As dores de Cristiano Ronaldo serão as mesma do que as minhas?

ronaldo

Agora que vi Ronaldo em Madrid, a ser entrevistado por um punhado de menininhas e menininhos – e tanto gostei de o ver, lembrei-me que há cerca de um ano ele conversou, confessional, comigo, papo que relatei como se segue. Ou melhor, ele não conversou bem comigo, que ele não me dá essa confiança. Foi aos jornalistas que Cristiano Ronaldo fez essa confissão: “Não tive um dia na minha carreira que não tivesse dor.” Cristiano Ronaldo ainda nem trinta anos tinha quando disse o que o site do ESPN do Brasil pespegou então, às 17:00, na sua página, para delírio dos seus leitores, actualizando essas dores, e eram já outras dores, às 17:15.

Eu precisei de chegar aos 65 anos para me aproximar, tangencialmente que seja, de Cristiano. Uma moinha na cervical, mesmo se me deixa dormir, logo tem, em última análise, como se diria nos meus tempos revolucionários e sem dores, lamentáveis consequências na barriga das pernas no dia seguinte. E se não for o joelho, há-de ser o dedo médio da mão esquerda que congela, como se a articulação ossificasse, sem remissão, para a eternidade. E nem falo do braço direito que já não levanta seque à altura do ombro e gera dores horrorosas quando tento usar os tradicionais saca-rolhas nos brancos rabigato do Douro que deveriam ser o bálsamo da minha velhice.

Chego aos 65 anos e sou, finalmente, um Cristiano Ronaldo: não há um só dia sem dores, uma só articulação que não proteste, coração, cabeça e estômago que não venham, camilianos, atazanar-me.

Isto era o que se me oferecia dizer aos 65 anos. E, não obstante, um ano depois, aos 66, esquecidas ou assimiladas, eis que as dores se dissipam, uma certa e distraída inefabilidade leva-me o corpo, sem dizer nada, sem aviso e, diga-se, sem maldade. Por fim, o nirvana.

Mandaram matá-la

zineb

Bica Curta tirada no CM, 4.ª feira, dia 24 de Julho

Zineb El Rhazoui é jornalista francesa de origem marroquina. Em 2015, disse: o Islão deve submeter-se à razão, ao humor e às leis da república! Os fundamentalistas islâmicos decretaram logo a sua morte. Os lobos solitários do Islão devem procurá-la e matá-la: a tiro, à bomba, degolando-a, à pedrada ou incendiando-lhe a casa. Nas redes sociais, “mulata suja volta para o teu país” é o insulto que ouve dos mesmos islâmicos que alegam ser vítimas de racismo em França.

Zineb toma a bica curta sob protecção policial, sem liberdade: uma vida estilhaçada. Eis a foz onde desagua o rio tribal, identitário e de excepção religiosa.

Morreremos como uma corveta

afonso

Numa das minhas espartanas razias pela televisão, apanhei na SIC uma bela reportagem de Aurélio Faria sobre a corveta Afonso Cerqueira. Era uma corveta cheia de História, como todas as corvetas, ou como todos nós que navegamos a vida como num oceano deslizam corvetas. Hoje, a corveta está no fundo do mar.

E vi, nessa corveta no fundo do mar, feita recife ao largo da Madeira, o meu destino. Na morte da corveta a minha morte. A sua também. A de todos os nossos amores amigos, afinal. Todos acabaremos recifes no fundo do cosmos sem fundo.  Tal como a heróica corveta Afonso Cerqueira que, seja por onde quer que se entre, oferece sempre uma segunda saída aos aquáticos visitantes, por mim, por si, pelo meio desses suspensos recifes, que estamos destinados a ser no fundo do cosmos, nadarão mergulhadores, o impertinente esquecimento, as cegas águas da eternidade, robalos e douradas galácticas, as despenteadas algas de Deus. Por onde quer que metafisicamente nos entrem, esses cósmicos visitantes encontrarão sempre a nossa segunda e oferecida saída, roído buraco, mais de olvido do que de saudade, do sono ou sonho que tenha sido a nossa remota vida. 

Se me permitem dizê-lo, é a primeira vez que a eternidade me apetece.

Como jaquinzinhos

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Bica Curta tirada no CM, 3.ª feira, diz 23 de Julho

“Capillaria” é um romance húngaro de 1921, e é o nome de um país habitado por belas e gigantescas mulheres louras, rosto angélico, pele alabastrina. Não há homens, mas há imensos e pequenos seres em forma de órgão sexual masculino. Diz-se que estimulam a reprodução da espécie e as mulheres acham-nos saborosos. Petiscam-nos como se fossem jaquinzinhos. As mulheres são sensualíssimas. Um aroma, um sabor, uma música causam-lhes arrebatadores orgasmos. E a bica curta, por certo.

Será o nosso crispado mundo de géneros já um cruzeiro a caminho dessa Capillaria que rifou os homens e se consola numa luxúria auto-suficiente?

A terrível incompreensão

Não, não vou voltar a Van Gogh. Mesmo se o caso dele é um excepcional desmentido do que vou dizer. E lembro: quando morreu tinha vendido um quadro.

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Há um mito que, de tão tranquilizador para críticos idiotas e artistas cabotinos, me encanita um bocadinho. Reza assim: “As obras incompreendidas hoje serão descobertas amanhã”.

Com boa vontade, mas mesmo muito boa vontade, talvez aconteça num ou dois casos. Prefiro pensar que, maioritariamente, as obras incompreendidas hoje continuam a ser incompreendidas amanhã. Milhares, mesmo milhões de obras, incompreendidas hoje, serão irremediavelmente esquecidas amanhã e ainda mais depois de amanhã. Por mais euforia estética que me invada e por mais optimista que tente ser, acabo submerso por este cepticismo cartesiano a que o veneno do tempo acrescenta, ainda, este azedo tempero: “Muitas obras compreendidas hoje serão, lógica e legitimamente, incompreendidas amanhã.

 

A Guerra Fria em seis filmes

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Agora que se fala da Paz Quente, apetece-me lembrar a Guerra Fria. Convidaram-me, aliás, a escolher seis filmes que fizessem o retrato desse tempo de ameaça atómica, de espiões, de misseis em Cuba.  Tinha 800 caracteres com espaços para apresentar cada um dos que escolhesse – texto telegráfico, portanto. Escolhi estes, escrevendo o que se segue:

 

The Thing (1951)

É o filme de um monstro que ameaça a humanidade. Mas donde vem essa “coisa”? Os anos 50 foram, na América, uma década de histeria colectiva. E tinham medo de quê, os americanos? Dos monstros do espaço ou dos prosaicos monstros comunistas vizinhos? “The Thing” é um dos primeiros filmes de ficção científica a dizer nas entrelinhas o verdadeiro medo da década, o medo da escalada da Guerra Fria.

O alien de “The Thing” é um monstro agressivo. Legitima assim o ataque de um grupo de militares. A acção heróica deles não esconde uma viva desconfiança perante a ciência que tenta compreender o monstro. O apelo final do filme é um grito ineludível de propaganda anti-soviética: “Gritem ao mundo. Avisem toda a gente. Vigiem os céus em todo o lado. Vigiem sempre. Não deixem de vigiar os céus!”

North by Northwest
(Alfred Hitchcock, 1959)

Ninguém tratou a Guerra Fria com tão fina elegância como Alfred Hitchcock. Em “North by Northwest” é com delicadas luvas e imparável ironia que Hitchcock filma o imbróglio do monumental equívoco em que um inocente e nonchalant Cary Grant se vê envolvido por uma teia de espiões russos. Querem roubar da América um valioso, secreto e perigosíssimo microfilme que, ou Hitchcock não fosse Hitchcock, nunca saberemos o que continha.

Estava-se em plena corrida espacial, com os soviéticos em vantagem, e Hitchcock concebe espiões russos selectos, capazes de se mover nos ambientes mais sofisticados ou de assassinar um diplomata em plena ONU, sem deixar rasto. É a antítese da figuração ameaçadora que os filmes de ficção científica tinham oferecido desde 1951. A Guerra Fria entrava noutra fase.

One, Two, Three
(Billy Wilder, 1961)

Castigado por meter a pata na poça no Médio Oriente, James Cagney, na pele de executivo da Coca-Cola, é mandado a Berlim negociar um acordo que introduza a excelsa bebida americana na URSS. Secretaria-o uma adorável loira de 17 anos, filha do patrão, que às escondidas se casa com um jovem comunista de Berlim Leste.

Billy Wilder revisita alguns temas do argumento que escrevera para “Ninotchka”, de Lubitsch, nos anos 30, com gags arrancados aos choques ideológicos e comportamentais entre comunismo e capitalismo. A realidade atropelou-o: estava a filmar quando o Muro de Berlim foi construído, obrigando a equipa a mudar-se para Munique.

A velocidade dos gags é fabulosa: com misseis, tecnologia, corrida espacial, colonialismo, espiões e coca-cola não há cortina de ferro que aguente.

Dr. Strangelove or:
How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb
(Stanely Kubrick, 1963)

O título! Que trepidante montanha russa é o longo título original. “Dr. Strangelove” é um filme inclinado a mascarar em sátira o seu realismo obsessivo. Basta ver os seus aviões B-52, cuja tecnologia era, então, assunto de segurança nacional.

Kubrick filmou já depois de ter secado o cimento do Muro de Berlim (1961) e estando ainda frescas as cólicas que os misseis de Cuba causaram aos intestinos do mundo.

Estaria ao alcance de um lunático com poder largar a bomba? Estava. Os poderes americanos riram-se a ver o filme, mas foram a correr tapar os buracos que o sistema tinha.

“A minha mão faz coisas que eu não quero fazer” é talvez o resumo justo da desbragada demência de peripécias e personagens que no filme veneram o pesadelo nuclear. A mão voltou a andar por aí e não há Kubrick para nos fazer rir.

From Russia With Love
(1963, Terrence Young)

O inefável 007 foi o herói da Guerra Fria. Venceu-a com fantasia, humor e a mais capciosa tecnologia. Também com a contribuição dos seus inescapáveis dry-martinis “shaken, not stirred”, de alguns admiráveis biquínis e ao volante de um Aston Martin.

Este foi o segundo 007, e a produção, sabendo que, dos livros de Ian Fleming, o favorito do presidente Kennedy era “From Russia With Love”, escolheu-o: prémio ao vencedor da Crise dos Misseis.

SPECTRE, a organização criminosa que 007 enfrenta, era a disfarçada cópia da agência de espionagem soviética. Bond, James Bond ensinou o Ocidente a ganhar a guerra: com prazer, sentido de humor, cama, bons fatos, tecnologia mais esperta e até risonha. Pode discutir-se se 007 está do lado do Bem, mas é indubitável que o seu lado é o lado do bem-estar.

A Boy and His Dog
(L. Q. Jones, 1975)

Da barriga da Guerra Fria nasceu um novo género: os apocalípticos filmes pós-nucleares. Podia escolher-se “Five”, ou o “On The Beach”, por causa de Ava Gardner, até mesmo um dos “Planeta dos Macacos”. Prevalece a irreverência de “A Boy and His Dog”, filmado depois de russos e americanos assinarem o tratado de redução de armas nucleares.

Um rapaz e um cão sobrevivem à IV Guerra Mundial. Prodígio: o cão fala com o rapaz por telepatia. O rapaz procura comida; em troca, o cão fareja raparigas que o rapaz viola. É um mundo devastado e bárbaro. À superfície, tudo é necrófago e a fome impera. Nos subterrâneos, em biosfera artificial, há um mundo puritano de privilegiados. Com um problema: sem sémen, os homens são incapazes de reprodução. O rapaz vai ser útil. Assustadoramente útil, descobrirá depois.

Publicado na Visão História

Os caranguejos de Van Gogh

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Pouco depois de ter cortado a orelha, conforme carta que escreveu a Theo, seu irmão, Vincent Van Gogh pintou estes dois caranguejos. Esta natureza morta pertence a uma colecção privada e era raramente vista – mas está agora na National Gallery por empréstimo desse coleccionador privado.

É provável que Vincent se tenha inspirado em reproduções do japonês Katsushika Hokusai que Theo lhe tinha enviado numa edição da revista “Le Japon Artistique”. Também é provável que os dois caranguejos sejam apenas um, pintado direito e de pernas para o ar no mesmo quadro. Não conhecia e gosto, de boca aberta até que entre mosca, das vigorosas pinceladas que oferecem um mar inteiro ao heterotópico crustáceo.

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