Em defesa da alegria

Seberg

Se, excluída a sobrevivência e reprodução da espécie, fosse obrigado a escolher só uma das coisas que me dá prazer, escolhia a leitura. Ler é melhor do que tudo, do que ouvir música, do que ver futebol, muito melhor do que escrever.

Estou a dizer isto e leio o que Borges escreveu sobre um ensaio em que Montaigne fala de livros e de leitura:

Nesse ensaio há uma frase memorável: “Não faço nada sem alegria.” Montaigne dá a entender que o conceito de leitura obrigatória é um conceito falso. Diz que se encontra uma passagem difícil num livro, logo o deixa; porque vê na leitura uma forma de felicidade.

Recordo que há muitos anos se realizou uma sondagem sobre o que é a pintura. Interrogada, a minha irmã Nora respondeu que a pintura é a arte de dar alegria com formas e cores. Diria que a literatura é também uma forma de alegria. Se lemos algo com dificuldade, o autor fracassou. Por isso considero que um escritor como Joyce no essencial fracassou, porque a sua obra requer um esforço.”

Eis a grande missão do escritor: escrever tão bem que o leitor não tenha esquinas nem obstáculos. Dito de outra maneira: saber dar alegria, espalhar a felicidade linha a linha.

Primeiro poema do primeiro livro

Borges_calle

Foi este o primeiro poema do primeiro livro que Jorge Luis Borges publicou. Em 1922, a abrir Fervor de Buenos Aires, após advertência sublinhando ser trivial e fortuita a circunstância de que nós fossemos o leitor do livro e ele o seu redactor, Borges deambulava assim pelas ruas de Buenos Aires:

LAS CALLES

Las calles de Buenos Aires
ya son mi entraña.
No las ávidas calles,
incómodas de turba y ajetreo,
sino las calles desganadas del barrio,
casi invisibles de habituales,
enternecidas de penumbra y de ocaso
y aquellas más afuera
ajenas de árboles piadosos
donde austeras casitas apenas se aventuran,
abrumadas por inmortales distancias,
a perderse en la honda visión
de cielo y llanura.
Son para el solitario una promesa
porque millares de almas singulares las pueblan,
únicas ante Dios y en el tiempo
y sin duda preciosas.
Hacia el Oeste, el Norte y el Sur
se han desplegado –y son también la patria– las calles;
ojalá en los versos que trazo
estén esas banderas.

Pode um poeta, com obra grandiosa, desmesurada, como é a de Borges, adivinhar-se todo no seu primeiro poema? Amanhã pensarei talvez outra coisa, hoje penso que sim. A imortalidade, o tempo, o céu e a planura que o poema dramatiza ou evoca são violinos de Borges, futuramente recorrentes. O mais pequeno pormenor no qual, como na mónada leibniziana, se inscreve ou reproduz todo o universo, essas pequena ruas “enternecidas de penumbra e ocaso”, voltaremos a encontrá-las nos contos fantásticos, nos de aventura, noutros poemas de maturidade. O feliz casamento entre o concreto, as ruas “desganadas del barrio”, e a metafísica – a “funda visão”, as “imortais distâncias”- que as assombra, voltará mil vezes e em mil formas no deslumbramento barroco das Ficciones ou na fantasmagoria do Aleph. Nas ruas apáticas de um bairro dos arrabaldes pressente-se já a refutação do tempo, tema tão caro nos contos e inquisições: estas ruas solitárias e desoladas são únicas perante Deus e o tempo. No primeiro poema do primeiro livro, Buenos Aires e Borges fundem-se num destino e num cenário labiríntico que milhares de almas singulares virão povoar. Inúmeras e solitárias palavras que a seguir tenha escrito não fizeram mais do que reescrever estes primeiros versos.

 p.s. – Tradução directa e pobre:

As Ruas
As ruas de Buenos  Aires
são já as minhas entranhas
Não as ruas ávidas,
incómodas de turba e azáfama,
mas sim as ruas indolentes do bairro,
quase invisíveis de habituais,
enternecidas de penumbra e ocaso
e aquelas mais longe
vazias de árvores piedosas
em que austeras casitas mal se aventuram,
assombradas por imortais distâncias,
a perder-se na funda visão

de céu e planura.
São para o solitário uma promessa
porque milhares de almas as povoam,
únicas ante Deus e o tempo
e sem dúvida preciosas.
Para o Oeste, o Norte e o Sul
se estendem – e são também a pátria – as ruas;
oxalá nos versos que traço
estejam essas bandeiras.

sonho e tempo, tempo e sonho

Las Viejas uma interpretação do tempo
Las Viejas, a goyesca interpretação do tempo

Talvez a vida não seja mais do que sonho, talvez a nossa pequena vida esteja cercada, apenas e só, por um redondo sono.

Prefiro pensar que, mais do que a matéria com que se constroem os sonhos, é o tempo a substância de que todos somos feitos. Um tempo irreversível e inexorável.

Podemos sonhar, pode o sono obscuro invadir-nos, o que não podemos é negar o tempo. Negá-lo é negarmo-nos.

Por vezes é lícito trocar este stuff de Shakespeare:

We are such stuff
As dreams are made on; and our little life
Is rounded with a sleep.

(Nós somos essas coisas
de que são feitos os sonhos; e a nossa pequena vida
está rodeado de sono.)

Shakespeare, The Tempest

por esta sustancia de Borges:

El tiempo es la sustancia de que estoy hecho.
El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy el río;
es un tigre que me destroza, pero yo soy el tigre,
es un fuego que me consume, pero yo soy el fuego

(O tempo é a substância de que sou feito.
O tempo é um rio que me arrebata, porém sou eu o rio;
é um tigre que me destroça, porém sou eu o tigre;
é um fogo que me consome, porém sou eu o fogo.)

Borges, Otras Inquisiciones

Picasso
Picasso: sonho ou sono

Um tiro feliz e cobarde

 

id
O verdadeiro Kid

A quem é que Tennessee Williams terá chamado uma “sweetly vicious old lady”? É conversa de escritor. Deveria, por isso, ter como alvo outro escritor. A pérfida citação visava, creio não estar errado, um escritor rival, Truman Capote. Seria uma forma pérfida de se tratarem (ou destratarem) se o estilo, o ritmo da frase, o subtexto (ah, pois) não concedessem inescrutável transcendência a tamanho bofetão. Confesso, se os termos forem sempre estes, alguma respeitável paixão pela infâmia.

E agora que já preambulei, entro directo na matéria: os meus livros.

Há um livro de patíbulos e de piratas que a misericórdia divina cedo me colocou nas mãos e de que serei eterno e desvairado leitor. Escreveu-o, em  estilo deliberadamente barroco, um escritor cego, de Buenos Aires.

Nesse livro, a que o autor chamou “História Universal da Infâmia”, o meu maior motivo de deleite é um pequeno conto de que é herói Billy the Kid, o assassino desinteressado.

Um tiro feliz e cobarde catapultou-o para a fama. Billy disparou, coberto por uma barreira de homens temerosos, contra El Diego, um odioso mexicano que entrara no saloon gritando as boas noites a todos os gringos filhos de uma cadela que estavam a beber.

Billy morreu, pouco mais do que uma criança, aos vinte e um anos, o exacto número de mortos que, “sem contar os mexicanos”, como escreveu Borges, devia à justiça dos homens. Liquidou-o, sem glória nem ódio, o xerife Pat Garrett, seu amigo.

Em Fort Summers, sentado e meio-escondido numa arcada obscura, Garrett disparou, antes de lhe fazer qualquer pergunta, acertando-lhe em cheio na barriga. Ao fim de horas de agonia, Billy the Kid morreu – os habitantes da small town fecharam-se em casa, cortinas corridas até que, e nem uma mosca se ouvia, exalasse o último e assassino suspiro. Depois, em Fort Summers e arredores os precários habitantes exibiram-lhe longamente e com ferocidade o cadáver. E Jorge Luis Borges, o escritor cego que é seu autor, com desditada ironia conclui: “Ao quarto dia enterraram-no com júbilo”.

Do que é que eu gosto – e gosto despudoradamente – nesta história? Do puro prazer narrativo com que Borges a trata, convite para a lermos como se fossemos a velhinha docemente viciosa, que era o que Tennessee Williams chamava a Truman Capote.

Sem falsos moralismos, nem desculpas, quinze vezes levada ao cinema (a penúltima foi no “I’m Not There”, onde é uma das personae de Bob Dylan; o último, “The Kid”, com Dane DeHaan e Ethan Hawke a fingirem de Kid e Pat) a história de Billy the Kid converte o abominável em sublime. O que, se estivéssemos a ler as notícias do dia ou a consumir telejornais, nos pareceria apenas torpe e hediondo, ganha na literatura (por vezes nos filmes e tantas vezes nas canções) a grandeza piedosa e épica da lenda.

Sonho e tempo, tempo e sonho

Las Viejas
Goya, Las Viejas – uma interpretação do tempo?

Talvez a vida não seja mais do que sonho, talvez a nossa pequena vida esteja cercada, apenas e só, por um redondo sono.

Prefiro pensar que, mais do que a matéria com que se constroem os sonhos, é o tempo a substância de que todos somos feitos. Um tempo irreversível e inexorável.

Podemos sonhar, pode o sono obscuro invadir-nos, o que não podemos é negar o tempo. Negá-lo é negarmo-nos.

Por vezes é lícito trocar Shakespeare por Borges.

We are such stuff
As dreams are made on; and our little life
Is rounded with a sleep.
(Nós somos essas coisas
de que são feitos os sonhos; e a nossa pequena vida
está rodeado de sono.)

Shakespeare, The Tempest

El tiempo es la sustancia de que estoy hecho.
El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy el río;
es un tigre que me destroza, pero yo soy el tigre,
es un fuego que me consume, pero yo soy el fuego

(O tempo é a substância de que sou feito.
O tempo é um rio que me arrebata, porém sou eu o rio;
é um tigre que me destroça, porém sou eu o tigre;
é um fogo que me consome, porém sou eu o fogo.)

Borges, Otras Inquisiciones

os livros negros da página negra

A razão pela qual não há duas sem três é só por ser certo e seguro que não há uma sem duas. Uma foi ontem – ter nascido, nas Página Negra, a secção das “negras escolhas musicais”, a segunda guardei-a para hoje: nasce a 5 de Outubro a secção dos “Livros Negros da Página Negra”.

lombada

O que esta edição de 1974, da Emecé Editores, de Buenos Aires, que é minha desde 1980, tem sofrido nestas atabalhoadas mãos! A sobrecapa já foi à vida, a guarda da capa já se rasgou e a tela do interior da lombada está ali por um fio, a precisar de restauro urgente. Uma coisa posso jurar, este livro não sofreu nunca longos períodos de imobilidade ou de abandono em silenciosa e labiríntica biblioteca pública.

Borges

Confesso que tenho um caso com Borges. Tudo começou na longínqua Luanda, nos remotíssimos primeiros anos dos anos 70, ainda vigorava o século XX. Li dele os poemas que outro poeta, Ruy Belo, lhe verteu para a tão próxima língua portuguesa. Foi amor à primeira vista ou leitura. É livro para, um destes dias, ser visita destes livros negros.

O assassino desinteressado

billy the kid

A quem terá Tennessee Williams chamado uma “sweetly vicious old lady”? Talvez vos diga, talvez volte adiante a esta citação pérfida. Mas para começo de conversa, quero já confessar, sem precisar da mínima ameaça de tortura, alguma conspícua paixão pela infâmia.

Há um livro de patíbulos e piratas que a misericórdia divina cedo me colocou nas mãos e de que serei eterno e apoplético leitor. Escreveu-o, em estilo deliberadamente barroco, um escritor cego, de Buenos Aires.

Nesse livro, a que o autor chamou “História Universal da Infâmia”, o meu maior motivo de deleite é um pequeno conto do qual é herói Billy the Kid, o assassino desinteressado. Um tiro feliz e cobarde catapultou-o para a fama. Disparou, coberto por uma barreira de homens temerosos, contra El Diego, um odioso mexicano que entrara no saloon gritando as boas noites a todos os gringos filhos de uma cadela que estavam a beber.

Billy morreu, pouco mais do que uma criança, aos vinte um anos, o exacto número de mortos que, “sem contar os mexicanos”, como escreveu Borges, devia à justiça dos homens. Liquidou-o, sem glória, nem ódio, o sheriff Pat Garrett, seu amigo.

Em Fort Summers, sentado e meio-escondido numa arcada obscura, Garrett disparou, antes de fazer qualquer pergunta, acertando-lhe em cheio na barriga. Ao fim de horas de agonia, Billy the Kid morreu. Em Fort Summers e arredores, os precários habitantes exibiram-lhe com ferocidade o cadáver. E Borges com desditada ironia conclui: “Ao quarto dia enterraram-no com júbilo”.

Do que é que eu gosto – e gosto despudoradamente – nesta história? Do puro prazer narrativo com que Borges a trata e que é um convite para a lermos como se fossemos a velhinha docemente viciosa, que era o que Tennessee Williams chamava a Truman Capote.

Sem falsos moralismos, nem desculpas, quinze vezes levada ao cinema (e a última versão que vi foi o “I’m Not There”, em que uma das personae é o nobelizado Bob Dylan), a história de Billy the Kid converte o abominável em sublime. O que, se estivéssemos a ler as notícias do dia ou a consumir telejornais, nos pareceria apenas torpe e hediondo, ganha na literatura, nos filmes e nas canções, a grandeza piedosa e épica da lenda.

HistoriaUniversalDeLaInfamia