O irretocável desejo de Primavera

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A Primavera é como a primeira luz que rompe a escuridão da sala de cinema. Enche-nos da pior das volúpias, a volúpia infantil. Às 11 da manhã já o Chiado, já a Rua de Santa Catarina lavam os olhos nas nuas e frescas pernas das raparigas, nos decotes que deixam fugir a redonda carne em direcção ao sol. É Primavera e decoto-me eu também: segue-se a cândida exposição das coisas de que, diletante, gosto muito e sem vergonha.

Gosto:

  1. Da primeira saia que o cinema levantou para, mostrando a perna, parar um carro e conseguir uma boleia. Era a perna de Claudette Colbert em “It Happened One Night”.
  2. Do teu decote.
  3. Da dúbia adolescência da perna de Evvie, entalada entre o desejo de um branco e o desejo de um negro, em “La Joven”, o filme americano de Luis Buñuel.
  4. De acácias e jacarandás, do cheiro do jasmim finalmente em flor.
  5. Do fumo de uma sórdida esquadra de polícia de “Basic Instinct”, em que as cruzadas e descruzadas pernas de Sharon Stone são o pêndulo que nos troca os olhos.
  6. De imaginar a espavorida fuga dos inocentes anjinhos nos momentos de volúpia de Deus.
  7. Da alva pureza dos shorts de Jean Seberg em “Bonjour Tristesse” e da indizível convulsão que, querendo desabrochar, neles se esconde.
  8. De um dry martini ao fim de tarde, no Shutters on the Beach, em Santa Monica.
  9. Da miniatura de um Simca vermelho descapotável com que Curd Jürgens faz Brigitte Bardot içar do chão o simétrico e irretocável rabo que dourava ao sol.
  10. De golos de bandeira ao domingo, numa tarde de sol.
  11. Do vestido às riscas de Anna Karina a fazer pendant com os estofos de couro vermelhos e creme do descapotável em que foge com Pierrot. Ele, louco. Ela com a boca cheia de liberdade e de Rimbaud.
  12. De risos e beijos.
  13. Dos olhares de quatro mulheres para o tronco nu de William Holden que, em “Picnic”, de Joshua Logan, queima o lixo no quintal, “naked as an Indian”. Olhares que mordem, olhares de mulheres bonitas cansadas de serem apenas olhadas, que foi o que, quando vi o filme, ouvi Kim Novak dizer.
  14. Sim, gosto das pernas das raparigas quando chega a Primavera.

A paixão dos livros

Esta foi uma charla que fiz na Biblioteca Municipal de Lagos. Comemorava-se o Dia Mundial do Livro. Apetece-me relembrá-la. Em versão não corrigida, mas ligeiramente aumentada.

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Falemos do livro. Do livro que nos apaixona, do livro que cheiramos e lemos como quem lambe, como quem beija. Do livro, podemos dizer que é como uma droga, uma pura droga. Vicia e cria dependência. Uma vez apanhados, já não conseguimos fugir-lhe. Começamos por fazer uma linha e apetece-nos logo fazer outra linha e outra linha e outra linha. Cheira-se o livro, apalpa-se o livro, agarra-se o livro e até pelos olhos nós consumimos o livro. Linha a linha.

De que é que andamos à procura quando lemos um livro? Procuramos no livro a mesma coisa que procurámos na longínqua noite de cacimbo em que decidimos fazer uma declaração de amor à miúda mais bonita lá da nossa rua, segurando-lhe a mão, mas à espera que a anatomia se baralhe toda e que, muito depressa, já nem ela, nem nós saibamos se é mão se é perna, onde acaba a boca de um e começa a boca de outro.

Com todo o respeito por outras opiniões – ou melhor, sem nenhum respeito por outras opiniões, afirmo que o grande e cósmico valor do livro está na erótica emoção que ele desencadeia em nós, no nosso corpo e no nosso espírito.

O livro é um território de alterosa e alcantilada geografia. Nessa geografia encontramos a vertiginosa Fenda da Tundavala que é o medo, o imparável rio da coragem que leva tudo à frente, o belo e húmido vale que é o amor, a impenetrável cordilheira do conflito e do ódio, o planalto da mais parva utopia. É essa a geografia do livro. O livro só é livro se for emoção e é essa gama de viciantes e exaltantes emoções que hoje estamos aqui a cantar e a celebrar.

É triste dizê-lo, mas tenho de vos dizer a verdade: foi a minha mãe que me meteu no vício e me desgraçou. No musseque Sambizanga, em Luanda, tinha eu cinco anos, a Alice, minha querida e devota mãe, de um livrinho religioso de capa dura, lia-me orações de uma beleza devastadora. É preciso ter já muitos calos no cérebro e no coração como os que o macaco tem naquele sítio que não vou dizer, para não sermos sensíveis à beleza que há, por exemplo, nestas palavras: Ave Maria cheia de graça /O Senhor é convosco, / Bendita sois Vós entre as mulheres, / E bendito é o fruto do vosso ventre. Isto é mais do que rezar, é juntar palavras numa harmonia e num ritmo cheia de graça, a roçar o manto do sublime.

A juntar à beleza destes versos, desse mesmo livro, a minha mãe lia-me histórias edificantes de pescadores que enfrentavam noites de tempestade no escuríssimo alto mar, lia-me a história de um inocente que era atirado para a prisão por um rei ímpio e cruel, ou lia-me a história de um mártir que preferia perder a vida a renunciar à sua fé e aos seus ideais.

Um miúdo de cinco anos não resiste, está claro, aos efeitos psicoactivos desta poderosa droga. As leituras da minha mãe, a forma como, na folha de papel de um livro, as palavras se combinavam e entravam em combustão, tudo isso gerava em mim um estado de euforia infantil, uma certa vasodilatação, a capacidade até de andar sobre as águas se me apetecesse andar sobre as águas. O livro foi, já viram, a minha colher de heroína.

Aos cinco anos, a minha mãe meteu-me, portanto, na droga. Aí por volta dos dez anos completou-se o meu ciclo de perdição. Dessa vez, a culpa foi de uma árvore. No meu quintal da rua Alberto Correia, na Vila Alice, outro bairro de Luanda onde vivi, havia mamoeiros, uma bananeira, um sape-sape, uma pitangueira, uns humildes e bravos jindungueiros.

Mas entre plantas e árvores a figura nobre do quintal era uma mangueira robusta e de idade madura. Eu era então um ágil e saudável saguim, trepava pela mangueira, saltava de galho para galho, e sentava-me a ler na confluência do mais sólido ramo com o amplo tronco dessa sábia mangueira.

Lia uns três ou quatro metros acima do chão, entre a verde folhagem abundante, a branca e pequenina flor, o amarelo avermelhado das mangas maduras. Tinha o sol e o céu de Angola como tecto e testemunha.

Durante cinco anos, dos 10 aos 15, eu vivi nessa mangueira as aventuras de cem vidas. Apaixonei-me, cometi crimes, salvei donzelas em apuros, assaltei bancos, ataquei índios, fui índio, fui o famoso xerife Buck Jones, só não fui o Padre Amaro, porque esse livro de Eça de Queiroz só consegui, por fim, lê-lo na linda biblioteca do mais bonito liceu do mundo, o liceu Salvador Correia. Uma leitura inesquecível: joelho contra joelho de uma colega que, só de pernas, era mais alta do que eu inteiro e de pé.

Agora que vos confessei e justifiquei a adição aos livros a que a minha mãe me converteu em Angola, tenho de vos dizer que para evitar crises de privação estão lá em casa à volta de dez mil exemplares espalhados pelas salas, quartos, cozinha, arrecadações e duas casas de banho. Em estantes, no chão, pendurados à janela, em pilhas, confesso que tenho mais livros do que comprimidos, garrafas de vinho, uísque ou cerveja juntas.

Deixem-me agora sair da infância e fazer breve uma história longa. Em 1981, comecei a escrever livros como autor e a fazer livros como editor. Foi na Cinemateca Portuguesa e aprendi com João Bénard da Costa.

O primeiro, de que fui co-autor, foi um pequeno catálogo sobre Jerry Lewis, dividido com o João Lopes, meu colega da Cinemateca. Os primeiros que escrevi sozinho, a solo como se fosse já um Jimmi Hendrix, foram dois livros de vida e obra, um dedicado a Michelangelo Antonioni, o outro sobre Francis Ford Coppola. Depois, em 1992, aliciaram-me para outras aventuras e só voltei aos livros em 1999, criando a Três Sinais, editora que se transformou, por alquimia, na Guerra e Paz em 2006, vai fazer 13 anos.

Já vos falei do meu amor pelo livro e de como privilegio a ideia do livro como aventura e emoção. Mas o livro é também um poderoso veículo de conhecimento. E é dessa área delicada, em que o livro se propõe já influenciar a gestão jurídica, económica, política e moral da nossa vida, que vos quero falar agora.

Nessa área do ensaio, nos últimos anos, na minha qualidade de editor, publiquei alguns livros de autores angolanos ou com temática angolana. Publico por nostalgia, por dívida afectiva – tanto foi o que a minha infância, adolescência e primeira idade de homem, em Angola, me deu –, mas sobretudo publico com a esperança de que o diálogo possa nascer da multiplicidade de contribuições dos meus autores, uns radicais e revolucionários, outros mais próximos do establishment.

Gostava de vos contar três episódios de vida que vieram a orientar e determinar o meu pensamento como editor. São as minhas três grandes lições angolanas, as três lições que têm estado subjacentes à edição dos livros sobre Angola.

Na noite de 4 de Fevereiro de 1961, houve em Luanda um levantamento nacionalista. Eu tinha sete anos e morava em pleno musseque Sambizanga. Na tarde do domingo seguinte, quando ia com a minha irmã, a minha mãe e o meu pai passear, assisti à fúria de uma pequena multidão de brancos, a que se juntavam também alguns africanos, que perseguiam outros africanos que tomavam por suspeitos de ser o que então se chamava “os turras”.

Esses pobres de Cristo foram espancados de forma miserável, a murro, à paulada, e não me esqueço porque não me posso esquecer, de ver a parte rija de um ramo de palmeira a escorrer sangue. Em frente à Casa Branca, tentando fugir pelas barrocas da Boavista, que desciam em direcção aos caminhos-de-ferro e ao Porto de Luanda, esses homens, rapazes ainda, escolhidos aleatoriamente pela multidão justiceira, revoltantemente burra como todas as multidões justiceiras, sangravam, eram atirados ao chão, espezinhados, e eu não sei se houve ou não mortos, porque a minha santa e aflita mãe me tirou logo dali, correndo comigo os 300 metros que nos separavam de casa.

Nesse quentíssimo domingo à tarde, soube, visceralmente, na minha cabeça, coração e estômago, que nunca deveria estar do lado da multidão justiceira. A multidão justiceira é cobarde, é burra e é cega. A multidão justiceira envergonha a humanidade que há em nós.

Catorze anos depois, eu era vagamente maoista, um independente sem facção, militante do MPLA, no Lobito, de onde as Fapla tinham expulsado a Unita. Mas a Unita trouxe o exército sul-africano e as ordens foram para retirar. Um jovem comandante apenas, o comandante Kassange, radical e maoista, decidiu ficar. No dia 10 de Novembro de 1975, tinha eu 22 anos, com um ex-capitão do exército português e mais dois amigos fomos a Benguela convencer Kassange a retirar e vir connosco.

Em frente à modesta sede que então o MPLA tinha, Kassange, belo, poético e mítico como um Che Guevara angolano, os obuses a rebentar para o lado do aeroporto, disse-nos que ficaria e que, sozinho, com meia dúzia de velhos e adolescentes, se meteria à mata para fazer de novo a guerrilha, a guerra popular prolongada. Era um gesto quixotesco, sem valor prático, ditado pela obsessão ideológica. Kassange não sobreviveu e ainda hoje essa morte é matéria de especulação. O ânimo e a inteligência de um Kassange vivo fazem muito mais falta ao povo angolano do que que a inglória saudade de um pequeno mito morto.

Nessa tarde de 10 de Novembro (ou foi mesmo a 11?), a olhar para o belo rosto convicto de Kassange tive a segunda grande lição da minha vida, a de que a convicção ideológica, quando se extrema e nega a realidade, na sua gloriosa radicalidade, gera apenas dor e sofrimento.

Não sei em que noite foi, mas foi no final de Setembro de 1976, o MPLA no poder e a Guerra Civil no auge, numa casa de um selecto bairro de Luanda, num convívio com altos quadros do MPLA no poder, um piloto militar angolano contou, e eu ouvi, como bombardeara um aldeamento da Unita com napalm, fechando com a frase: “Arrasámos tudo. Deixámos aquilo mais liso do que um campo de futebol”. Os inimigos que acabara de exterminar eram angolanos como ele.

Fechava-se, naquele bombardeamento de napalm um ciclo começado com o bombardeamento que o colonialismo português fizera na baixa do Cassange e com o uso de napalm pela força aérea portuguesa no tempo do General Costa Gomes. A minha terceira lição angolana é a lição amarga de que, opressores ou libertadores, em nenhum consigo encontrar qualquer forma de superioridade moral.

Foi também por causa destas três lições angolanas e porque quis ir às raízes dos conflitos que se viveram em Angola de 1974 até ao Maio de 1977, mas que se viveram e ainda hoje fazem eco também em Portugal, que eu escrevi Revolução de Outubro, cronologia utopia e crime, sobre a revolução russa.

Julgo que foi o meu primeiro e provavelmente último livro político. Escrevi-o para tornar claro na minha cabeça que a forma populista como os bolcheviques fizeram a revolução – ou, no meu entender, a contra-revolução – criou a matriz que veio a infectar e moldar o modelo revolucionário, que foi totalitário e não-democrático em todo o mundo, e que uma parte do cortejo de debilidade estrutural económica, sofrimento e atraso de Angola vem também da matriz marxista que esses revolucionários angolanos vieram beber a Portugal e à Europa nos anos 50.

Ou seja, é uma tremenda e infeliz ironia que, do vasto património cultural europeu, da filosofia, da ciência, da literatura, das artes e do nosso humanismo, por razões várias, por causa de uma conjuntura maniqueísta, os revolucionários independentistas se tenham cristalizado numa ideologia ligado a um pensamento dito crítico que é, afinal, incapaz de agregar os povos, construir riqueza e desenvolver as nações.

Essa ideia revolucionária, que vem de Outubro de 1917, é fortemente atractiva porque parece muito funcional e lógica. Divide o mundo de forma maniqueísta em bons e maus, em classes antagonistas que, por um fatalismo pretensamente científico, se têm de confrontar até que uma seja exterminada. Foi a pior herança que o Ocidente podia ter proporcionado aos povos que legitimamente ansiavam pela sua liberdade. Eu julgo que, a par de outros passos mais imediatos e concretos, um passo refundador que os angolanos também terão de dar é o de revisitar a herança da colonização com instrumentos que não sejam apenas os desse velho e embotado maniqueísmo.

Foi também esse debate que pretendi suscitar ao escrever o meu livro, é esse o debate que pretendo prosseguir com a publicação de livros de autores angolanos ou com temáticas angolanas.

Mas acima de tudo espero que as novas gerações angolanas, os miúdos que agora crescem a ler nas mangueiras de Luanda, do Lobito ou do Cunene, me venham bater à porta com livros escritos por eles, livros que sejam a redenção desse nosso mundo de ideais que desembocaram, para nossa amarga desilusão, no totalitarismo, na tortura e num sangrento morticínio.

E não posso, nem quero, ser injusto com os mais-velhos. Há hoje, com a presidência de João Lourenço, ou por causa dela, uma vaga de mais-velhos que podem ou querem voltar a falar e que trazem experiências e reflexões ditadas por uma experiência.

Espero que, cumprindo a vocação mais nobre do livro, os livros de todas as gerações de angolanos nos restituam o que um dia ouvi da boca da minha mãe: ritmo e harmonia das palavras, invenção de sentidos, o gigantesco prazer de criar personagens, aventuras e um céu e terra de liberdade.

Orgulhosamente só

Hiroo Onoda
o último japonês a render-se

O japonês Hirō Onoda tinha a mesma impotência da ideia fixa de um António de Oliveira Salazar, de um Álvaro Barreirinhas Cunhal. A impotência da férrea ideia única converte um homem num Hércules, num imbatível Aquiles.

Com 22 anos, Onoda desembarcou em Lubang, uma ilha das Filipinas. Se viu, não quis saber da belíssima e fina areia branca das praias de Lubang, que 1944 não era ano de turismo. Comando japonês, o tenente Onoda sabia tudo de espionagem, técnicas de guerrilha, sabotagem, propaganda e artes marciais. Ao pé dele, Bruce Lee era um menino de coro e colo.

Eis ao que vinha: sabotar o cais e a pista de aterragem que os americanos iriam usar para invadir a ilha. O seu comandante, o major Yoshimi Taniguchi, como Deus a Moisés, deu-lhe dois estritos mandamentos: em caso algum se poderia render; não podia, mesmo em desespero, suicidar-se.

Fazendo breve a longa e longínqua história: os americanos tomaram a ilha e Onoda, com três homens, internou-se na selva, sabotando, atacando e matando com a devoção e disciplina de um santo, o inquebrantável espírito de um mártir.

A imparável, cega e surda História pôs fim à guerra, em 45. O imperador rendeu-se a John Wayne e aos seus ingénuos e cândidos rapazes americanos. Mas na selva de Lubang, o fortuito Onoda continuava aos tiros. Bem deixaram os americanos panfletos anunciando o fim da luta e apelando à rendição. Com uns olhos de Álvaro Cunhal, o sabotador Onoda detectou em cada linha do panfleto uma manobra da reacção.

Em 49, um dos soldados, Yūichi Akatsu, isola-se e tenta acções individuais, acabando a render-se aos filipinos. É, para Onoda, a prova de que a guerra continuava. Caíram na selva, folhetos assinados pelo lendário general Yamashita, reconhecendo a rendição japonesa. Onoda viu neles o dedo insidioso da quinta-coluna. Olhou para os seus dois homens e, num lampejo de vaidosa humildade salazarista, declarou que estavam orgulhosamente sós. Em 52, o governo japonês espalha pelas florestas de Lubang cartas e fotografias dos familiares dos três soldados. Em cada linha, a treinada inteligência de Onoda descobre falsidades e fake news.

Em 54, o cabo Shōichi Shimada é abatido em combate. São agora apenas dois, comem mangas, cocos, algum animal morto. E continuam em guerra contra o mundo. Em 1972, 27 anos depois do fim da guerra, ao tentarem queimar a colheita de arroz de uma aldeia, o soldado de primeira classe Kinshichi Kozuka é morto pelas milícias camponesas. Inabalável, Onoda prossegue a luta sozinho: o Império japonês não se rende!

Um hippie marado, Norio Suzuki, decide correr o mundo em busca, e por esta ordem, do tenente Onoda, do último panda e do abominável homem das neves. Infiltra-se na selva de Lubang e encontra-o. Onoda reconhece, por fim, o que Salazar ou Cunhal nunca poderiam reconhecer, que criara um mundo de ilusão, de autismo. Mas só aceita render-se se o seu comandante cumprir o que lhe prometeu 49 anos antes: “Passem dois ou dez anos, voltarei a contactar contigo.”  

Já civil, o comandante Taniguchi fardou-se de novo e veio libertar Onoda da sua missão. A 9 de Março de 74, o tenente entregou uma espada, a espingarda Arisaka 99, munições e granadas de mão. Sozinho, combatera 29 anos, matando 30 pessoas, que presumira inimigos. Entregou até o punhal que a mãe lhe dera, para fazer hara-kiri se caísse nas mãos do bárbaro americano.

Regressou com 51 anos ao Japão. Trazia uma saúde de ferro e, esfregados diariamente com fibras vegetais, uns dentes tão brancos como a fina areia de Lubang.

Publicado no Jornal de Negócios, na coluna Vidas De Perigo, Vidas sem Castigo

Confissões

O Pedro Correia, senhor e mestre no blog colectivo Delito de Opinião, é acima de tudo jornalista. E como jornalista anima agora um projecto curiosíssimo e inovador, um jornal mensal que se publica, em papel!, no dia 15 de cada mês. Chama-se, numa lógica imbatível,Dia 15. E foi a um irrecusável convite do Pedro Correia que respondi a um confessionário, na edição que saiu no passado dia 15 de Março.

A uma mão cheia de perguntas, uma mão cheia de respostas.

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Confessionário
Manuel S. Fonseca

Devagar se vai ao longe?
As melhores coisas da vida fazem-se devagar: lê-se devagar, come-se com gosto devagar e devagar se vai e se vem.

O que devemos deixar para amanhã?
A eternidade.

O que gostava de ser quando era pequenino?
Papa. Era o que a Dona Emília, minha professora primária, me dizia que eu seria. E eu acreditava.

Costuma cantar no duche?
O Singin’in the Rain. Espalho-me é no sapateado.

Qual é o seu insulto preferido?
Um verso seniano: “andava você a saltar de colhão para colhão do seu pai a ver escapava a ser filho da puta!”

Se tivesse poder absoluto começava por proibir o quê?
O meu poder absoluto.

As aparências iludem?
Sobretudo em noites pardas.

Dá jeito ter um bom inimigo sempre por perto?
Reduzido à minha insignificância, nem um bom inimigo tenho.

O verbo desamigar sugere-lhe o quê?
Lençóis frios.

Marcelo rima com…?
Com civilização. E nem é preciso ditongar o Marcelo.

Que conselho daria a António Costa?
Conselhos são privilégios de arúspices. Eu não sou de bons augúrios.

Vota com mais facilidade num doce ou num salgado?
Sou mais sal da terra do que luz do mundo.

Entre caracóis e caviar, o seu coração gastronómico balança?
Que se lixem os caracóis. Já papei muita sopinha dos pobres, venha de lá a sopinha dos ricos.

Está do lado da cigarra ou da formiga?
 Hélas, eu sou o próprio formigueiro.

Quem é que não levaria uma ilha deserta?
O Donald. Ainda me murava aquilo tudo.

Se não fosse português, que nacionalidade escolhia?
Cidadão do mundo, claro.

Prefere viajar por terra, mar ou ar?
Tudo o que ajude a transumância.

Que cidade mais gostaria de conhecer?
Angels Camp no condado de Calaveras, por causa do Mark Twain.

Quem é que o faz sempre rir?
Tenho gostos dinossáuricos: Buster Keaton e Chaplin.

O que o irrita profundamente?
O humor radiofónico contemporâneo: destila ideologia.

Qual foi o último livro que deixou a meio?
Não se foge de um livro: nenhum livro é um tigre de papel.

Qual é a sua posição favorita?
De pé, ó vítimas da fome.

Canhoto ou destro?
Imprestável mão esquerda, mas nada de ilações políticas.

Deixou de ter paciência para quê?
Para a cultura da queixa. Haja Deus.

De que é que nunca se arrepende?
De amar. E nem é preciso que seja perdidamente.

O que é que nem às paredes confessa?
Sempre pensei que torturado e entre quatro paredes confessaria tudo.

Partilhas e likes

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A mesma multidão: esta é de Fury, filme de Fritz Lang

Há sempre uma multidão em pulgas para partilhar o horror. No dia do crime em directo do supremacista branco na Nova Zelândia, 1,5 milhões de cópias foram carregadas pelos “amigos” do facebook em todo o mundo. No You Tube, nas horas após o atentado, surgia um vídeo por segundo com as imagens, apesar da batalha informática dos responsáveis para eliminar o filme.

É sempre a mesma multidão. Essa multidão já estava em Lisboa a espancar e queimar judeus no massacre de 1506, já estava a ver enforcar negros nas árvores do sul dos Estados Unidos há menos de um século. Estranha e mesma multidão! Hoje, mata com uploads, likes e partilhas.

Bica Curta servida no CM, no passado dia 21

 

O supremacista

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Bica Curta servida no CM, dia 20 de Março

Um supremacista branco assassinou 50 muçulmanos que rezavam, na mesquita, ao seu Deus. O que é um supremacista branco? Que raiva lhe bombeia o sangue e o arrasta para o crime cobarde? Vejo nele o mesmo fervor tribal, identitário, que anima o neofascismo, o radicalismo ideológico, religioso, étnico, de género.

Todos são ferozes defensores da tribo: um retrocesso civilizacional. Lembro o que o capitão do mato, poeta Vinicius de Moraes, disse orgulhosamente que era: o branco mais preto do Brasil. Dedico-lhe esta bica. Eu também sou branco, preto, judeu, muçulmano. Supremacista branco é a besta que se reduz à merda de uma tribo.

No nosso corpo

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Têm quatro patas e vão andar dentro de nós. Quem os criou não foi Deus, mas sim os engenheiros das universidades da Pensilvânia e de Cornell. São robots com a espessura de um cabelo, equipados de cérebro e órgãos. Uma espécie de insectos de vidro, revestidos por delicada camada de silício. As quatro patas são de platina e titânio em camadas atómicas. Os engenheiros comandam-nos com raios laser e podem, por exemplo, transportar medicamentos dentro de nós.

O sonho dos filmes de ficção científica dos anos 50 foi realizado: robots tomarão a bica curta dentro de nós. Ou passarão férias em nós como nós as passamos nas Caraíbas.

Bica Curta servida no CM, dia 19 de Março

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Isto não é um prato de búzios

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Não é Magritte quem quer, mas posso jurar-vos: um prato de búzios não é um prato de búzios. Aliás, só houve, em toda a história de humanidade, um prato de búzios. Comi esse prato de búzios em 1971, em Luanda.

Era a primeira vez que comia. Reparem, não é que alguma vez tenha passado fome. Fui alimentado por pais carinhosos que, à confiança, me deixavam sair à noite, desde os 15 anos, com dois amigos mais velhos, o Abílio e o Simão. Eu era a boca que eles levavam, a quem davam um fino gelado no Polana. Tinha é de mastigar um prego no prato, ou uma fatia de pão e presunto aquecidos no voracíssimo Baleizão. Eu era, portanto, alimentado em regime doméstico e em regime ambulatório. E era alimentado graciosamente. Tinha 17 anos e nunca pagara um angolar, cinquenta centavos que fosse, por uma travessa de camarões, uma perna de churrasco, o desfastio de um feijão com óleo de palma polvilhado a farinha de mandioca.

Naqueles tempos de guerra colonial, o Abílio era um refractário, o Simão um comando, isto para dizer as coisas de modo ameno, sem entrar em pormenores. Eles eram os melhores amigos e o que interessa é que me amavam como se eu fosse o maninho mais novo. Íamos de Volkswagen preto, de tasca luandina em tasca luandina. Bebíamos filosóficos copos de cerveja mais gelados do que o Pólo Norte, mais gelados mesmo do que duas páginas de Schopenhauer, se me perdoam a trivialidade.

A entrar eramos eclécticos: tanto entrávamos onde se cantasse o fado, como onde se dançasse um tangível e escrupuloso merengue. Tenho de confessar que uma noite me sentei inesquecivelmente. Jamais alguém se sentou como me sentei, quando me sentei ao lado de Elias diá Kimuezo, o cantor de “Ressurreição”. Se quisesse poderia descrever cada nervura do tampo da cadeira, a textura das calças pretas de terylene, a forma como o meu rabo, sem que eu lhe pudesse dar ordens, se deixou ficar meio suspenso, incapaz de se afundar na inútil cadeira. Elias era a voz, a formidável solidão da canção quimbunda nos ouvidos de um branco. Diá Kimuezo tinha um fino na mão, eu outro; falou comigo e era o mesmo único e indivisível fino que bebíamos às três da manhã, num bar da estrada de Catete.

Mas volto a meter a mão onde tenho de a meter: não gastei um angolar, cinquenta centavos que fosse. O Abílio e o Simão, com uma fraternidade bêbada, pagavam tudo, os bilhetes no estádio dos Coqueiros, a ululante liberdade das praias da Ilha, copos e copos, a educação do infante – a minha.

Aos 17 anos, de bandeira, como se fosse um glorioso ponta de lança, cai-me no pé o emprego absoluto. Das 7 às 13, num hospital, com não sei quantas fisioterapeutas e um salário de brinca na areia. O primeiro que recebi – ó Luanda de um raio – convidei os meus dois irmãos velhos e, do nada, como um big bang, na sofisticada cervejaria Amazonas, nasceu e proliferou o prato de búzios. Paguei. Ah, que bonito o dinheiro cristalino, a moeda tilintante. E era o único prato de búzios da história da humanidade. Nunca mais nenhum me saberá tanto a liberdade, amor e mar.

Amazonas _Luanda