Uma dedicatória de Sam Fuller

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Eram os tempos gloriosos da Cinemateca. Corriam, um à frente do outro, os meses de Abril e Março de 1988. Organizávamos então um ciclo dedicado a Samuel Fuller, dito cineasta de guerra, que tem num filme carteirista o seu melhor filme, o que tudo diz das ideias feitas e dos princípios da catalogação. Tocou-me a mim organizar o ciclo, a meias com o João Bénard – ou para melhor dizer, fui eu a metade que ele usou.

Com o Luís Miguel Castro fiz este catálogo, que nunca mais estava pronto. Já o ciclo ia adiantado e catálogo viste-o! Veio Fuller à estreia, e voltou a outras sessões, e catálogo está quieto. Já éramos amigos, fizemos festas, uma em casa do actual decano do cinema português, o magnífico António da Cunha Teles. Já Fuller era da família, amigo também da Antónia e talvez lhe tenhamos dito que para o ano haveríamos de ter um filho, que por acaso é a minha filha. O catálogo é que continuava de parto adiado.

Quando o livrinho chegou, corremos a pedir-lhe o autógrafo, e ele deixou-nos esta dedicatória tão bem zangada de ainda nem lhe termos dado um exemplar desta obra renitente.

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Quatro Livros do Dia

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O mais remoto antecedente da Feira, em 1930. Ainda se chamava Semana do Livro. No Rossio

São coisas da minha Guerra e Paz, editores. Eu sou só um veículo de transmissão. Mas as três fotos das velhas Feiras do Livro são enternecedoras.

Feira do Livro, 1931, no Rossio

Se a vida tivesse seguido o seu curso previsível, hoje, Lisboa estaria a inaugurar a sua Feira do Livro. Debaixo deste calor perfeito, uma multidão despreocupada caminharia pelo Parque à procura, sempre à procura, uns de pechinchas, outros de obras-primas esquecidas, outros de pequenas jóias da edição.

De uma forma simbólica, neste tempo em que os sinais simbólicos a todos nos tocam, a Guerra e Paz editores quer juntar-se a essa memória da Feira do Livro de Lisboa e oferece, não só a Lisboa, mas a todos os portugueses, a possibilidade de levarem para casa um (ou todos) estes quatro Livros do Dia, com um desconto de 50%:

O Físico Prodigioso de Jorge Sena, na mais bela das edições, com 20 ilustrações originais de Mariana Viana;
A Tabacaria, de Álvaro de Campos, em cinco línguas, caixa de madeira, fotografias de Pedro Norton;
O Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, com prefácio de Vasco Graça Moura e ilustrações originais de Rogério Ribeiro;
Minha Mulher, a Solidão, uma perturbadora viagem pelas derivas eróticas de Fernando Pessoa e heterónimos.

Para quem anda à procura: são pechinchas, obras-primas e, sem falsa modéstia, são pequeninas jóias da edição. Para honrar e celebrar uma tradição que as fotos das Feiras do Livro dos anos 30, cedidas pelo Bruno Pacheco, testemunham e quase nos faz chorar. Viva a Feira, vivam estes quatro livros do dia.

A Feira, ainda no Rossio, em 1933

Todos os dias são Dia do Livro

Esta foi a Bica Curta que servi no CM, no dia 23 de Abril. Era Dia Mundial do Livro. Mas não são todos os dias, dias do livro? 

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Sophia Loren, a ler, claro.

Dia Mundial do Livro

Nasci em Vale de Madeira, aldeia ao lado de Pinhel. Menino, vivi no Sambilas, musseque de Luanda. O livro salvou-me a vida. Por ser conhecimento, o livro dá a quem o lê uma vida mais rica.  É científico: a neurobiologia atesta o efeito da leitura no cérebro. Ler romances, ler poesia dá conhecimento. E enche-nos de prazer: o livro oferece aventura, empatia humana, expande o imaginário, erotiza a vida. Ganhamos experiência, visitamos mundos que existem e mundos que ainda hão de vir. O livro faz do leitor um deus e dá-lhe delícias que rivalizam com prazeres de mesa e cama juntas. Tenha piedade do seu espírito: compre e leia livros.

Dia Mundial do Livro: não deixem o vírus matar Camões

Em defesa do livro: não deixem o vírus matar Camões

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Hoje, Dia Mundial do Livro, autores, editores e livreiros estão em perigo. Tolstói ou Dostoievski, Shakespeare e Camões, Camilo ou Eça vivem, como Portugal, como o mundo, a situação calamitosa que afecta dramaticamente a nossa forma de vida, as pessoas e as empresas. Sim, os grandes romances, os grandes ensaios, os livros de ciência ou de filosofia, tal como os editores e livreiros que são a sua casa, acabam de sofrer um violento abalo. Fragilizados pelas crises económicas de 2008 e de 2011, editores e livreiros são agora, como resultado directo desta pandemia, confrontados com a mais dura ameaça que o livro já experimentou em Portugal. A espada de Dâmocles, que é a insolvência de editores e o fecho definitivo de muitas livrarias, paira sobre as nossas cabeças, sobre a cabeça dos grandes livros e dos grandes autores, o que o empobrecimento salarial dos leitores, já de si uma minoria da população, mais reforça.

E esqueçam os choradinhos e peditório economicista, por mais legítimo que ele seja. Não vos estou a falar só de uma actividade económica. Ao falar do livro, estamos a falar de um sector estratégico para o futuro de Portugal, de um sector fundador para todas as outras actividades económicas. Como as neurociências cada vez mais atestam, o livro, a leitura de livros, é imprescindível para a obtenção e solidificação do conhecimento.

Se o futuro de Portugal passa, como todos acreditamos, pelo conhecimento, pela ciência, pela matemática, pelo avanço tecnológico, então o livro é a pedra basilar desse edifício. É a mais avançada ciência do mapeamento do cérebro humano que o afirma, garantindo que esse livro a que os cientistas se referem não é apenas o livro escolar ou técnico, de pura aprendizagem. São todos os outros livros, a literatura, poesia e romance, o Dom Quixote e As Mil e Uma Noites, Fernando Pessoa e Walt Whitman, que alimentam a inteligência emocional dos leitores, oferecendo-lhes uma cultura e uma experiência que, só pela vida, seria impossível colher e que lhes dá empatia humana, vacinando-os contra autoritarismos e contra a arrogância do imediatismo de tuítes e redes sociais.

O livro – os livros de António Lobo Antunes, de Jorge de Sena, Agustina, Sophia – é vital para conferir a Portugal o conhecimento de que o nosso futuro precisa e é crucial para a expansão do imaginário e da identidade emocional da comunidade que somos, identidade essencial à construção de um desígnio comum. Por alguma razão, afinal, o Dia de Portugal tem como patrono um poeta e a sua obra, denominador comum para os portugueses. Essa escolha não pode, apenas, ser uma flor de retórica. E quem ama a literatura junta-lhe, num gesto ecuménico, as novas gerações de escritores de língua portuguesa, de África, das Américas e da Ásia, vencedores alguns do Prémio Camões, signo do ideal de universalidade a que aspiramos e que nos empolga.

Cartas na mesa: sem o livro, todas as actividades económicas se empobrecerão. Sem o livro, o futuro das nossas ciências e da nossa tecnologia perde competitividade. Se não escolher a defesa vigorosa do livro, Portugal perde voz no concerto das nações. E esse é o Portugal resignado e sem ambição que todos recusamos.

Salvar o livro deve ser, pois, desígnio dos portugueses, dos cidadãos, do Estado, dos sectores do conhecimento – e de todos os sectores económicos, que, com esse salvamento, estarão a proteger-se e a enriquecer-se. O livro tem de merecer um tratamento de excepção. Não deixemos que, com esta água do banho, se deitem fora esses embriões do conhecimento e do imaginário que são os livros, todos os livros.

Há duas acções imperiosas a desenvolver. Uma a montante, restaurando, junto das novas gerações, o hábito da leitura e o tremendo e poderoso prazer que nela se ganha. Cabe ao sistema educativo repensar métodos de atracção e sedução, cabe aos pais a descoberta do poder lúdico do livro para reforço dos laços afectivos familiares. Cabe ao sistema educativo reparar a catástrofe de tantas opções facilitistas que afastaram as novas gerações do livro. Essa é uma acção a médio e longo prazo.

Mas para que ela possa ser bem-sucedida há uma acção imediata, a jusante, que tem de ser já concretizada: é preciso salvar as edições d’Os Lusíadas, de Hamlet, d’O Principezinho, de Amor de Perdição, que estão nas estantes. É preciso salvar os editores e livreiros portugueses, única forma de garantir a preservação do livro. Salvando-os, salvam-se milhares de autores, de tradutores, de revisores, de tipografias. E salva-se a diversidade, liberdade e independência do livro, contra hegemonias privadas ou estatais indesejáveis.

Consciente de que para tempos excepcionais são necessárias medidas excepcionais, há acções urgentes que precisamos de fazer como quem faz respiração boca-a-boca em emergência crítica. Dou cinco exemplos:

  1. Injecção de volume de vendas com a criação de um cheque-livro familiar, adoptando esta forma simplificada: permitir que cada contribuinte, após a finalização do IRS, possa ainda, e além das deduções já existentes na lei, fazer a dedução integral de 100 €, contra a apresentação de facturas de compra de livros em livrarias. Esta medida tem a vantagem de deixar na mão dos leitores a decisão de compra dos livros, sem dirigismos e sem desvirtuar regras de concorrência.
  2. Aplicação excepcional ao livro (físico ou digital), após a retoma da actividade, da redução a 0 % do IVA, até 31 de Dezembro de 2020, o que permitiria capitalizar livreiros e editores.
  3. Amplo programa de extensão da Feira do Livro às capitais de distrito, envolvendo as autarquias e com a participação activa de livreiros locais.
  4. Alargamento da Lei do Preço Fixo, de 18 para 24 meses, estabelecendo o percentual de 5 % como desconto máximo a praticar por todos os agentes do mercado durante aquele período, evitando assim perdas irreparáveis na cadeia de valor do livro.
  5. Reforço do papel de diálogo, que é o do livro, no universo de língua portuguesa, dando Portugal o primeiro passo ao propor, no seio da CPLP e por período a estudar, a suspensão dos direitos alfandegários aplicados à importação de livros, defendendo a sua livre circulação entre Estados da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

Estas são acções fortes e necessárias para garantir que as novas gerações, com as ferramentas que só o livro e a leitura lhes põem nas mãos, dominem o pensamento e a linguagem, criando a ciência, o saber, a beleza, os valores e a democracia que farão de Portugal um país com futuro. É esta a missão a que todos os autores, editores e livreiros querem entregar-se. Vamos salvar Camões, Eça, Hemingway, Kant, Wittgenstein, Virginia Woolf ou Clarice Lispector do vírus fatal. Salvando-os, projectamos Portugal para um caminho de conhecimento, ciência e riqueza emocional. Hoje, dia 23 de Abril de 2020, Dia Mundial do Livro, não deixem o vírus matar Camões.

O livro contra o vírus

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Esta foi uma das minhas Bicas Curtas da semana passada no CM. É uma das medidas que defendo para salvar o livro. Para quem esteja mais distraído – compreensivelmente, tantas são as angústias e os problemas destes dias em que reina um vírus traiçoeiro – o livro, e com ele os autores, editores e livreiros, está ameaçado de morte. Não é alarmismo é a realidade. Esta é uma primeira medida para salvar o livro, sector estratégico para o futuro dos portugueses. Partilhem, por favor.

 

O livro contra o vírus

O vírus mata portugueses. E mata a economia. Matará o conhecimento se deixarmos que mate o livro. Livro e leitura são a mais sólida forma de adquirirmos saber, ciência e identidade. Mas as livrarias fecharam e os editores não publicam.

Perder o livro é abdicar do futuro. Empresas e Estado têm de salvá-lo. As livrarias, sobretudo Bertrand, FNAC, Sonae, mal voltem, têm de ser apoiadas para não esmagarem os editores com devoluções. Uma medida: em 2020, permitir a cada contribuinte, após apuramento final do IRS, ser ainda ressarcido do valor de 100€ contra factura de compra de livros em livraria. 100€ que matem o vírus da ignorância.

Da rumba a Fialho de Almeida

Os trabalhos e os dias de um editor
Manuel S. Fonseca

Foi antes das férias de 2015. É do que se lembra esta minha memória, cuja intangibilidade nem a terra que a todos nos espera há de comer. A insolvência de um distribuidor, que provocou a perda de um ano inteiro de facturação, tinha partido os dois joelhos à Guerra e Paz. Íamos inventando a sobrevivência, dia a dia. Decidi, então, criar os Clássico Guerra e Paz.

Para começar, o romance português por excelência, Os Maias. Da preparação da edição e fixação de texto encarreguei Helder Guégués, então habitual revisor e colaborador da editora. Pedi a capa ao Ilídio Vasco, que nasceu para o design gráfico no berço da editora. A memória do Ilídio já não se lembra, mas a minha jura, sangue de Cristo, como se dizia nos musseques da minha infância, que tudo se passou assim: ele trouxe-me a primeira proposta, lettering elegante e imagem clássica a fazer pendant com o século XIX e o realismo de Eça. E logo eu, como a moça do poema de Viriato Cruz, lhe disse que não. Levantei-me da secretária e fui buscar a primeira edição de As Meninas, de Agustina e Paula Rego, e mostrei-lhe as guardas, um painel repetitivo da mesma imagem. E disse-lhe a palavra chave: Warhol. O da Marilyn, pois claro. Eu queria uma capa com um só motivo, mínimo, infinitamente repetido, cortado pelo título de cada livro. O Ilídio, meia volta volver, saiu. Voltou ainda nessa manhã ou talvez tenha sido já à tarde – ah, memória vadia que nem relógio tens! Trazia na mão outra capa – e como a moça do poema, levada na rumba por Benjamim, logo ali lhe disse que sim.

Era a capa que Os Maias da Guerra e Paz têm e continuarão a ter nas edições que venhamos a fazer. O Ilídio acabara de inventar a matriz que dá identidade a esta colecção, a mais bem-sucedida das colecções desta vossa editora, a que mais nos prestigia, a que mais íntimas festinhas nos merece.

Este, História de Dois Patifes, de Fialho de Almeida, é o nosso 42.º clássico. Preenche uma lacuna: quase não há disponíveis livros de Fialho de Almeida, autor entalado entre o século XIX e XX. Como vai comprovar neste conto que lhe oferecemos, O Anão, Fialho tem uma escrita que namora com o “fantástico”, que põe um pé leve no horror e outro na comédia (ou no sarcasmo), com um léxico desembaraçado, rico em regionalismos. Já leu Edgar Allan Poe e gostou? De que está à espera, então, para ter em casa este História de Dois Patifes?

Até já, Luís Osório

O meu autor Luís Osório trocou-me as voltas e, depois de publicar comigo Mãe Promete-me Que Lês e 30 Portugueses, 1 País, vai publicar um novo livro numa editora poderosa. À tão simpática despedida dele, no facebook, eu respondi assim, comovido e désolé.

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Luís Osório, meu bom Luís, aceitaste publicar na Guerra e Paz quando esse centauro (por ser metade eu, metade casa editora, e não sou capaz de te dizer qual é a metade cavalo e a metade humana), atravessava um momento de dúvida e de aflição financeira. Que coragem tiveste! Fiquei a admirar-te.
Deixas-me num momento em que a Guerra e Paz reencontrou um caminho positivo, fechando o melhor de dez anos de actividade, escolhendo caminhos de diversidade, que nem sempre passam pela livraria (que vai deixando de ser, cada vez mais, em todo o mundo, a porta dos livros). A Guerra e Paz não é, como os grupos de grande concentração, uma sopa dos ricos, mas é, neste momento, uma sopinha melhorada e honesta e tenho pena de que não proves deste tempero – e tantas vezes é mais saborosa essa modesta sopa do que duas estrelas Michelin, não é?
Deixas-me, logo agora que a Guerra e Paz foi escolhida por parceiros independentes, pelos Prémios Literário do Lions de Portugal e dos Novos Talentos da UCCLA, para ser a editora das Obras vencedoras no romance, tu deixas-me… Deixa que eu me lamente em francês: Je suis désolé.
E no entanto tens razão nesta escolha e despedida: fazes bem ir comer uma sopinha dos ricos, e eu não sou o típico editor de que um autor precisa mesmo: em certos casos, mas nem sempre. Gosto tanto de escrever como os meus autores e vejo-me mais atacado por convulsões estéticas, por acessos pandémicos de paixão por Rimbaud, por Edna St. Vincent Millay, pelo verso de HH em que ele promete encantar a noite com o arbusto de sangue de uma jovem mulher, do que pelo marketing, pelo lobbying, pela influência sobre a imprensa ou sobre as cadeias livreiras (quantas há?), ainda que, ressalvo, eu tenha sempre um olho no cifrão, como o têm todos os artistas que se prezam (ó, ó!).
O meu outro olho arregala-se para o amor: aos 66 anos de idade recordo o que me ensinou um padre basco aos 16 anos: Deus é amor. E, como bem sabes, Deus é uma maravilhosa construção dos homens, do amor do Homem, desse amor que os homens não sabem onde pôr ou arrumar. E eis o que foram estes dois livros contigo: uma cena de amor. Desde o primeiro café na editora aos carnívoros almoços no Cortador Oh Lacerda (o que me vai custar lá voltar sem ti!), às sessões de lançamento, em que eu fingi de editor fiel a entreter os teus leitores devotos (tive a sensação de que tinhas mais leitoras, mas pode ter sido o meu viés, chamemos-lhe assim, que só tinha olhos para elas 🙂  ), naquela prodigiosa viagem de Leiria a Lisboa, cerca 4 horas, com o divino Manolo Bello ao volante, a 50 km à hora nas estradas secundárias, madrugada dentro de fazer inveja às wee hours do Frank Sinatra, a contar-nos as anedotas mais delirantes, tudo isso foi Deus e foi amor. Eis o que nos juntou e uniu. Eis o que um pequeno detalhe agora suspende. Que os deuses abençoem o pequeno detalhe. Tu mereces. E eu mando-te um abraço, ou melhor, um valente kandando caluanda. Que tudo te corra bem, Luís.

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É de Marx, um belo livro

Já se sabe que se é da Guerra e Paz eu publico sempre!

Em 2016, a Guerra e Paz publicou, por serem livros que serviram de bandeira ideológica a grandes movimentos nacionalistas ou internacionalistas, uma trilogia que incluiu o Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, o Mein Kampf, da Adolf Hitler, e o Pequeno Livro Vermelho, de Mao Tsé-Tung.

Os três livros foram precedidos por estudos críticos, situando historicamente o papel de cada um deles e as consequências, todas elas trágicas que os movimentos políticos, que deles se reivindicavam ou reivindicam, acabaram por gerar.

Curiosamente, essas edições críticas tiveram uma extraordinária receptividade junto dos nossos leitores, obrigando a editora a reeditá-los. É esse êxito que vamos recordar nos próximos dias, trazendo aqui excertos dos textos críticos que os enquadram, a começar pelo Manifesto Comunista.

No texto de introdução de Manuel S. Fonseca lê-se:

«Publicado originalmente em língua alemã, o Manifesto coincide com a Primavera dos Povos, fogueiras da revolta a arderem por toda a Europa, com revoluções na Alemanha, França, Itália, Império Austríaco, Hungria, Polónia, Ucrânia, Dinamarca. O Manifesto não foi o rastilho dessas revoluções, cujos agentes não o podiam ainda ter lido. O texto de Marx, participando do ar dos tempos e exprimindo a sua Angst, era um texto ilustremente desconhecido das massas  revolucionárias que protagonizaram essas insurreições, com excepção de parte dos  revolucionários e operários alemães que, esses sim, podiam ter acedido às teses de Marx, fosse na edição em livro referida, fosse nas diferentes edições do jornal Neue Rheinische Zeitung, editado por Marx. Extintos os fogos e os ímpetos revolucionários de 1848, parecia ter-se apagado a luz do Manifesto. Durante duas décadas não teve mais leitores do que o mais obscuro poema de Hölderlin. Tudo indicava que o «comunismo crítico» corria o risco de se converter numa peça política e filosófica que a História varreria para debaixo do seu obtuso tapete.

Foi outra revolução a dar gás, ou carvão (metáfora talvez mais adequada à nascente Revolução Industrial), às teses de Marx e Engels. A praxis precedeu – ou pelo menos legitimou – a teoria. Em plena Guerra Franco-Prussiana, as massas populares parisienses, sentindo-se traídas pela capitulação do Governo francês perante o exército invasor, sublevam-se, submetendo a Guarda Nacional, e instauram, a 18 de Março de 1871, o primeiro governo operário da História, a Comuna de Paris. Sonho, utopia, grito de sofrida e patriótica revolta, a Comuna de Paris teve vida curta: 62 dias que acabaram num rio de sangue e morte. As tropas francesas, feito o armistício com os alemães, assaltaram Paris, a 21 de Maio, e mataram 20 mil dos seus cidadãos, prendendo outros 40 mil, muitos dos quais viriam a ser executados, numa semana de barbárie e pesadelo.

Marx foi um incansável paladino da Comuna. Por essa altura, o filósofo era membro da Primeira Internacional, integrando o comité central, e já publicara O Capital, mas sobretudo a Contribuição para a Crítica da Economia Política, que fora um enorme êxito teórico e editorial. Com a defesa da Comuna, Marx avalizou e procurou dar corpo teórico à insurreição violenta e armada que, bandeira vermelha ao fresco vento de Paris em Março, se converteu no primeiro governo da História a declarar que exercia o poder «representando o interesse dos trabalhadores». No ano anterior, com a Guerra Franco-Prussiana em curso, Marx incitara os trabalhadores a apoiar o governo burguês republicano que, em Setembro de 1870, depusera Napoleão III. Menos de seis meses depois, a rápida evolução dos acontecimentos leva-o a dar suporte teórico à tomada revolucionária do poder. E o Manifesto voltou a ser lido.»

E mais adiante:

«Movido por uma concepção materialista da Histó­ria, o Manifesto apresenta, e esse é um dos elementos que permanece válido hoje, uma análise que nos mete pelos olhos dentro o dinamismo das relações de produ­ção capitalistas e as suas conquistas civilizacionais. (As viagens marítimas portuguesas são uma dessas con­quistas – com referência explícita de Marx à passagem do cabo da Boa Esperança.)

Outro elemento surpreendente para o leitor actual é ver como hoje, muito mais do que em 1848, é certeira a descrição de um mercado global, com o desapare­cimento de fronteiras e com um desenvolvimento ini­maginável dos transportes e das comunicações. Marx é mais profeta e mais visionário do que os poetas, do que um Blake, por exemplo: em 1848, o profeta Marx teve uma visão perfeita da actual globalização. Parecia estar a falar do presente e estava, afinal, a descrever o futuro.

Onde é que as previsões do Manifesto falharam? Clamorosamente, na previsão de uma queda próxima do capitalismo, que Marx via exangue e à beira de uma crise que uma revolução à escala europeia se prepa­rava para varrer. Falhou, por isso, a previsão da vitó­ria inelutável de um proletariado ao que o capitalismo reservaria apenas um futuro de pauperização. Mesmo o carácter revolucionário (e redentor) do proletariado, como Marx o via, não se cumpriu e, se uma parte do proletariado engrossou as hostes dos partidos co­munistas, ao longo do século XX, largos e maioritários segmentos da classe operária fizeram escolhas refor­mistas, militando em partidos que, para usar uma ex­pressão portuguesa recente, são do «arco da governa­ção». E grande parte dos «10 mandamentos» que são as reivindicações de Marx no Manifesto foram reali­zadas, sem sangue, pelas democracias parlamentares que estes partidos reformistas criaram.»

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