Um Mundo Aflito é o número um

A emoção irrompeu pelo top semanal de vendas no nosso site. Um Mundo Aflito, livro de José Jorge Letria, em que brilham, a preto e branco, mais de 60 fotografias de Inácio Ludgero entrou directo para o primeiro lugar. É, como os nossos leitores já sabem, um retrato pungente das nossas ruas, dos nossos jardins, das nossas praças, num tempo de ausência e de vazio causados pelo covid-19.

Depois, cinco clássicos, dois livros de Júlio Dinis, Morgadinha dos Canaviais e  As Pupilas do Senhor Reitor, outros dois de Eça, Adão e Eva no Paraíso A Cidade e as Serras e ainda um livro de António José da Silva, o Judeu, O Diabinho da Mão Furada, dominam um painel em que que se intromete O Pequeno Livro Vermelho de Mao Tsé-tung, em edição precedida por um texto fortemente crítico do editor da obra. Estaremos à beira de uma vaga neo-maoista?

Fecham a lista dos dez mais vendidos a edição de luxo de Tabacaria, de Álvaro de Campos em cinco línguas, o precioso estudo do recentemente falecido Roger Scruton, Como Ser Conservador, e outra novidade, número um na semana passada, Combates pela Verdade, Portugal e os Escravos, do historiador João Pedro Marques.

Eu, como editor, estou rendido ao gosto e às escolhas dos nossos leitores. E amanhã já voltamos a falar de vendas quando fecharmos o top 10 das vendas deste Maio do nosso tão tímido desconfinamento.

Da rumba a Fialho de Almeida

Os trabalhos e os dias de um editor
Manuel S. Fonseca

Foi antes das férias de 2015. É do que se lembra esta minha memória, cuja intangibilidade nem a terra que a todos nos espera há de comer. A insolvência de um distribuidor, que provocou a perda de um ano inteiro de facturação, tinha partido os dois joelhos à Guerra e Paz. Íamos inventando a sobrevivência, dia a dia. Decidi, então, criar os Clássico Guerra e Paz.

Para começar, o romance português por excelência, Os Maias. Da preparação da edição e fixação de texto encarreguei Helder Guégués, então habitual revisor e colaborador da editora. Pedi a capa ao Ilídio Vasco, que nasceu para o design gráfico no berço da editora. A memória do Ilídio já não se lembra, mas a minha jura, sangue de Cristo, como se dizia nos musseques da minha infância, que tudo se passou assim: ele trouxe-me a primeira proposta, lettering elegante e imagem clássica a fazer pendant com o século XIX e o realismo de Eça. E logo eu, como a moça do poema de Viriato Cruz, lhe disse que não. Levantei-me da secretária e fui buscar a primeira edição de As Meninas, de Agustina e Paula Rego, e mostrei-lhe as guardas, um painel repetitivo da mesma imagem. E disse-lhe a palavra chave: Warhol. O da Marilyn, pois claro. Eu queria uma capa com um só motivo, mínimo, infinitamente repetido, cortado pelo título de cada livro. O Ilídio, meia volta volver, saiu. Voltou ainda nessa manhã ou talvez tenha sido já à tarde – ah, memória vadia que nem relógio tens! Trazia na mão outra capa – e como a moça do poema, levada na rumba por Benjamim, logo ali lhe disse que sim.

Era a capa que Os Maias da Guerra e Paz têm e continuarão a ter nas edições que venhamos a fazer. O Ilídio acabara de inventar a matriz que dá identidade a esta colecção, a mais bem-sucedida das colecções desta vossa editora, a que mais nos prestigia, a que mais íntimas festinhas nos merece.

Este, História de Dois Patifes, de Fialho de Almeida, é o nosso 42.º clássico. Preenche uma lacuna: quase não há disponíveis livros de Fialho de Almeida, autor entalado entre o século XIX e XX. Como vai comprovar neste conto que lhe oferecemos, O Anão, Fialho tem uma escrita que namora com o “fantástico”, que põe um pé leve no horror e outro na comédia (ou no sarcasmo), com um léxico desembaraçado, rico em regionalismos. Já leu Edgar Allan Poe e gostou? De que está à espera, então, para ter em casa este História de Dois Patifes?

Basta repetir bem

Pachelbel

Quando, em 1692, os soldados de Luis XIV invadiram Stuttgart (Estugarda, não é?), já Johann Pachelbel tinha composto o Canon para 3 violinos e um violoncelo que hoje tanto nos consola e obriga a falar dele. O organista Johann Pachelbel tinha 27 anos, mulher e filho, quando, para o casamento de um Bach em 1680, criou o tema que garantiria a imortalidade ao seu nome. Três anos depois, indiferente à celebridade futura, a peste ceifou-lhe a linda mulher e o querido filho. Casou segunda vez, passado um ano, com a mulher (seria linda como a primeira?) que, de Estugarda, o acompanharia na fuga aos franceses, para regressar à Nuremberga natal.

Pachelbel nascera em Nuremberga. Nasceu com o Barroco já bem maduro. Em 1653. Aprendera, dizem que fascinado, música italiana. Protestante, inspirava-o a música religiosa católica, que conhecera em Viena. Foi professor do irmão mais velho de Johann Sebastian Bach. De alguma maneira, como se costuma dizer quando nos pomos a adivinhar, terá influenciado, nem que tenha sido por essa via familiar, o Bach que nós achamos que é Bach.

O Canon não é o meu classic weepie favorito: ando a ver se decido entre o Für Elise, Adagio de Albinoni, duas ou três coisas de Bach que não digo o nome para não me envergonharem, Uma furtiva lágrima de Donizetti, a Manhãzinha ou a Canção de Solveig do Grieg no Peer Gynt e se calhar nem é nenhuma destas. Mas o Canon e Giga em Ré Maior para três violinos e violoncelo é uma bela massagem que se mete pelas vértebras e chega ao coração. E é uma lição de vida. Desprezando o nosso actual politicamente correcto, o Canon ensina-nos o valor da repetição.

Basta repetir bem, diz-nos suavemente cada um dos violinos. Repetir uma vez como faz o segundo violino, repetir a repetição na inultrapassável demonstração de humildade do terceiro violino. Cada violino se abre como janela para o violino que se segue, ao contrário da teoria das mónadas “que não têm janelas” sustentada G.W. Leibniz filósofo, matemático e contemporâneo alemão de Pachelbel. Pode ser, como sugeria Leibniz, que as substâncias simples e inextensas sejam as verdadeiras substâncias. Pois hoje, o Leibniz vai direitinho para a estante. Os repetidos acordes dos violinos de Pachelbel é que são a verdadeira substância.

Nesta interpretação, instrumentos, materiais e estilo tentam reproduzir as condições da época.

Não é o que lemos, é quando lemos…

bu«iblioteca

Batalhas sangrentas, estadistas megalómanos, os mais utópicos dos profetas, alguns laboriosos cientistas, bombistas coléricos, talvez mesmo predicantes economistas, antropólogos ou criminosos em série influenciaram, em algum momento, o curso do mundo em que viveram, moldando assim o que cada um de nós é hoje e, por tabela, o mundo em que vivemos. Tenho a certeza de que o meu interesse perverso por Billy the Kid – que aos 21 anos registava a tétrica contabilidade de um morto por cada ano de vida – o meu fascínio cheio de segundas intenções por Madame Curie, uma camisa que, em teenager, usei com colarinho à Dr. Jivago, terão influenciado o que sou hoje e que, confesso, oscila entre a vontade de ser um assassino com ética, o desejo de me fechar no primeiro laboratório com a mais radioactiva das físicas e o nobre idealismo individualista do médico de Pasternak.

Por maioria de razão, os livros que lemos acabam por pintar, a cores mais alegres ou mais sombrias, a personalidade que temos. Os livros que lemos e quando os lemos, tal qual como os que não lemos quando os devíamos ter lido.

Escrevo isto enquanto folheio, de Andrew Taylor, um livro de despretensiosa divulgação, Books That Changed the World. Folheio-o com uma mão, enquanto com a outra ergo, triunfal e autoritário, Porquê Ler os Clássicos de Italo Calvino. Descobri, assim, apavorado, que a minha vida podia ter sido diferente.

Com alguma comiseração biográfica, Goethe escreveu Os Sofrimentos do Jovem Werther em 1774. Escassos anos depois, dois apenas, Adam Smith redigiu, com porfiado método, a A Riqueza das Nações. O que é que me terá levado, em data incerta, entre 68 e 70, a ler o suicidário Werther, ignorando olimpicamente o ensaio de Smith? O romance de Goethe, que li em tradução brasileira e livro de bolso, por mais que eu queira, não me sai da cabeça e, por mais que eu não queira, virá sempre atrapalhar-me no amor. Não me arrasta para o suicídio exasperado e romântico, é certo, mas faz-me imaginar que leio os falsíssimos cantos de Ossian à mulher amada, com a consequente e arrebatada erupção amorosa, “beijos vorazes” e proibidos (ou porque proibidos?), afogados gritos e fuga para reservados aposentos.

Se eu tivesse então lido A Riqueza das Nações a que outros arrebatamentos teria sido transportado? Estaria eu muito mais interessado na “mão invisível do mercado” do que nos “lábios trémulos e balbuciantes” de Charlotte?

Li Moby Dick de Melville em vez de ter lido Das Kapital: Kritik der politischen Ökonomie de Karl Marx, apesar de ambos serem delirantes ficções escritas na segunda metade do século XIX.

Seis anos separam o Ulisses de O Amante de Lady Chatterly, um e outro escritos na modernista década de 20, no século passado. Atraído pelas lições de classe e sexo de D. H. Lawrence, desrespeitei a cronologia e deixei para adiadas calendas a hermética subversão das convenções narrativas proposta por James Joyce.

Se, rapazinho, frescas faces e cheio de vida, tenho lido primeiro Das Kapital em vez do pescador de baleias, se tenho lido primeiro Ulisses em vez das saudáveis descrições sexuais de Lawrence, será que estaria hoje, num caso em revolta contra a globalização e o G-20 e, no outro, enterrado num departamento de estudos semióticos?

Feliz por ter lido o que li, e quando li, tranquiliza-me o que, de Calvino, tenho todo o gosto em citar-vos: “Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos, mas quem leu primeiro os outros e depois lê esse, reconhece logo o seu lugar na genealogia.”

Chorem, toquem tambores

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Um cemitério de John Ford

Nas últimas décadas, desenvolvemos uma cultura que visa naturalizar a morte. Sim, procurámos a sanitização da morte para que ela deixasse de nos chocar. Nos funerais de «pessoas civilizadas» já ninguém chora. Esse extraordinário espectáculo de mulheres que se rojavam pelo chão aos gritos quando lhes morriam os maridos ou de homens que esmurravam o próprio peito ao perder a mulher tão amada é considerado deslocado e socialmente constrangedor. As pessoas dão os pêsames, com ar ligeiramente mais grave, e a seguir juntam-se aos amigos procurando todos recordar episódios divertidos ou meio nostálgicos, mas sobretudo reprimem lágrimas, as convulsões. Longe vão os ruidosos tempos de carpideiras e choros colectivos.

Só que, de vez em quando, a nossa natureza recalcada regressa e exibe-se triunfante. O caldo de violência de que a humanidade brotou é-nos intrínseco. A vontade de poder nietzschiana não nos diz outra coisa e a morte sai à rua num dia assim. Ou num dia assado.

Da Ilíada ao Hamlet, Homero e Shakespeare, com as suas narrativas de violência e morte, se de alguma coisa foram cantores foi desse triunfo da natureza, conflito e crueldade. E o cinema seguiu os passos desse Homero, desse Shakespeare. No mais árido e estéril dos westerns, de John Ford a Anthony Mann, das personagens de Clint Eastwood e Morgan Freeman do Unforgiven, à personagem de Leonardo Di Caprio em The Revenant, o ritual da violência ou o ritual da morte, o campo de batalha ou o cemitério, o morto exposto, o caixão aberto, a conversa do marido com a campa da mulher morta, são o espectáculo do triunfo da natureza ou o da humana aceitação dela.

Deixem-me abrir um sorriso e dizer: é difícil fugir aos clássicos. Mesmo no crime trivial, no pequeno ou mais exuberante assaltante, há ainda um eco homérico; há um pouco de Ulisses no Al Pacino de Dog Day Afternoon. E quem no seu mais íntimo sonho não pensa, como um contemporâneo Agamémnon, que é possível roubar e dormir com a bela Briseida, escrava ou prémio de Aquiles?

Vão-nos morrendo pais e irmãos, os amigos, um esquecido amor de infância. Deixemos que nos rasgue o peito um grito, um choro de baba e ranho, a angústia de quem, fetal, regressa ao caos e trevas de antes de haver mundo.

unforgiven
o caixão de Freeman /Eastwood

O que lemos e quando lemos

Old Books

Batalhas sangrentas, estadistas megalómanos, os mais utópicos dos profetas, alguns laboriosos cientistas, bombistas coléricos, talvez mesmo predicantes economistas, antropólogos ou criminosos em série influenciaram, em algum momento, o curso do mundo em que viveram, moldando assim o que cada um de nós é hoje e, por tabela, o mundo em que vivemos. Tenho a certeza de que o meu interesse perverso por Billy the Kid – que aos 21 anos registava a tétrica contabilidade de um morto por cada ano de vida – o meu fascínio cheio de segundas intenções por Madame Curie, uma camisa que, em teenager, usei com colarinho à Dr. Jivago, terão influenciado o que sou hoje e que, confesso, oscila entre a vontade de ser um assassino com ética, o desejo de me fechar no primeiro laboratório com a mais radioactiva das físicas e o nobre idealismo individualista do médico de Pasternak.

Por maioria de razão, os livros que lemos acabam por pintar, a cores mais alegres ou mais sombrias, a personalidade que temos. Os livros que lemos e quando os lemos, tal qual como os que não lemos quando os devíamos ter lido.

Escrevo isto enquanto folheio, de Andrew Taylor, um livro de despretensiosa divulgação, Books That Changed the World. Folheio-o com uma mão, enquanto com a outra ergo, triunfal e autoritário, Porquê Ler os Clássicos de Italo Calvino. Descobri, assim, apavorado, que a minha vida podia ter sido diferente.

Com alguma comiseração biográfica, Goethe escreveu Os Sofrimentos do Jovem Werther em 1774. Escassos anos depois, dois apenas, Adam Smith redigiu, com porfiado método, a A Riqueza das Nações. O que é que me terá levado, em data incerta, entre 68 e 70, a ler o suicidário Werther, desconhecendo olimpicamente o ensaio de Smith? O romance de Goethe, que li em tradução brasileira e livro de bolso, por mais que eu queira, não me sai da cabeça e, por mais que eu não queira, virá sempre atrapalhar-me no amor. Não me arrasta para o suicídio exasperado e romântico, é certo, mas faz-me imaginar que leio os cantos de Ossian à mulher amada, com a consequente e arrebatada erupção amorosa, “beijos vorazes” e proibidos (ou porque proibidos?), afogados gritos e fuga para reservados aposentos.

Se eu tivesse então lido A Riqueza das Nações a que outros arrebatamentos teria sido transportado? Estaria eu muito mais interessado na “mão invisível do mercado” do que nos “lábios trémulos e balbuciantes” de Charlotte?

Li Moby Dick de Melville em vez de ter lido Das Kapital: Kritik der politischen Ökonomie de Karl Marx, apesar de ambos serem delirantes ficções escritas na segunda metade do século XIX.

Seis anos separam o Ulisses de O Amante de Lady Chatterly, um e outro escritos na modernista década de 20, no século passado. Atraído pelas lições de classe e sexo de D. H. Lawrence, desrespeitei a cronologia e deixei para adiadas calendas a hermética subversão das convenções narrativas proposta por James Joyce.

Se, rapazinho, frescas faces e cheio de vida, tenho lido primeiro Das Kapital em vez do pescador de baleias, se tenho lido primeiro Ulisses em vez das saudáveis descrições sexuais de Lawrence, será que estaria hoje, num caso em revolta contra a globalização e o G-20 e, no outro, enterrado num departamento de estudos semióticos?

Feliz por ter lido o que li, e quando li, tranquiliza-me o que, de Calvino, tenho todo o gosto em citar-vos: “Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos, mas quem leu primeiro os outros e depois lê esse, reconhece logo o seu lugar na genealogia.

A primeira frase

Em louvor da primeira frase dos romances, escrevi este texto há dez anos. De lá para cá, pé em 2016, pé em 2017, já publiquei três dos livros que então citava. Nos meus clássicos Guerra e Paz. Dois com traduções novinhas em folha: O Amante de Lady Chatterley e Orgulho e Preconceito. O outro, El Rei Junot, em bom português, costas voltadas ao desgraçado Acordo Ortográfico de 90. 

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Todas as famílias felizes são iguais. Cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Se eu fosse autor destas duas frases, a minha crónica terminaria aqui. Mas não, não sou. A feliz conjugação saiu armada e imortal da imaginação de um russo, anárquico e prodigioso. É assim que começa “Anna Karenina”, um dos romances maiores (são todos) de Leão Tolstoi. Parafraseando o que em tempos disseram os nossos Correios, numa campanha ganhadora aliás, começar bem é meio caminho andado.

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Há, na história da literatura, alguns começos extraordinários. D. H. Lawrence abria o seu controverso “O Amante de Lady Chatterley” com uma frase severa: “A nossa época é essencialmente trágica, por isso nos recusamos a levá-la a sério”. O livro encabeçado por esta frase, relatando no miolo a fusão tórrida de um guarda florestal com uma aristocrata, foi levado tão a sério que, publicado pela primeira vez, em 1928, na católica Florença, só em 1960 teve impressão autorizada no liberal Reino Unido. Claro que o facto da dita fusão ser, na prosa de Lawrence, reduzida a uma palavra inglesa com quatro letras explica em parte a trágica proibição.

goytisolo

Nas leituras adolescentes, um dos começos que mais me impressionou foi o da “Reivindicação do Conde Julião”, romance assinado por Juan Goytisolo. Em minúsculas – o estilo é o homem – Goytisolo punha na boca do seu narrador, que do alto de uma colina em Tânger se dirigia à Espanha de Franco, esta amargura anti-patriótica: “terra ingrata, espúria e mesquinha entre todas, jamais voltarei a ti”. À direita e à esquerda, poucos lhe pouparam a traição delirante que a invectiva supunha. A mim, esta maldição forçou-me a devorar cada página. De uma vez por todas, passei a corar sempre que lia a palavra patriotismo.

DyingAnimal

Conheci-a há oito anos. Era minha aluna”. Esta é, para mim, a melhor abertura de um romance de Philip Roth. “O Animal Moribundo”, um belo romance, não será o melhor do escritor. Mas o arranque anuncia uma glorificação do sexo que, à medida que viramos as páginas, nos leva a crer que a “verdade do orgasmo” talvez seja a única verdade capaz de suspender a morte. Ou precipitá-la?el-rei-junotO meu romance português preferido, “El-Rei Junot”, que Raúl Brandão escreveu em 1912, tem um arranque que rima com o tema pungente da invasão francesa: “A história é dor, a verdadeira história é a dos gritos”. Mais do que um romance histórico, “Junot” é o trabalho de um artista que pinta a tragédia humana com uma combinação improvável de farsa, grotesco, comicidade e metafísica.

joyce

Não sei se acabe com Jane Austen ou com James Joyce. No mais ilegível dos seus romances, “Finnegans Wake”, a primeira frase do irlandês contem todos os mistérios do mundo: “riverrun, past Eve and Adam’s, from swerve of shore to bend of bay…”, o que em português tentativamente dá “riocorrente, depois de Eva e Adão, do desvio da praia à dobra da baía…”. E poucas vezes a escrita terá fluído como este rio, ancestral e a abrir-se sobre o mar, de sibilante para redonda e doce aliteração (“from swerve of shore to bend of bay”).

orgulho-e-preconceito

Mas para acabar, e agora é que é, escolho a epítome do amor romântico que é “Orgulho e Preconceito”, de Jane Austen. “É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro na posse de uma boa fortuna deve estar à procura de uma esposa.” Porque é que nada neste nosso mundo é já tão seguro e certo como os padrões desse velho mundo em que tudo era reconhecimento e segurança?