sonho e tempo, tempo e sonho

Las Viejas uma interpretação do tempo
Las Viejas, a goyesca interpretação do tempo

Talvez a vida não seja mais do que sonho, talvez a nossa pequena vida esteja cercada, apenas e só, por um redondo sono.

Prefiro pensar que, mais do que a matéria com que se constroem os sonhos, é o tempo a substância de que todos somos feitos. Um tempo irreversível e inexorável.

Podemos sonhar, pode o sono obscuro invadir-nos, o que não podemos é negar o tempo. Negá-lo é negarmo-nos.

Por vezes é lícito trocar este stuff de Shakespeare:

We are such stuff
As dreams are made on; and our little life
Is rounded with a sleep.

(Nós somos essas coisas
de que são feitos os sonhos; e a nossa pequena vida
está rodeado de sono.)

Shakespeare, The Tempest

por esta sustancia de Borges:

El tiempo es la sustancia de que estoy hecho.
El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy el río;
es un tigre que me destroza, pero yo soy el tigre,
es un fuego que me consume, pero yo soy el fuego

(O tempo é a substância de que sou feito.
O tempo é um rio que me arrebata, porém sou eu o rio;
é um tigre que me destroça, porém sou eu o tigre;
é um fogo que me consome, porém sou eu o fogo.)

Borges, Otras Inquisiciones

Picasso
Picasso: sonho ou sono

Martin Sheen e a Madre Teresa

Sheen
Martin Sheen como a Madre Teresa nunca o viu

O actor Martin Sheen é um fervoroso católico: só lhe fica bem. Era um fervoroso anti-todos-os-Bush, mas agora, se calhar, e por causa de Trump, talvez ande a pensar duas vezes. Durante a primeira Guerra do Golfo, veio com a família e um amigo, a Roma, falar com a Madre Teresa, já falecida e agora sentada à direita de Deus, se alguém se senta à direita de Deus.

Sheen à esquerda, Teresa à direita, sentaram-se, fizeram vénias, beija-mão e os olhos do actor a chorar de realíssima admiração até ele lhe pedir para, SisterMother, convencer o Papa a levar o assunto – e o assunto era um, digamos, abaixo-assinado contra a guerra – a um tribunal internacional que ordenasse aos beligerantes a paragem do conflito. A irmãzinha perguntou-lhe com candura: “E eles obedecem?

Sheen, o quiet american, embatucou. Recebido e percebido o recado, ajoelhou-se e a pequenina Teresa abençoou-o e abençoou a mulher e os quatro filhos dos dois. Deu-lhes, também, medalhas de santos, escapulários. Martin Sheen lembrou-se então de que o seu velho amigo Marlon Brando vivia, na altura, um momento angustiante – ele andava como a kind of a damsel in distress, se de Brando assim se pudesse dizer.

Pediu, por isso, a Madre Teresa que lhe desse mais uma medalha para esse amigo que era, explicou-lhe, um actor famoso. “Quem é”, perguntou ela, curiosa. “Marlon Brando”, disse ele, sonoro. “Ah, nunca ouvi falar”, respondeu a madre com escrupulosa ignorância.

Sheen regressou à minha parvónia preferida, os lindos USA, e, quando deu a medalhinha a Brando, contou-lhe toda a história, sem omitir uma que seja das minhas vírgulas, e já viram que são muitas.

 “Confesso que Marlon ficou lavado em lágrimas. It meant so much to him”, contou com pontinha de orgulho Martin Sheen. E eu, que estive a chutar para canto para que não rolasse uma lágrima, reconheço que ainda gosto mais, agora e por culpa da Madre Teresa, de Sheen e Brando, meus heróis de “Apocalypse Now”, o único filme, que eu saiba, todo em forma de rio.

Sheeen_rio
Um filme em forma de rio

 

 

Amazing (mas mesmo) grace

Que a graça do coro do Soweto, de Tom Joad, Steinbeck e de Aretha Franklin tombem, hoje, sobre mim. Para que também eu possa dizer, and now I see… how sweet the sound. Hoje é bom dia.

No capítulo 4 de “The Grapes of Wrath”, Tom Joad, o protagonista, que já leva dois capítulos em busca da família, reencontra o ex-pregador Jim Casy. Primeiro não o reconhece. Até que, e logo uma corrente de profunda simpatia nasce entre dois, Jim confidencia que o mais exaltante momento da sua evangélica pregação era quando, invocando o Santo Espírito, uma vaga de transcendência inundava os fiéis e a “amazing grace” desaguava como uma auréola na doce silhueta das doces raparigas.

Cito: “…But the more grace a girl got in her, the quicker she wants to go out in the grass.’ An’ I got to thinkin’ how in hell, s’cuse me, how can the devil get in when a girl is so full of the Holy Spirit that it’s spoutin’ out of her nose an’ ears… an’ ever’ time, I lay with one of them girls.

… to me they was holy vessels. I was savin’ their souls. An’ here with all that responsibility on me I’d just get ‘em frothin’ with the Holy Spirit, an’ then I’d take ‘em out in the grass.

Não é nada, digo, que uma mente honesta e decente não pense quando ouve o que abaixo podem ouvir. Caminho da salvação.

 

O elogio dos pequeníssimos livros

chá

Aqui me têm sempre pronto a fazer o louvor de belos e desmesurados livros que precisam de sólida mesa para serem lidos e de um guindaste para lhes virar cada página. O tamanho é a primeira qualidade deles, a que mais realça as outras. Mas tenho também uma (ou outra) certa e fiel paixão pelos pequeníssimos livros.

Já viram “O Culto do Chá”, de Venceslau de Morais? As 60 páginas da edição japonesa (que custou uns duzentos mil réis) vieram a público em 1905, com ilustrações de Iochiaqui, gravadas por Gotô Seikodô. É um livrinho lindíssimo, cujo aflitivo bom gosto a editora frenesi (assim, com minúsculas, por favor) reproduziu com a fidelidade que o original exigia. Naquele tempo, em 1905, vieram para Portugal mil exemplares e o livro, ironizava Morais, era tão bom que nenhum livreiro o queria. Em recente leilão vendeu-se um exemplar dessa 1ª edição por 850 euros.

animal

E mudo de mão. São 75 as páginas em que ardentemente respira Herberto Helder na “Vocação Animal”, editado pelas “publicações dom quixote” (assim também, em minúsculas na capa), em Maio de 1971, livro de poemas dedicado “a uma devagarosa mulher de onde surgem os dedos, dez e queimados por uma forte delicadeza.” Não se encontra, creio, essa dedicatória, na Poesia Toda que reúne a Obra do poeta, como não se encontram os versos originais que não reproduzirei, mas que na versão actual chegaram a esta menos escatológica versão: “Aprendi como é devagar – comer devagar, sorrir, dormir devagar, pensar e morrer – aprendi devagar.

São 43 todas as páginas de que a Assírio & Alvim precisou para publicar um dos mais famosos e perturbantes monólogos do século XX, “A Voz Humana”, escrito por Jean Cocteau sem precisar de outra coisa que não fosse um telefone e a angústia de uma mulher que se despede do amante. A tradução que tenho é de Carlos de Oliveira e o finíssimo livro faz parte da colecção Gato Maltês.

Gosto muito da capa dura do “Giotto”, pequenina edição da World’s Masters Series, coordenada por Anthony Bertram, com a chancela da The Studio Publications, London, New York. Giotto é apresentado em 15 páginas e nas outras 49 há estampas a preto e branco com os seus quadros ou pormenores deles. “The small mind is always hungry to admire the small and to exagerate its importance. Small things have their place in great events, but it is a small place. Giotto is always busy with great events and never allows his genuine interest in these small things to distract his attention from them. If they distract ours, that is because of our pettiness, our inability to keep proportion.” Só mesmo em 1951, data da edição desta minha miniatura, se tratavam os leitores com tamanha desconsideração e se lhes dava, para seu benefício, tal raspanete.

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Impresso na tipografia Herder & Co, em Frisburg, corria o ano de 1939 (e suponho que antes de começar a Guerra), gosto muito de ter “Los Novios”, a versão espanhola do sexto de uma série de tomitos de arte publicados pelo Dr. Heinrich Lützler e que para castelhano foram vertidos pelo Dr. Francisco Carillo Guerrero. Em seis páginas, o Senhor Professor Lützer perora sobre a representação dos noivos na pintura, ao que se segue, a cores e a preto e branco, a reprodução de 25 quadros, incluindo “Novios Portugueses”, fragmento de um quadro de Rembrandt que acima reproduzi.

Muito mais recente, de 1985, é o livrinho de 10 por 14 cm, editado pela apaginatantas. Pequenino é verdade, mas contendo o que João Barrento no prólogo chama “Priapreia Gotheana”, título que me poupa a dizer o nome do autor, e que, na capa, tem o menos vigoroso título “Erótica & Curiosa”. Li e, assim acabando, ofereço para mote estes versos:

Se a moça te esquece, volúvel, ligeira.
Anda, vê se agarras o tempo passado,
Que o seio da segunda, quando for beijado,
Mais doce é ainda do que o seio da primeira.

O #MeToo do século XIX

leonie

Pelas agruras das camas das gerações anteriores conheceremos as nossas? Lençóis à parte, o que tem uma cama do século XIX a ver com uma cama #MeToo?

Espreitemos. A irrupção de Léonie d’Aunet na vida e na cama de Victor Hugo, autor de “Os Miseráveis”, alegrou-o tanto a ele como a Adèle Foucher, sua mulher. Outra mulher naquela cama era uma boa notícia: Adèle estava pelos cabelos com a amante oficial de Hugo, a actriz Julliete Drouet.

E já estou a pôr duas camas à frente do amor. Volto atrás. Victor Hugo e Adèle eram quase noivos de infância. Teriam casado aos 16 anos dela, se a aristocrata mãe de Hugo não desdenhasse a origem sem pedigree de Adèle com o mesmo maternal complexo de superioridade que, hoje, um sociólogo de esquerda aplica à observação da abnegada doçura do povo: Adèle era boa para brincar à cabra cega, mas não para casar. Morreu a mãe e, livre, Hugo casou com Adèle.

Hugo e Adèle tiveram cinco filhos, mas fizeram das suas vidas linhas paralelas que nem a cama conseguia já juntar. Adèle não acompanhava a turbulência boémia de pintores e escritores, nem essa declamatória voz de Hugo, que imagino com a potente sonoridade da de Manuel Alegre. Um amigo de Victor Hugo, amigo lá de casa, o escritor Saint-Beuve, insidioso, ofereceu a Adèle o sub-reptício ombro meloso. O banho-maria intimista de Saint-Beuve era o oposto da truculência viril de Hugo. Adèle apreciou o contraste e tomou a metade de homem que era Saint-Beuve como amante.

Há dois parágrafos que tenho a bela Léonie d’Aunet à espera. Foi a primeira mulher numa expedição ao Árctico. Romancista, amiga das artes, era casada com o pintor François-August Biard. Mas este parágrafo é ainda de Juliette. Victor Hugo perdoou a infidelidade a Adèle, mas sentiu-se autorizado a ter também uma amante oficial. Juliette viera pedir um papel numa peça dele. Era um pé como actriz, mas de uma beleza que fazia soltar “ohs!” de espanto às pedras da calçada. Apaixonaram-se e foram amantes nos 50 anos seguintes. Tudo consentido por Adèle, ressentida apenas com a tamanha exclusividade que os amantes se dedicavam.

O arranjo levava dez anos quando o grande escritor conheceu a bem casada Léonie. Tenho aqui de usar um neologismo: irresistiram-se, caindo nos braços um do outro. Durante dois anos gozaram uma clandestinidade de beijos roubados, camas e quartos de sabe Deus. Até que Léonie falou ao marido de divórcio. François-August já sabia do affaire e consentiria em tudo, menos no divórcio. Veio com um comissário de polícia e surpreendeu-os na cama, em flagrante delito.

Eis o #MeToo do século XIX, acusar a mulher livre e autónoma. Léonie foi arrastada para o calabouço de Saint-Lazare e enfiada num convento por seis meses. Victor Hugo, por ser “par do reino”, era intocável: gozava a imunidade do nosso deputado de Lisboa ou Bruxelas. Foi preciso que o imperador de França, Luís Filipe I, aconselhasse o marido de Léonie a regressar à pascácia calma civilizacional. François-August desistiu da queixa: recusar o conselho imperial seria como recusar uma palavra amiga de Marcelo, se Marcelo nos desse palavras amigas sobre patrióticos rompantes sexuais.

Para revolta da amante oficial, Juliette, que não aceitava traições, quem, depois, pôs Léonie sob a sua asa foi a esposa Adèle. Recebi-a em casa e trocava conselhos literários por dicas de beleza e decoração. Dissuadiu-a até de seguir o escritor quando ele foi exilado político. Victor Hugo honrou os compromissos com as três mulheres que amou e o amaram. Nunca se divorciou de Adèle.

Publicado na minha coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

A Revolução de Outubro e a superioridade moral

Há quase dois anos, que se hão-de cumprir em Novembro, comemoraram-se os 100 anos da Revolução de Outubro. Publiquei então um livro da minha autoria, com o título Revolução de Outubro, Cronologia , Utopia e CrimeA jornalista Marta Talhão entrevistou-me na revista GQ. O resultado é o que se pode ler aqui e que, em altura de Brexit, me apetece recordar.

revolucao-de-outubro

Na sinopse do livro, diz que este é um livro de factos. Considera que são muitos os factos desse tempo hoje ignorados?

Os factos foram, durante muitos anos, omitidos, apagados e torpedeados. Mas houve historiadores, como Richard Pipes e Orlando Figes, que obrigaram as narrativas heróicas da revolução a confrontarem-se com os factos. Depois, o fim da União Soviética, a que a glasnost e a perestroika de Gorbachov conduziram, vieram a determinar a abertura dos arquivos do regime comunista. E são os factos que sempre lá estiveram, mas que foram metidos debaixo do tapete da história oficial, que hoje fundamentam a desmistificação das versões em missa cantada da revolução. Os factos mostram que a revolução de Outubro afasta do poder a esquerda, as várias esquerdas, contra as quais o golpe é feito. Os factos mostram que o partido bolchevique, depois partido comunista, era mais do que minoritário e que mesmo pensadores marxistas os consideravam uns alucinados da História.

Cem anos depois, ainda se sentem hoje ecos da Revolução?

A Revolução de Outubro determinou o mapa da Europa. A Europa que somos, com esta tensão tão viva entre a Rússia de Putin e a União Europeia ainda é um eco bastante audível dela. A Revolução de Outubro foi um Brexit avant la lettre. Esse golpe populista pôs a Rússia fora da Europa e influenciou a forma como as tensões políticas se extremaram na Europa o que deu gás (ou ainda mais gás) à emergência do nazismo. Num cenário de “what if”, se a Rússia tivesse evoluído para uma democracia, após a queda do poder autocrático, o que teria acontecido? Teria havido a II Guerra Mundial? Que cenário geo-estratégico teria sido o da segunda metade do século XX, certamente diferente da Guerra Fria e da ameaça de guerra nuclear que assombrou esses 50 anos?

Do seu ponto de vista, foram mais as conquistas ou os efeitos nefastos resultantes da Revolução?

É difícil ver conquistas num processo de terror que durou décadas. Todas as conquistas foram pesadas: a indústria cresceu com trabalho forçado, a unidade territorial e a expansão da Rússia com a criação dos países satélites do Leste são o resultado de uma repressão desmedida, com milhões de mortos e com a suspensão dos direitos humanos. Todas as conquistas do proletariado que o Manifesto Comunista de Marx e Engels entusiasticamente advogava foram conseguidas e adquiridas pelos proletariados dos países democráticos sem o sofrimento hediondo e repugnante que os totalitarismos sempre provocam, e que o totalitarismo soviético provocou a uma escala assustadora.

De que forma acha que o estudo mais aprofundado desta temática nos pode ajudar a definir melhor os caminhos a seguir enquanto sociedade em pleno século XXI?

Reflectir sobre estes pontos é essencial. Leva-nos a recusar os populismos de direita e de esquerda. E obriga sobretudo a esquerda a pensar que não tem nenhuma superioridade moral.

Ainda resta algo dos ideais e da esperança inicial da Revolução?

Tenho a certeza de que muitos dos revolucionários bolcheviques tinham uma vontade real de mudar o mundo e que a isso os impelia sobretudo o profundo desgosto e a revolta que as injustiças do czarismo causavam. Esse ideal é humaníssimo e não vejo nenhuma razão para abdicarmos dele. Mas é forçoso hoje pensarmos que a mudança pela mudança é um caminho para a catástrofe. Não há mudança sem a consciência da tradição. Não há mudança que não tenha de ser alicerçada numa História e num saber que é pertença da humanidade. A mudança que rasga todas as tradições, que se arroga a autoridade de destruir de forma maniqueísta outras classes e grupos humanos, étnicos ou religiosos, não é mudança é puro prazer de destruição.

Trair a raça

portugueses

Bica Curta servida no CM, 5.ª feira, dia 18 de Julho

A racialização das relações sociais é perigosa. É o que está a acontecer no actual PREC, Polémica Racial em Curso. Brancos e negros precisam de um traço de identidade para serem uma comunidade. Tem de nos unir um projecto de futuro comum. O apelo multiculturalista a uma identidade primária, rácica, leva ao fechamento em clã, um passo para um fundamentalismo que converte quem não tem a mesma pele num inimigo a odiar. E, a seguir, inimigos serão também os que ousem pensar diferente, traidores da sua raça. Brancos e negros.

Para bebermos a bica curta juntos e construir um futuro comum temos de fintar a ratoeira do multiculturalismo.

Rutger Hauer

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Nunca falei ou sequer vi de relance na vida real, seja lá o que for a vida real, Rutger Hauer. E tenho tanto a agradecer-lhe. Hoje, na hora da sua morte, se pudesse, juntava à volta de uma mesa, o Francisco Balsemão, o Emídio Rangel, o Bastos e Silva. Só para, juntos, lhe agradecermos. Ao Rutger.

Por muito estranho que pareça, Rutger Hauer, e sobretudo o Rutger Hauer dos filmes low-budget, foi um dos actores que levou aos ombros o êxito da SIC nos anos 90. Os seus filmes de acção, que o Manuel Cintra Ferreira me ajudou a escolher, aquele incendiado vermelho das explosões, os hercúleos esforços, murros, a resiliência, o sofrimento ou a maldade conforme o lado de que estivesse, foram preciosos pontos de share que ajudaram a erguer a televisão privada em Portugal, com todos os muitos bens e alguns males associados, e Deus seja louvado, que é de haver bens e males que a humanidade se faz e vale a pena!

E agora que já me enrolei na saudade como o peixinho da horta no polme antes da fritura, eis o que verdadeiramente quero dizer. Rutger Hauer era tão belo que podia ser feio, era o bem e o mal, a perversidade e o angelismo. Era actor, persona, um físico flexível, dúctil, que ia por onde os olhos dele o levavam, levando-nos. E mesmo quem, por preconceito ou só manifesta infelicidade, não lhe tenha visto os filmes de acção, de porrada (e exagero, só pour épater l’intellectuel!), de explosões em vermelho SIC fim do século XX,  basta que o tenha visto ao lado de Michelle Pfeiffer em Ladyhawke, feito morte on the road de The Hitcher, replicante e elegíaco ao lado de Harrison Ford e Sean Young em Blade Runner. 

Morreu hoje um grande actor de cinema: instilou uma beleza sibilina na maldade, ou melhor, carregou de tristeza a bondade em que sempre descambam os autênticos gestos de maldade. Actor europeu, que em filmes europeus nunca teria sido o que foi em filmes americanos, poucas vezes, como com Rutger Hauer,  o dark side foi tão luminoso. 

ladyhawke