
Agora que se fala da Paz Quente, apetece-me lembrar a Guerra Fria. Convidaram-me, aliás, a escolher seis filmes que fizessem o retrato desse tempo de ameaça atómica, de espiões, de misseis em Cuba. Tinha 800 caracteres com espaços para apresentar cada um dos que escolhesse – texto telegráfico, portanto. Escolhi estes, escrevendo o que se segue:
The Thing (1951)
É o filme de um monstro que ameaça a humanidade. Mas donde vem essa “coisa”? Os anos 50 foram, na América, uma década de histeria colectiva. E tinham medo de quê, os americanos? Dos monstros do espaço ou dos prosaicos monstros comunistas vizinhos? “The Thing” é um dos primeiros filmes de ficção científica a dizer nas entrelinhas o verdadeiro medo da década, o medo da escalada da Guerra Fria.
O alien de “The Thing” é um monstro agressivo. Legitima assim o ataque de um grupo de militares. A acção heróica deles não esconde uma viva desconfiança perante a ciência que tenta compreender o monstro. O apelo final do filme é um grito ineludível de propaganda anti-soviética: “Gritem ao mundo. Avisem toda a gente. Vigiem os céus em todo o lado. Vigiem sempre. Não deixem de vigiar os céus!”
North by Northwest
(Alfred Hitchcock, 1959)
Ninguém tratou a Guerra Fria com tão fina elegância como Alfred Hitchcock. Em “North by Northwest” é com delicadas luvas e imparável ironia que Hitchcock filma o imbróglio do monumental equívoco em que um inocente e nonchalant Cary Grant se vê envolvido por uma teia de espiões russos. Querem roubar da América um valioso, secreto e perigosíssimo microfilme que, ou Hitchcock não fosse Hitchcock, nunca saberemos o que continha.
Estava-se em plena corrida espacial, com os soviéticos em vantagem, e Hitchcock concebe espiões russos selectos, capazes de se mover nos ambientes mais sofisticados ou de assassinar um diplomata em plena ONU, sem deixar rasto. É a antítese da figuração ameaçadora que os filmes de ficção científica tinham oferecido desde 1951. A Guerra Fria entrava noutra fase.
One, Two, Three
(Billy Wilder, 1961)
Castigado por meter a pata na poça no Médio Oriente, James Cagney, na pele de executivo da Coca-Cola, é mandado a Berlim negociar um acordo que introduza a excelsa bebida americana na URSS. Secretaria-o uma adorável loira de 17 anos, filha do patrão, que às escondidas se casa com um jovem comunista de Berlim Leste.
Billy Wilder revisita alguns temas do argumento que escrevera para “Ninotchka”, de Lubitsch, nos anos 30, com gags arrancados aos choques ideológicos e comportamentais entre comunismo e capitalismo. A realidade atropelou-o: estava a filmar quando o Muro de Berlim foi construído, obrigando a equipa a mudar-se para Munique.
A velocidade dos gags é fabulosa: com misseis, tecnologia, corrida espacial, colonialismo, espiões e coca-cola não há cortina de ferro que aguente.
Dr. Strangelove or:
How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb
(Stanely Kubrick, 1963)
O título! Que trepidante montanha russa é o longo título original. “Dr. Strangelove” é um filme inclinado a mascarar em sátira o seu realismo obsessivo. Basta ver os seus aviões B-52, cuja tecnologia era, então, assunto de segurança nacional.
Kubrick filmou já depois de ter secado o cimento do Muro de Berlim (1961) e estando ainda frescas as cólicas que os misseis de Cuba causaram aos intestinos do mundo.
Estaria ao alcance de um lunático com poder largar a bomba? Estava. Os poderes americanos riram-se a ver o filme, mas foram a correr tapar os buracos que o sistema tinha.
“A minha mão faz coisas que eu não quero fazer” é talvez o resumo justo da desbragada demência de peripécias e personagens que no filme veneram o pesadelo nuclear. A mão voltou a andar por aí e não há Kubrick para nos fazer rir.
From Russia With Love
(1963, Terrence Young)
O inefável 007 foi o herói da Guerra Fria. Venceu-a com fantasia, humor e a mais capciosa tecnologia. Também com a contribuição dos seus inescapáveis dry-martinis “shaken, not stirred”, de alguns admiráveis biquínis e ao volante de um Aston Martin.
Este foi o segundo 007, e a produção, sabendo que, dos livros de Ian Fleming, o favorito do presidente Kennedy era “From Russia With Love”, escolheu-o: prémio ao vencedor da Crise dos Misseis.
SPECTRE, a organização criminosa que 007 enfrenta, era a disfarçada cópia da agência de espionagem soviética. Bond, James Bond ensinou o Ocidente a ganhar a guerra: com prazer, sentido de humor, cama, bons fatos, tecnologia mais esperta e até risonha. Pode discutir-se se 007 está do lado do Bem, mas é indubitável que o seu lado é o lado do bem-estar.
A Boy and His Dog
(L. Q. Jones, 1975)
Da barriga da Guerra Fria nasceu um novo género: os apocalípticos filmes pós-nucleares. Podia escolher-se “Five”, ou o “On The Beach”, por causa de Ava Gardner, até mesmo um dos “Planeta dos Macacos”. Prevalece a irreverência de “A Boy and His Dog”, filmado depois de russos e americanos assinarem o tratado de redução de armas nucleares.
Um rapaz e um cão sobrevivem à IV Guerra Mundial. Prodígio: o cão fala com o rapaz por telepatia. O rapaz procura comida; em troca, o cão fareja raparigas que o rapaz viola. É um mundo devastado e bárbaro. À superfície, tudo é necrófago e a fome impera. Nos subterrâneos, em biosfera artificial, há um mundo puritano de privilegiados. Com um problema: sem sémen, os homens são incapazes de reprodução. O rapaz vai ser útil. Assustadoramente útil, descobrirá depois.
Publicado na Visão História
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