Quem dera que Michelle Pfeiffer estivesse morta

Foi esta a minha primeira crónica na coluna a que chamei “o cinema dá o que a vida rouba”. Passaram oito anos. Envelheceu muito? Quem não envelhece é Michelle Pfeiffer, que não se deixa encantar pela ideia de que morrem jovens os que os deuses amam.

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Não é de ódio este desejo. Move-me o amor: aos olhos, às altas maçãs do rosto francês de Michelle Pfeiffer. Insisto: quem me dera que estivesse morta.

Tenho maus pensamentos ao ver o fato de catwoman apertar-lhe os pequenos seios no “Batman Returns”. Como o sonso Daniel Day Lewis, torço olhos românticos às ancas opulentas que os vestidos vitorianos lhe emprestam em “The Age of Innocence”. Entre mim e Michelle há um superavit amoroso e só quero que, trágica, morra.

Em “Chéri”, ao amante que lhe elogia a beleza, responde: “Um bom corpo dura muito tempo”. Mas não dura sempre e o vil insecto dos dias corrompe a melhor carne. Pelas alminhas, não deixem que ela me envelheça.  

Explico-me. Só é Bento XVI quem não pode ser Jesus Cristo. Crucificado e com 33 anos, Cristo mudou o mundo. Passaram 21 séculos e as lágrimas que Maria Madalena chorou por ele ainda não secaram. De Bento XVI, se restar, será uma múmia que um fresco de Michelangelo há-de tapar.

Só é Meryl Streep quem não pode ser  Marilyn. Três anos depois dos 33 e presumindo que só tinha uma maneira de se encontrar com Jesus, Marilyn morreu, ou morreu-se, a barbitúricos. Morrer assim é nascer para a eternidade.  

É por isso que só é Clint Eastwood quem não pode ser James Dean. Jimmy espatifou um Porsche 550 e o corpo jovem num acidente caprichado. Fizera três filmes. O cinema há-de acabar e Nathalie Wood continuará a estremecer por Dean no planetário de “Rebel Without a Cause”. E haverá sempre um tipo de mais de meia idade a elanguescer com a lingerie que Marilyn guarda no frigorífico do Verão nova-iorquino de “Seven Year Itch”.   

Hoje escondemo-nos da morte. Penteamo-nos, inchamos o lábio, rejuvenescemos o periclitante mamilo, e era melhor morrermos. A triste medicina corrige a vida, mas mata o sonho. Só a morte confere as cores do mito, a juventude eterna. Quando confere, a quem confere.

michelle

Pfeiffer tem as formas do mito. Ia invocar-lhe a beleza, mas a beleza é a menor das suas qualidades. Em “Dangerous Liaisons” e “The Age of Innocence”, à ingenuidade carregada de desejo junta a impudica vontade de ser vítima. Em “Russia House”, à câmara, que lhe quer comer a carne, oferece inteligência terna e gentileza emocional. O pingo do sublime cai na perigosa e lábil curva que, olhe-se o seu copo donde se olhe, é a forma geométrica de a descrever em “Fabulous Baker Boys”. Isto sim, são virtudes. Faustianas, gostava eu.

Se Michelle Pfeiffer morresse agora, a doce morte iluminaria a cena em que canta Makin’ Whopee e ficaria mais vermelho o vestido, decotado em cima, decotado em baixo, com que se curva, ajoelha, rasteja e deita no estreito e imenso escândalo do tampo do piano a que se aflige e toca Jeff Bridges.

Pedir a morte de Michelle Pfeiffer é elogio e um pedido de socorro. Não queria que ela, da aparição na forma de lâmina loura em “Scarface” à deliciosa viúva de “Married to the Mob”, fosse menos do que eterna. Mas temo que os nossos dias não transijam e me venham dizer que o mito já não é deste tempo, nem este um tempo de mitos.

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O assassino desinteressado

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A quem terá Tennessee Williams chamado uma “sweetly vicious old lady”? Talvez vos diga, talvez volte adiante a esta citação pérfida. Mas para começo de conversa, quero já confessar, sem precisar da mínima ameaça de tortura, alguma conspícua paixão pela infâmia.

Há um livro de patíbulos e piratas que a misericórdia divina cedo me colocou nas mãos e de que serei eterno e apoplético leitor. Escreveu-o, em estilo deliberadamente barroco, um escritor cego, de Buenos Aires.

Nesse livro, a que o autor chamou “História Universal da Infâmia”, o meu maior motivo de deleite é um pequeno conto do qual é herói Billy the Kid, o assassino desinteressado. Um tiro feliz e cobarde catapultou-o para a fama. Disparou, coberto por uma barreira de homens temerosos, contra El Diego, um odioso mexicano que entrara no saloon gritando as boas noites a todos os gringos filhos de uma cadela que estavam a beber.

Billy morreu, pouco mais do que uma criança, aos vinte um anos, o exacto número de mortos que, “sem contar os mexicanos”, como escreveu Borges, devia à justiça dos homens. Liquidou-o, sem glória, nem ódio, o sheriff Pat Garrett, seu amigo.

Em Fort Summers, sentado e meio-escondido numa arcada obscura, Garrett disparou, antes de fazer qualquer pergunta, acertando-lhe em cheio na barriga. Ao fim de horas de agonia, Billy the Kid morreu. Em Fort Summers e arredores, os precários habitantes exibiram-lhe com ferocidade o cadáver. E Borges com desditada ironia conclui: “Ao quarto dia enterraram-no com júbilo”.

Do que é que eu gosto – e gosto despudoradamente – nesta história? Do puro prazer narrativo com que Borges a trata e que é um convite para a lermos como se fossemos a velhinha docemente viciosa, que era o que Tennessee Williams chamava a Truman Capote.

Sem falsos moralismos, nem desculpas, quinze vezes levada ao cinema (e a última versão que vi foi o “I’m Not There”, em que uma das personae é o nobelizado Bob Dylan), a história de Billy the Kid converte o abominável em sublime. O que, se estivéssemos a ler as notícias do dia ou a consumir telejornais, nos pareceria apenas torpe e hediondo, ganha na literatura, nos filmes e nas canções, a grandeza piedosa e épica da lenda.

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