que combinavam volume de boxeur com altura de defesa-central, a filtrar entradas no rendidlhado portão da rua. Vendiam-se dois bilhetes por pessoa, o que frustrou as encantadoras virgens que quiseram comprar a lotação do cinema.
A sala era um ovo cheio. Gente no chão e no ar uma dúbia excitação, misto de primeira comunhão e noite de núpcias. Fez-se escuro: a volúpia das imagens aflorou a tela e os jovens católicos pularam em ave-marias e salve-rainhas, subindo ao palco a esbracejar contra as sombras blasfemas.
As luzes reacenderam-se iluminando um belo e poético caos. Enquanto nós gritávamos aos jovens Savonarolas que Je Vous Salue Marie era a apologia da Imaculada Conceição, um filme sobre o mistério da mulher que, entre tormento e dúvida, aceita uma violenta graça e sobre o homem, José, que se torce de ciúmes, mas por amor confia, os velhos cineclubistas, com danada nostalgia comunista, apontavam à polícia os insurrectos: “É aquele… e aquele”. Era um mundo às avessas: velhos esquerdistas bufavam à polícia e um miúdo, com vozinha de copo de leite, gritava-lhes: “Pides.”
Num arroubo místico, um dos rapazes desmaiou. Ajoelhou-se ao lado dele uma menina de calças de xadrez. Era bonita e parecia que, segurando-lhe a mão, rezava. Com vontade de rezar com ela, ainda pensei: “Vês, meu anjo, como ser virgem é estar disponível!” Saberia ela que, assim, na sua ajoelhada angústia, rimava com a imagem de Myriam Roussel no filme apóstata de Godard, repetindo prosaica e séculos depois, o poético mistério mariano?
A mãe de Louis Aragon era sua avó. Sua irmã, sim, era a mãe.
Recapitulando, o pai, que nunca o perfilhou, foi seu padrinho de baptismo. Seduzira a mãe, tinha ela 17 anos. Para salvar a honra de todos os conventos, a avó apresentou a criança ao mundo como seu filho adoptivo. Aragon viveu nessa mentira piedosa e cruel, a de ter a mãe como irmã, até aos 19 anos. Soube de tudo só e quando ia partir para as trincheiras da I Grande Guerra, a dantesca morte de boca aberta à sua espera.
Embuste e decepção, esses lençóis de infância e adolescência, hão de sempre ser a cama em que se deitará a vida de Aragon, figura tão amada como odiada das letras francesas.
E nem é preciso começar pela sua traída e traiçoeira relação com o surrealismo. Vejam-no apaixonado pelo requintado perfil e alto pescoço da libérrima Eyre de Lanux, designer vanguardista americana. Logo ela, conhecendo o futuro fascista Drieu de la Rochelle, amigo do peito do futuro comunista Aragon, deslarga este para dormir com aquele. Aragon lambe as feridas indo lamber a densa beleza e os requebros metafísicos de Denise Lévy, que depressa se casa com Pierre Naville, outro amigo de Aragon. Com amigos assim, para que precisaria Aragon de inimigos?
Já o infatigável Aragon se volta a deitar. Agora com a milionária herdeira da Cunard, glória da marinha mercante inglesa. Nancy Cunard é poeta, anarquista, e vai com sede ao pote que é a vida, e da vida ao entranhado sexo. Já com dois anos de salgado conúbio, Aragon descobre que o transatlântico Cunard pára em vários cais de Veneza. Os romances de Nancy arrebatam a cidade: um firme e anónimo moço da hotelaria, um conde italiano e, num Everest amoroso, o pianista negro Henry Crowder. A mãe de Nancy, a toda em ouro Lady Cunard, terá esta tirada de prata: “Mas a minha filha conhece um negro?”. Aragon suicida-se. E já me modero e corrijo: tenta suicidar-se.
Num bar de Paris, vem ter com ele uma exilada de luxo, a escritora russa Elsa Triolet. Queria conhecê-lo e às duas da manhã, expulsos pelo operariado hoteleiro, estão nas ruas de Paris, a lua a murmurar-lhes coisas inconfessáveis. Acabam, ou começam, no quarto de Elsa, no hotel Istria. Na manhã seguinte, com fome de brioches, chocam na rua com Maiakovski, espécie de Neymar da revolução literária soviética, mais quedas no gramado do que golos na redes. Fora com ele que a virgem Elsa se iniciara nos mistérios em que toda a vergonha se perde e todo o corpo se empolga. Mas logo ele, conhecendo a irmã mais velha de Elsa, lhe partiu o coração, abandonando-a pela outra.
Desabafo: Elsa e Louis foram depois, um ou outro petit-déjeuner ou lanche mais desavindo, o casal unânime e o par amoroso por aclamação. Antes de a conhecer, já ele era comunista, como os outros surrealistas. Todos, menos ele, deixariam de o ser. Com Elsa, e viajando à União Soviética, a paixão ideológica asfixia-o: incensa o Pacto de comunistas e nazis, vai de violino pelos telhados a cantar Estaline, com uma pulsão erótica que nem Camões a cantar Vénus. Nada o detém, nem os campos de concentração, em que vê a excelsa reeducação do homem pelo homem, sinal da grandeza de Estaline. Quando André Gide denuncia em livro os gulags, o seu secretário, Pierre Herbart, está em Madrid, em plena Guerra Civil espanhola. Aragon telefona à embaixada soviética para que o apanhem e fuzilem. André Malraux salva-o. Herbart veio depois a casa de Aragon. O poeta poderá ter-se esquecido de muita coisa, dessa visita, jura Herbart, guardou para o resto de vida sentida memória.
É um tipo baixo, redondinho. Está de costas para o campo adversário e recebe a bola. Veste camisola azul e calção preto e ainda está no seu meio campo, a dois metros da linha divisória e do grande círculo. Recebe a bola com o pé direito e roda para ficar com ela no pé esquerdo. Nesse subtil movimento de 180 graus já deixou dois adversários para trás, dois anjinhos de camisa e calção brancos, dois anjinhos ingleses.
Galga vinte, mais de trinta metros e há outro homem que lhe vem fazer a cobertura, mas um ligeiro desvio de bola com o pé esquerdo do homem de azul logo o tira do caminho, para não dizer do tempo e do espaço. E o baixinho e redondo rapaz de azul já está à entrada da área inimiga. Os defesas ingleses estão em linha, impecavelmente como sempre os defesas ingleses estão, e um dos centrais vai ao homem. Mete o pé esquerdo, mas o seu pobre pé esquerdo – pé esquerdo de back – não se compara à subtileza e arte do pé esquerdo do homem de azul e negro que controla a bola. Com o mais argentino dos toques, num milésimo de segundo, já o veloz fugitivo lhe dá um metro de avanço.
O imparável homem baixo, redondo, de coxas cheias, está agora dentro da grande área. O defesa esquerdo, o outro central e o guarda-redes adversários fecham-se num garfo que o tenta crivar com três dentes. E ele, o homem tão gordinho como um jovem merceeiro, tão gordinho como um empregado de restaurante que se vê que gosta de comer suculentos contra-filé e achurras, só com o pé esquerdo, sempre com o pé esquerdo, adorna a bola para a direita, evitando o guarda-redes, suporta a entrada do lateral esquerdo já atrasado e não deixa que o central sonhe sequer ser parte interessada. E, com a nostalgia de uma bailarina de Degas, a bola despede-se do pé esquerdo do homenzinho de azul e negro para ir beijar na boca as redes da baliza inglesa de um estádio mexicano. O homem gordinho tomba, mais eufórico do que esgotado, nessa relva posta e regada para nela se sonharem os mais olímpicos dos sonhos.
Esta é a relva. E o slalom divino e o pé esquerdo de que tenho estado a falar são de Maradona. De Diego Armando Maradona. Juraria, aliás, que, depois dele ter recebido a bola, só o seu pé esquerdo conduziu, tocou, fintou, desviou e rematou o que eu julgo ser o mais belo golo de sempre da história do futebol. Descrevi-o e na minha descrição ele fintou, iludiu, ultrapassou, venceu gloriosamente seis adversários e é mentira, que eu bem sei que foram sete. Só que não há forma de as palavras puderem descrever a jogada e caber ainda o sétimo inglês tirado da fotografia – aquilo sim, foi um Brexit e god save the queen.
E agora vejam, Maradona já se levantou, corre e exulta ao longo da linha final. Vai direito à bandeirola vermelha espetada na marca de canto, à espera que cheguem os companheiros para festejarem e levarem a inocente e pura alegria ao povo que está nas bancadas. Há de haver ali advogados e engenheiros, talvez operários e empregados de escritório, um doce casal burguês de Buenos Aires e dois amigos das Pampas, malta que dança tango, um ou dois leitores de Borges. Há ricos e pobres e Maradona, a alegria gordinha e aos saltos de Maradona, une-os a todos.
E eu, ecuménico que sou, diria mais, a alegria, o prazer descarado quase obsceno de Maradona, une o estádio inteiro, os argentinos vencedores e os ingleses vencidos. Une-os o prazer do futebol. Pouco antes, nesse mesmo jogo, Maradona, rebelde, irreverente, impulsivo, genuíno, marcara um golo com a mão – com a mão de Deus, ironizou ele, nesse tempo em que o futebol era superior e por isso se autorizava e deliciava com a ironia. Sem esse golo a mitologia do futebol seria mais pobre – abençoado árbitro que se enganou e deu ao mundo, durante semanas e semanas, a possibilidade de sorrirmos. O que esse golo e essa mão serviram de cerveja e conversa em pubs ingleses.
Foi assim que eu aprendi a ver futebol. E sei que estou a enganar-me nas palavras: o que eu quero dizer é que foi assim que Maradona ensinou o mundo a ver futebol. Um futebol tão enérgico como a prosa em fiesta de Hemingway, tão labiríntico como as ficciones de Jorge Luis Borges, tão erótico como el toro soy yo de Picasso. Morreu hoje, do futebol, o seu melhor demiurgo. Agora, Maradona, o demiurgo, vai a enterrar. Com Maradona é a arte e a alegria que ficam também debaixo de sete palmos de terra:
Ahora está muerto y con él Cuanta memória se apaga De aquele Palermo perdido Del baldio y de la daga.
Estava a olhar para o cinema e para a literatura e o cinema e a literatura a olharem para mim já meios virados, como as miúdas da Vila Alice, em Luanda, quando eu era adolescente – “o que é que foi? estás a olhar o quê? nunca viste?”
Não, nunca tinha visto. Lembrei-me de uma coisa que o insidioso Norman Mailer disse do J. D. Salinger: que o Salinger era the greatest mind ever to stay in prep school. Apetece-me roubar-lhe a ideia e virá-la ao contrário: o cinema é uma aventurosa arte de liceu. Ou seja, o cinema nunca saiu do liceu. Ficou lá, juvenil, cheio de aventura, com um lindo lirismo ingénuo.
Faz uma grande diferença. A literatura, que já tem outro caparro, séculos de sarro subversivo e subtexto, com tantas sílfides como hipérboles, a literatura é hercúlea quanto baste para aguentar a universidade e não se ir abaixo de desgosto.
O cinema não. Se lhe cai a universidade em cima – essa universidade que já nasceu caturra, de casaca e seminário, de monóculo e work in progress – se lhe cai em cima o Deleuze ou os primos, hermenêutica e semiótica, o cinema torna-se logo uma merda execrável.
O mais bonito do cinema é ser à frente liceu e nunca atrás museu. É por isso que o mais belo livro de sempre do cinema é essa conversa de um falso e anafado mestre com um aluno que, de tanto chumbar, nunca há-de sair do liceu. O gordo Hitchcok, o “fugueiro”* Truffaut
O livro do gordo e do fugueiro
*Fugueiro – Termo usado em Luanda, no liceu Salvador Correia: o que “fuga”, o que falta às aulas.
Escrevi este texto nos anos 80 – em 1987? – julgo que para o ciclo Coppola em Contexto. Já o fui remendando e cerzindo sempre que a Cinemateca exibe o filme e me pede para o rever. Embora seja sério demais – o que eu era sério e certinho, nesses tempos – continua a ser do meu sangue 🙂 . Deixo-o aqui. E prometo trazer mais dois ou três das velhas “folhas” da Cinemateca.
The Deer Hunter é, simultaneamente, um dos mais fascinantes filmes sobre a guerra do Vietname e sobre o impacto dessa guerra na América profunda. É também, e apesar do evidente e sentido desencanto, uma reafirmação da ideia de comunidade e do seu sentido mais nobre, na linha do que o cinema americano clássico fez nos seus melhores dias. A afirmação não será pacífica (ou, pelo menos, já foi menos): ilustres críticos e analistas um pouco por todo o lado, e também em Portugal, correram o filme a pontapé. E nem vale a pena estar a fugir com o que toda a gente sabe à seringa: grande parte das reservas que se levantaram ao filme foram de natureza política. Prendem-se com o retrato racista e quase provocador (em função da opinião dominante) dos combatentes norte-vietnamitas, que vemos, no filme, nas mais atrozes práticas. Podia argumentar com o facto dos vietnamitas constituírem um elemento acessório do filme, mas já agora resolva-se o acessório antes de se ir ao essencial.
Como é que os defensores do filme de Cimino descalçaram, ao tempo, esta bota ideológica? Em primeiro lugar, alegando que as qualidades de um filme não se medem pela sua verosimilhança, nem tão pouco pela sua verdade histórica. Retomando uma comparação que não é minha, mas que acompanho, Eisenstein está a milhas da verdade histórica nos seus retratos dos capitalistas em “Outubro”, sem que, no entanto, a qualidade panfletária da obra a impeça de ascender ao estatuto de “filme maior” na história do cinema. Em segundo lugar, a visão que aos espectadores têm dos vietnamitas, corresponde, dizia-se, a uma visão mediatizada: “Eles existem meramente para objectivar os medos Ocidentais em relação à raça amarela”, escreveu Gilbert Adair, num ensaio intitulado “Hollywood’s Vietnam”. Last but not least, a história, que é por vezes cruel para com ideias feitas e verdades definitivas, demorou pouco a demonstrar que as atrocidades em guerra não são um exclusivo de ninguém e que os vietnamitas não estavam, como povo, isentos da atracção pelo papel de agressor. Cada um tirará destes pontos as ilações que muito bem entender, mas julgo que estas três razões concorrem para desvalorizar, ou pelo menos matizar, a pertinência do argumento “historicista” com que, tantas vezes, se confrontou ou pretendeu “arrumar” The Deer Hunter. E passemos ao essencial.
Lançado no mercado americano um pouco antes de ApocalypseNow (a rodagem do filme de Coppola começou antes, mas foi longa e os problemas de pós-produção atrasaram ainda mais a sua estreia), The Deer Hunter tem uma estrutura narrativa muito mais clássica do que o filme de Coppola, com um protagonista (Michael/De Niro) com estatuto muito próximo do do herói clássico e que Michael Cimino descreve nestes termos:
“Michael tem reticências em relação aos seus amigos, é um chefe natural, mas é sobretudo um homem de princípios, tem uma ética vital bem definida, que aliás exprime quando fala de caça, mencionando o princípio de um só tiro. Michael tem uma afinidade espiritual com o veado.Nunca se é bom caçador se não nos metemos na pele da presa, se não nos identificamos com o veado. Ele tenta fazer partilhar a sua ética a um dos seus amigos, mas a sua tentativa fracassa. Ele não a pode guardar só para si, mas ao mesmo tempo ninguém a pode também partilhar.”
Não é difícil, julgo, reconhecer nesta conjugação da ética e da solidão dois dos atributos do herói clássico do cinema americano. Como clássicos são também os elementos fundamentais do filme. A acção do filme de Cimino ocorre numa pequena cidade industrial da Pennsylvania e numa comunidade operária de emigrantes russos, dela se destacando um grupo de amigos cujo percurso se cumpre num período temporal anterior e posterior à experiência da guerra no Vietname. A acção é marcada por três elementos simbólicos, o casamento, a caça e a roleta russa. Mas em qualquer um dos três actos do filme, Cimino quer e consegue que prevaleça o mesmo princípio: fazer um filme em que o elemento físico seja primordial, captando personagens em primeiro grau.
A sequência do casamento, cujo centro é a longa cena do baile, com a inscrição e a insistência nas marcas étnicas – e é inescapável estabelecer de passagem um paralelo com a sequência do casamento que abre The Godfather de Coppola – combina, como escreveu Richard Combs no “Monthly Film Bulletin”, a afirmação do carácter dos personagens com o sentido dramático, que resulta da estranha aparição do “boina verde” ou com o simbolismo trágico das gotas de vinho que caem e mancham o branco vestido vestido de noiva de Angela.
Foquemo-nos no sinal que é a irrupção no casamento do boina verde. De Niro tem nos braços Meryl Streep. Dançam esse prodígio de mobilidade horizontal que tem por título Can’t take my eyes off of you. Ela é a namorada de Christopher Walken, o melhor amigo dele. Os corpos de De Niro e Streep enleiam-se, colam-se um bocadinho, nem um fio de ar entre eles, febre a mais. De Niro, que nesse The Deer Hunter, é homem de “one shot”, um tiro só, oscila entre o ânimo perpassante que o acomete e a lealdade ao amigo. Disfarça, embaraça-se, inclina-se para ela, convida-a para uma cerveja.
“I’ll get you a Rolling Rock, é uma boa cerveja, a melhor que há”, diz De Niro ao vestido rosa de Meryl Streep e, num eflúvio erótico, arrasta-a do salão do casamento para o bar. Streep, com o tímido sorriso de mulher que sabe o que quer, mas se defende de acessos de paixão, De Niro de olhos e cabeça a derramarem-se no colo dela, a Rolling Rock já na mão, e é quando entra o inconvidado boina verde. Sinistro, silencioso e sub-reptício. Traz na farda um prenúncio de Vietnam. E De Niro sabe, ao vê-lo, que a Rolling Rock que tem na mão, é a última cerveja antes do inferno.
Segundo Cimino, a longa sequência do casamento está no filme, tão demoradamente, por razões pragmáticas: “Com efeito é uma ideia pragmática para resolver o problema funcional do desenvolvimento dos personagens. Na maior parte dos filmes contemporâneos, há um ou dois personagens principais; aqui há pelo menos uma meia-dúzia. Para permitir ao público conhecê-los bastante bem, e sem que ele se dê conta, de maneira subtil, era preciso conceder-lhes um mínimo de presença no écran. Não se fica com a ideia consciente de que os personagens são apresentados através do casamento, mas é isso que se passa, de facto. Além do mais, se não se sentisse nada pelos personagens, a experiência bélica não adquiriria ela mesma nenhuma significação real e profunda. A função dessa hora é fazer-nos partilhar a sua vida, antes de nos fazer partilhar o seu pesadelo.”
Na sequência da caça, Cimino estabelece a que foi considerada a metáfora central do filme – o princípio do “one shot” – que depois é transferido dramaticamente para a mecânica da roleta russa. Para alguns críticos americanos, a roleta russa é, em The Deer Hunter,uma metáfora da atitude da nação americana, que dá tiros em si mesma. Para Cimino, no entanto, mais do que a metáfora do suicídio de uma nação, a roleta russa “é um meio de dramatizar o elemento do acaso que existe em toda a guerra. Não há mais razão para que morra um homem do que outro. Eu quis comprimir a experiência quotidiana do combate, essa impossibilidade de calcular as hipóteses de sobrevivência… Longe de simbolizar o psiquismo de uma nação inteira, quis resolver o problema de exprimir num mínimo de minutos o horror do combate.”
Mais do que as cenas da roleta russa, há duas caçadas de The Deer Hunter que são cenas da minha vida. Admiro-lhes a filosofia do “One shot! Two shots is pussy” (traduzo, não traduzo? Olha, não traduzo). São cenas simétricas: na primeira De Niro, um só tiro, mata o veado; na segunda renuncia ao seu “one shot” e funde-se com a Natureza.
A simetria e o equilíbrio são centrais em Deer Hunter. Além da simetria e equilíbrio o que lhe chega dos actores, em particular de De Niro, John Cazale (um soberbo contraponto ao “heroísmo” dos seus companheiros, tão cínico e sinistro como John Carradine nos seus melhores papéis) e Meryl Streep (cuja fragilidade é, por sua vez, ética e esteticamente sincera) – radica também no contraste entre tempos longos e tempos breves, que relevam de uma estrutura musical, de resto “comentada” pela própria utilização da música na banda sonora. Lembro, primeiro, a jubilação física que corresponde à canção que todos cantam no bar de John, antes do casamento de Steven. De Niro e Christopher Walken estão a jogar snooker, enquanto a juke box debita o Can’t take my eyes off of you”. De Niro, Walken e os quatro amigos, numa coreografia de jovens machos em noite sabática, jogam, bebem, cantam cada um para seu lado, até que o refrão os junta num coro de i love you baby, and if it’s quite alright, I need you, baby, to warm a lonely night. A amizade e a confiança deles queriam ficar ali, guardadas para sempre. Ficariam se o filme não os tivesse destinado ao Vietnam que lhes secará a voz na garganta.
E recordo, por fim, a mais audaciosa cena sentimental do filme, depois do funeral de Walken. O sentimento de uma reconciliação desejada desenha-se nas notas do God Bless America, trauteadas primeiro por John, depois por todos, pela voz emocionada de Streep, pela farda já inútil de De Niro, pelo inteiro grupo que é, se quisermos que seja, a América.
The Deer Hunter é a viagem de uma nação (simbolizada numa pequena comunidade) ao fundo de si mesma, encenada por alguém que tem um sentido da comunidade comparável só ao de John Ford. Com Apocalypse Now, The Deer Hunter forma o painel definitivo sobre a guerra do Vietname. Incontornável. Até hoje, e já estamos a fechar as portas de 2020, ainda insuperável.