Escrevi este texto nos anos 80 – em 1987? – julgo que para o ciclo Coppola em Contexto. Já o fui remendando e cerzindo sempre que a Cinemateca exibe o filme e me pede para o rever. Embora seja sério demais – o que eu era sério e certinho, nesses tempos – continua a ser do meu sangue 🙂 . Deixo-o aqui. E prometo trazer mais dois ou três das velhas “folhas” da Cinemateca.

The Deer Hunter é, simultaneamente, um dos mais fascinantes filmes sobre a guerra do Vietname e sobre o impacto dessa guerra na América profunda. É também, e apesar do evidente e sentido desencanto, uma reafirmação da ideia de comunidade e do seu sentido mais nobre, na linha do que o cinema americano clássico fez nos seus melhores dias. A afirmação não será pacífica (ou, pelo menos, já foi menos): ilustres críticos e analistas um pouco por todo o lado, e também em Portugal, correram o filme a pontapé. E nem vale a pena estar a fugir com o que toda a gente sabe à seringa: grande parte das reservas que se levantaram ao filme foram de natureza política. Prendem-se com o retrato racista e quase provocador (em função da opinião dominante) dos combatentes norte-vietnamitas, que vemos, no filme, nas mais atrozes práticas. Podia argumentar com o facto dos vietnamitas constituírem um elemento acessório do filme, mas já agora resolva-se o acessório antes de se ir ao essencial.
Como é que os defensores do filme de Cimino descalçaram, ao tempo, esta bota ideológica? Em primeiro lugar, alegando que as qualidades de um filme não se medem pela sua verosimilhança, nem tão pouco pela sua verdade histórica. Retomando uma comparação que não é minha, mas que acompanho, Eisenstein está a milhas da verdade histórica nos seus retratos dos capitalistas em “Outubro”, sem que, no entanto, a qualidade panfletária da obra a impeça de ascender ao estatuto de “filme maior” na história do cinema. Em segundo lugar, a visão que aos espectadores têm dos vietnamitas, corresponde, dizia-se, a uma visão mediatizada: “Eles existem meramente para objectivar os medos Ocidentais em relação à raça amarela”, escreveu Gilbert Adair, num ensaio intitulado “Hollywood’s Vietnam”. Last but not least, a história, que é por vezes cruel para com ideias feitas e verdades definitivas, demorou pouco a demonstrar que as atrocidades em guerra não são um exclusivo de ninguém e que os vietnamitas não estavam, como povo, isentos da atracção pelo papel de agressor. Cada um tirará destes pontos as ilações que muito bem entender, mas julgo que estas três razões concorrem para desvalorizar, ou pelo menos matizar, a pertinência do argumento “historicista” com que, tantas vezes, se confrontou ou pretendeu “arrumar” The Deer Hunter. E passemos ao essencial.
Lançado no mercado americano um pouco antes de Apocalypse Now (a rodagem do filme de Coppola começou antes, mas foi longa e os problemas de pós-produção atrasaram ainda mais a sua estreia), The Deer Hunter tem uma estrutura narrativa muito mais clássica do que o filme de Coppola, com um protagonista (Michael/De Niro) com estatuto muito próximo do do herói clássico e que Michael Cimino descreve nestes termos:
“Michael tem reticências em relação aos seus amigos, é um chefe natural, mas é sobretudo um homem de princípios, tem uma ética vital bem definida, que aliás exprime quando fala de caça, mencionando o princípio de um só tiro. Michael tem uma afinidade espiritual com o veado. Nunca se é bom caçador se não nos metemos na pele da presa, se não nos identificamos com o veado. Ele tenta fazer partilhar a sua ética a um dos seus amigos, mas a sua tentativa fracassa. Ele não a pode guardar só para si, mas ao mesmo tempo ninguém a pode também partilhar.”
Não é difícil, julgo, reconhecer nesta conjugação da ética e da solidão dois dos atributos do herói clássico do cinema americano. Como clássicos são também os elementos fundamentais do filme. A acção do filme de Cimino ocorre numa pequena cidade industrial da Pennsylvania e numa comunidade operária de emigrantes russos, dela se destacando um grupo de amigos cujo percurso se cumpre num período temporal anterior e posterior à experiência da guerra no Vietname. A acção é marcada por três elementos simbólicos, o casamento, a caça e a roleta russa. Mas em qualquer um dos três actos do filme, Cimino quer e consegue que prevaleça o mesmo princípio: fazer um filme em que o elemento físico seja primordial, captando personagens em primeiro grau.

A sequência do casamento, cujo centro é a longa cena do baile, com a inscrição e a insistência nas marcas étnicas – e é inescapável estabelecer de passagem um paralelo com a sequência do casamento que abre The Godfather de Coppola – combina, como escreveu Richard Combs no “Monthly Film Bulletin”, a afirmação do carácter dos personagens com o sentido dramático, que resulta da estranha aparição do “boina verde” ou com o simbolismo trágico das gotas de vinho que caem e mancham o branco vestido vestido de noiva de Angela.
Foquemo-nos no sinal que é a irrupção no casamento do boina verde. De Niro tem nos braços Meryl Streep. Dançam esse prodígio de mobilidade horizontal que tem por título Can’t take my eyes off of you. Ela é a namorada de Christopher Walken, o melhor amigo dele. Os corpos de De Niro e Streep enleiam-se, colam-se um bocadinho, nem um fio de ar entre eles, febre a mais. De Niro, que nesse The Deer Hunter, é homem de “one shot”, um tiro só, oscila entre o ânimo perpassante que o acomete e a lealdade ao amigo. Disfarça, embaraça-se, inclina-se para ela, convida-a para uma cerveja.
“I’ll get you a Rolling Rock, é uma boa cerveja, a melhor que há”, diz De Niro ao vestido rosa de Meryl Streep e, num eflúvio erótico, arrasta-a do salão do casamento para o bar. Streep, com o tímido sorriso de mulher que sabe o que quer, mas se defende de acessos de paixão, De Niro de olhos e cabeça a derramarem-se no colo dela, a Rolling Rock já na mão, e é quando entra o inconvidado boina verde. Sinistro, silencioso e sub-reptício. Traz na farda um prenúncio de Vietnam. E De Niro sabe, ao vê-lo, que a Rolling Rock que tem na mão, é a última cerveja antes do inferno.
Segundo Cimino, a longa sequência do casamento está no filme, tão demoradamente, por razões pragmáticas: “Com efeito é uma ideia pragmática para resolver o problema funcional do desenvolvimento dos personagens. Na maior parte dos filmes contemporâneos, há um ou dois personagens principais; aqui há pelo menos uma meia-dúzia. Para permitir ao público conhecê-los bastante bem, e sem que ele se dê conta, de maneira subtil, era preciso conceder-lhes um mínimo de presença no écran. Não se fica com a ideia consciente de que os personagens são apresentados através do casamento, mas é isso que se passa, de facto. Além do mais, se não se sentisse nada pelos personagens, a experiência bélica não adquiriria ela mesma nenhuma significação real e profunda. A função dessa hora é fazer-nos partilhar a sua vida, antes de nos fazer partilhar o seu pesadelo.”
Na sequência da caça, Cimino estabelece a que foi considerada a metáfora central do filme – o princípio do “one shot” – que depois é transferido dramaticamente para a mecânica da roleta russa. Para alguns críticos americanos, a roleta russa é, em The Deer Hunter,uma metáfora da atitude da nação americana, que dá tiros em si mesma. Para Cimino, no entanto, mais do que a metáfora do suicídio de uma nação, a roleta russa “é um meio de dramatizar o elemento do acaso que existe em toda a guerra. Não há mais razão para que morra um homem do que outro. Eu quis comprimir a experiência quotidiana do combate, essa impossibilidade de calcular as hipóteses de sobrevivência… Longe de simbolizar o psiquismo de uma nação inteira, quis resolver o problema de exprimir num mínimo de minutos o horror do combate.”
Mais do que as cenas da roleta russa, há duas caçadas de The Deer Hunter que são cenas da minha vida. Admiro-lhes a filosofia do “One shot! Two shots is pussy” (traduzo, não traduzo? Olha, não traduzo). São cenas simétricas: na primeira De Niro, um só tiro, mata o veado; na segunda renuncia ao seu “one shot” e funde-se com a Natureza.
A simetria e o equilíbrio são centrais em Deer Hunter. Além da simetria e equilíbrio o que lhe chega dos actores, em particular de De Niro, John Cazale (um soberbo contraponto ao “heroísmo” dos seus companheiros, tão cínico e sinistro como John Carradine nos seus melhores papéis) e Meryl Streep (cuja fragilidade é, por sua vez, ética e esteticamente sincera) – radica também no contraste entre tempos longos e tempos breves, que relevam de uma estrutura musical, de resto “comentada” pela própria utilização da música na banda sonora. Lembro, primeiro, a jubilação física que corresponde à canção que todos cantam no bar de John, antes do casamento de Steven. De Niro e Christopher Walken estão a jogar snooker, enquanto a juke box debita o Can’t take my eyes off of you”. De Niro, Walken e os quatro amigos, numa coreografia de jovens machos em noite sabática, jogam, bebem, cantam cada um para seu lado, até que o refrão os junta num coro de i love you baby, and if it’s quite alright, I need you, baby, to warm a lonely night. A amizade e a confiança deles queriam ficar ali, guardadas para sempre. Ficariam se o filme não os tivesse destinado ao Vietnam que lhes secará a voz na garganta.
E recordo, por fim, a mais audaciosa cena sentimental do filme, depois do funeral de Walken. O sentimento de uma reconciliação desejada desenha-se nas notas do God Bless America, trauteadas primeiro por John, depois por todos, pela voz emocionada de Streep, pela farda já inútil de De Niro, pelo inteiro grupo que é, se quisermos que seja, a América.
The Deer Hunter é a viagem de uma nação (simbolizada numa pequena comunidade) ao fundo de si mesma, encenada por alguém que tem um sentido da comunidade comparável só ao de John Ford. Com Apocalypse Now, The Deer Hunter forma o painel definitivo sobre a guerra do Vietname. Incontornável. Até hoje, e já estamos a fechar as portas de 2020, ainda insuperável.
continua a ser um filme muito bom por muitas coisas. E a sua escrita de então tinha menos rebeldia, mas já era bastante agradável de ler. Agora leva o tempo a por o pézinho fora das linhas, mas fica uma dança de palavras muito sugestiva.
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Mas é que tem toda a razão. E é claro: eu também sentia a instituição cinemateca. Tinha de ser mais pedagógico ou académico…
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Vi este filme quando passou em Portugal. Naquela altura muito se resumia a isto: ou é preto ou é branco, ou é contra ou é a favor, ou é isto ou é aquilo. Naquela altura, O Caçador era(-me, ou -nos) apresentado como um filme a favor da guerra do Vietname, enquanto outros eram contra. E foi assim que o vi. A sua crónica vai mais fundo e deu-lhe um contorno diferente. Melhor, mais bonito. Fui ver o fim do filme. E, apesar de tê-lo visto algumas vezes (algumas partes, porque outras não quero ver) vi este fim de filme pela primeira vez, apesar de todas as outras vezes que o vi.. Agradeço-lhe isso.
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Creia, JdB que fico muito satisfeito por ler este seu comentário.
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