Um poema

Larkin

Inspirado pelo exemplo do meu amigo Paulo Nogueira, brasileiro que devíamos roubar ao Brasil e obrigar a ser só o português que ele também é, romancista que devia ser obrigado a só publicar na minha Guerra e Paz oferecendo-nos a glória, trago-vos um poema de Philip Larkin.

Nas palavras meio sofridas do Paulo: «Philip Larkin cai sempre bem. Nesta altura do campeonato, então, nem se fala.»

Eis, em aflita e velhíssima tradução minha, o poema, Aubade, que Larkin publicou, se bem sei, a 27 de Novembro de 1977, no Times Literary Suplement.

Aubade

Trabalho o dia todo e embebedo-me à noite.
Acordado às quatro da manhã, contemplo a silenciosa escuridão.
Logo mais a luz virá bordejar as margens das cortinas.
Entretanto vejo o que sempre lá esteve:
A incansável morte, um dia inteiro mais perto agora,
Tornando impossível pensar noutra coisa
Como, e onde, e quando eu próprio morrerei.
Árida interrogação: e todavia o terror
De morrer, e de estar morto,
Cintila, agulha que desperta e horroriza.
Clarão a esvaziar o espírito. Não pelo remorso
– O bem por fazer, o amor que não demos, o tempo
Desperdiçado – nem pelo desânimo de uma só
Vida levar tanto tempo a percorrer
Nunca se libertando, talvez, do seu errado começo;
Total e eterno vazio,
Essa certa extinção para que caminhamos
E em que ficaremos perdidos, sempre. Não para estar aqui,
Nem em lado nenhum,
Muito em breve: nada mais terrível, nada mais verdadeiro.

Esta é uma maneira especial de ter medo.
Nenhum truque a apaga. A religião tentou-o,
Vasto brocado musical roído pela traça
Criado para fingir que nunca morremos,
Equívoco material que diz Nenhum ser racional
Receará o que nunca vai sentir,
sem ver
Que é isso o que faz medo – não ver, não ouvir
Não tocar, saborear ou cheirar, nada para pensar,
Nada para amar ou nos ligarmos,
Anestésico de que ninguém regressa.

Fica só na finíssima margem da visão,
Pequena mancha desfocada, um frio persistente
Que trava cada impulso e convida à indecisão.
Muitas coisas podem nunca acontecer: esta acontecerá,
E a sua compreensão irrompe
Como um vulcão de medo quando nos apanha
Sem companhia ou bebida. A coragem não serve:
É apenas para não assustar os outros. Ser valente
Não deixa ninguém fora da sepultura.
Uivos de sofrimento ou sereno confronto não mudam a morte.

Lentamente a luz cresce e o quarto ganha forma.
Entra-nos pelos olhos, básico como um armário, o que sabemos,
O que sempre soubemos, que nunca escaparemos,
Ainda que não o aceitemos. A esse encontro, não faltaremos.
Entretanto os telefones encolhem-se, prestes a tocar
Em escritórios cerrados, e um mundo insensível
Intrincado e efémero começa a despertar.
Um céu de branco sujo, sem sol.
O trabalho tem de ser feito.
Os carteiros como os médicos vão de casa em casa.

E agora no límpido e sonoro original:

Aubade
I work all day, and get half-drunk at night.
Waking at four to soundless dark, I stare.
In time the curtain-edges will grow light.
Till then I see what’s really always there:
Unresting death, a whole day nearer now,
Making all thought impossible but how
And where and when I shall myself die.
Arid interrogation: yet the dread
Of dying, and being dead,
Flashes afresh to hold and horrify.
The mind blanks at the glare. Not in remorse
– The good not done, the love not given, time
Torn off unused – nor wretchedly because
An only life can take so long to climb
Clear of its wrong beginnings, and may never;
But at the total emptiness for ever,
The sure extinction that we travel to
And shall be lost in always. Not to be here,
Not to be anywhere,
And soon; nothing more terrible, nothing more true.

This is a special way of being afraid
No trick dispels. Religion used to try,
That vast, moth-eaten musical brocade
Created to pretend we never die,
And specious stuff that says No rational being
Can fear a thing it will not feel, not seeing
That this is what we fear – no sight, no sound,
No touch or taste or smell, nothing to think with,
Nothing to love or link with,
The anasthetic from which none come round.

And so it stays just on the edge of vision,
A small, unfocused blur, a standing chill
That slows each impulse down to indecision.
Most things may never happen: this one will,
And realisation of it rages out
In furnace-fear when we are caught without
People or drink. Courage is no good:
It means not scaring others. Being brave
Lets no one off the grave.
Death is no different whined at than withstood.

Slowly light strengthens, and the room takes shape.
It stands plain as a wardrobe, what we know,
Have always known, know that we can’t escape,
Yet can’t accept. One side will have to go.
Meanwhile telephones crouch, getting ready to ring
In locked-up offices, and all the uncaring
Intricate rented world begins to rouse.
The sky is white as clay, with no sun.
Work has to be done.
Postmen like doctors go from house to house.

Mon Cas, O Meu Caso do senhor Manoel de Oliveira

Escrevi este texto na e para a Cinemateca Portuguesa, num dos ciclos que se dedicou a Manoel de Oliveira. No final dos anos 80, há mais de 30 anos.
Por norma, sobre Manoel de Oliveira escrevia João Bénard da Costa. E minto, o que este texto atesta, para não falar do que o João me deixou escrever sobre a Francisca ou os que pediu a outros meus camaradas programadores.
Se fosse hoje, e neste pestífero tempo de sofrimento, ter-me ia alongado mais sobre o “Livro de Job” que, a certo momento, arrebata o filme.

mon-cas
O divertissement de Bulle Ogier

 

Mon Cas
tal como o viu Manuel S. Fonseca

  1. À primeira vista, Mon Casé o mais ligeiro dos filmes, o “divertissement” de um Oliveira triunfante. Quase nada, salvo o quantum continuum que é o teatro, parece associar este filme ao opus magnum que era Soulier de Satin, filme de 1985, imediatamente anterior a este. É verdade que há ainda planos muito longos e que cada personagem tem o seu monólogo, mas o estatismo hierático da câmara e dos actores, bem como a sucessão de “recitativos” dos personagens do Soulier, são substituídos por uma surpreendente leveza que nos faz pensar no teatro de boulevard e nas comédias do cinema mudo.

    Convém todavia estar atento à metodologia de Oliveira. Em Mon Cas o cineasta procede como um arquitecto. A ligeireza não é senão um primeiro diagrama, correspondendo ao “plano de terra”. Oliveira levantará depois a pirâmide visual do “alçado” e só a combinação desses dois conjuntos, desses dois diagramas, nos permite obter a imagem em perspectiva, a unidade perfeita da tremenda inocência e da tremenda crueldade que Mon Cas encerra. Compreende-se então que, na sua aparente diversidade, Mon Cas nos conduz ao eterno centro da obra de Oliveira, à culpa, ao pecado e à justiça, às relações, enfim, entre o humano e o divino.

  1. Mon Cas é a adaptação da peça de José Régio. Dir-se-ia que Manoel de Oliveira se apropria duplamente do texto de Régio. Em primeiro lugar, encena-o segundo convenções teatrais, afirmadas de modo evidente e inequívoco através da presença ritualizada da cortina, de definição de um espaço e tempo cénicos que os cenários nunca iludem e que as “entradas” dos actores reforçam. Mas se Oliveira é o encenador de Régio, ele é, num segundo tempo, o realizador do filme que regista a sua própria encenação, fiel de resto a um dos princípios teóricos que comandou a sua obra dos anos 80, segundo o qual o cinema mais não é do que o registo audiovisual do teatro, forma subtil de dizer que o teatro é o “caminho mais curto” para se chegar ao cinema.
  1. É curioso verificar que aquela dupla apropriação não significa que tenha havido da parte do cineasta uma irrepreensível fidelidade ao espírito da peça de Régio. Na adaptação de Oliveira sente-se que há um deslocamento do nó temático. O conflito entre a ilusão da representação e o drama da condição humana, presente ainda nos diálogos e monólogos dos personagens, só acessoriamente parece motivar Oliveira. Mon Cas é um filme em que se pressente uma ilimitada confiança na representação, quase se admitindo que não há um exterior da representação. Se o problema da peça era, a meu ver, de tipo ético, o do filme é estético “tout court”: o que é a geometria cinematográfica, como chegar à “costruzione legittima”?
  1. Por isso se diz que Oliveira procede em Mon Cas como um arquitecto. É um filme sobre a perspectiva, sobre a unidade de dois planos – horizontal e vertical. A explicitação desses dois planos é evidente e múltipla ao longo de todo o filme. É um filme ligeiro e grave, já se disse. Da explanação linear do texto de Régio que constitui a primeira repetição, passa-se a modelos contrastantes, escasso o da segunda repetição, marcada pela ausência da voz e da cor; excessivo o da terceira repetição, com o caos da voz (conseguindo pela sua inversão simples) e o barroco da cor. A esse contraste no interior das “repetições” sucede-se a violenta variação de tom (para alguns, e à primeira vista, passará por ser um desequilíbrio) da quarta parte. A adaptação dos extractos do “Livro de Job”, muda o registo meio artesanal, meio hollywoodiano (foi Bulle Ogier quem, numa entrevista, o disse: «o que é curioso é que em Oliveira tudo é artesanal, mas de repente também é como Hollywood»), para um registo que se aproxima do cinema de Werner Schroeter.
  1. Mas então, onde é que está a unidade, em que ponto é que os dois planos, os dois diagramas se combinam para formar a imagem em perspectiva? É quando a unidade parece já impossível, que os dois diagramas convergem para o ponto de fuga de Mon Cas. Sem o “Livro de Job”, o filme de Oliveira seria o “divertissement” que alguns encontram nas três repetições, compadecendo-se da gravidade da quarta. O ponto de fuga de Mon Cas é Deus, perfeita unidade de que emanam o som (o potente trovão da Sua voz) e a luz (a claridade súbita do Seu raio). Talvez seja curto dizer isto, mas Deus, no filme de Oliveira é o cinema na mais essencial nudez. Ou então, para dizer de outro modo, o cinema não é senão a descoberta de Deus, a Sua revelação.
  1. Será Mon Casa alegórica exposição do caso de Oliveira? Será Mon Cas o mais explicitamente autobiográfico dos seus filmes? Seríamos tentados a pensar assim, se isolássemos cada um dos dois “planos” do filme. À exposição dos “casos” da peça de Régio, seguir-se-ia a exposição do “caso de Oliveira” implícito na alegoria de Job. Mas a unidade dos dois “planos”, a visão dos dois planos numa imagem em perspectiva, torna irrisória essa tentação de leitura do filme pelo lado autobiográfico. Torna-a ao menos desinteressante. O problema do filme, já se disse, não é ético, é estético. E se alguma tensão há, ela é de ordem teológica, fazendo de Deus a justificação última de toda a história. Da mesma forma que Oliveira ironiza cruelmente sobre os “casos” da peça de Régio, tornando-se inaudíveis ou incompreensíveis (parafraseando o texto de Beckett, Oliveira não permite na segunda a terceira repetição que nenhum dos personagens volte a dizer “eu”), também Job, na quarta parte, não pode ser um “caso”, porque “nenhum homem poderia ser justo contra Deus”.
  1. Mon Casé uma portentosa exibição da vertente do cinema que Oliveira nunca deixou de explorar (e no Soulier de Satin há abundantes exemplos), mas que talvez nunca tivesse explorado, até este filme, com tanta inocência. Seria fastidioso acumular exemplos, bastará ver a segunda repetição, um dos momentos soberanos do cinema em Oliveira, com uma prodigiosa découpage (acrescente-se que a ideia de “repetição” é um “trompe l’oeil”, uma vez que neste filme uno, todos os elementos são diversos e nenhuma acção é igual à anterior).

    Mon Cas é também, para quem tenha “problemas” com a representação dos actores nos filmes de Oliveira – questão absurda, mas que alguns têm como óbvia e pertinente – uma surpresa incómoda. Uma direcção de actores espantosa em que o trabalho de Alex Bougosslavsky domina, comovente e sublime, como sublime é o plano em que Luís Miguel Cintra (Job) se levanta para responder à interpelação de Bildad: «Je dirais a Dieu: ne me condamne pas.»

  1. Este é Mon Cas de Manoel de Oliveira, a sua cidade ideal, a impossível Jerusalém terrestre, o mais geométrico dos seus filmes. E é, como as visões de Brunelleschi, de Alberti, de Piero della Francesca e de Leonardo da Vinci, uma visão através de algo. A sua “costruzione legittima”.
Mon Cas
O portentoso Luís Miguel Cintra

 

Morreu Mécia de Sena

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Com Mécia de Sena e Maria de Lurdes Belchior à porta do 939, Randolph Road

A esta nossa tormentosa Primavera, chega a mais outonal das notícias: a do falecimento de Dona Mécia de Sena.

Bati à porta de sua casa, em Santa Barbara, Califórnia, no 939 Randolph Road, em 1986. Pela voz e santa paciência de Mécia de Sena, eu, que julgava saber uma ou duas coisas sobre Jorge de Sena, descobri dele o imenso e brilhante lado escondido da lua. Vi a sala onde, cercado de livros, ouvia música, a secretária a que trabalhava, a mesa a que comia. E descobri que Mécia de Sena, a par da feroz guardiã da obra desse homem com quem partilhou o amor e a vida, era também e sobretudo uma finíssima estudiosa e crítica de poesia e romance, senhora de uma cultura variegada e vastíssima. De tudo isso me falava, e de música, e de ópera, enquanto, diligente, fazia um jantar para 10 ou 14 pessoas, como quem passa manteiga numa torrada. O seu ócio era a actividade.

Mécia revelou-me esse arquipélago de correspondência, acções e intervenções de um Sena imparável, mesmo quando as suas dores físicas o constrangiam, mas não vergavam. De Mécia descobri a irradiante luz própria.

E descobri a alegria simples e o riso: com ela, e com Maria de Lurdes Belchior, tive o picnic da minha vida, numa Missão Espanhola, na costa californiana, a bolinhos de bacalhau e uns inesquecíveis ovos verdes, delícia lusíada degustada com os olhos no imenso oceano que é o Pacífico.

Desse encontro resultou, mais do que uma amizade e um carinho mútuos, a minha admirada devoção por Mécia de Sena, pela sua inteligente persistência, pela sua cultura e rigor, pela descoberta da sua escrita cuidada, arrebatada, fluente e discursiva. Nesse remoto 1986 organizámos juntos um livrinho, Sobre Cinema, reunindo todos os textos que sobre filmes Jorge de Sena escrevera. Depois, quando me fiz editor, Mécia confiou-me as Dedicácias, e várias Correspondências de que destaco o belíssimo carteio de Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner Andresen, exemplo de partilha e amor poético e filosófico.

Já com Isabel de Sena, filha de Mécia e de Jorge, e desde que a idade tornara impossível a Mécia continuar a ser a guardiã literária de Sena, publiquei a Correspondência com Eugénio de Andrade e, há poucos dias, a Correspondência Jorge de Sena–João Sarmento Pimentel, na qual Isabel de Sena, que a organizou, incluiu também algumas cartas assinadas por Mécia de Sena. São, essas cartas, o testemunho do seu brilho intelectual, da sua escrita viva e da sua grandeza humana. É um pequenino orgulho poder juntar-me a essa homenagem que a filha Isabel lhe prestou.

Pimentel

Morreu, no dia 28 de Março de 2020, com 100 anos, Mécia de Sena. Digo-lhe adeus certo de que sou apenas um dos que guarda dela a memória de um ser humano grande e combativo, cheio dessa graça que é a vida. Eis o que nunca se apaga.

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Na Cinemateca com Mécia de Sena e António M. Costa

O herói e os canalhas

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O pequeno herói

Agora vejam o herói. Tem um nórdico metro e cinquenta e dois e ia ganhando a guerra. Mas antes de falar deste finlandês de olhos agudos e mãos camponesas nas quais quase podemos apalpar a ternura com que o indicador direito acaricia o gatilho, deixem-me chamar aqui os canalhas.

Os canalhas são Hitler e Estaline. O nazi e o comunista já estão ao colo um do outro no abominável pacto em que se cevaram e já retalharam a Polónia, toma lá metade, dá cá metade. Cada canalha fareja o canalha que há no outro. Estaline teme que o canalha alemão dê a volta por cima e lhe entre pela porta de serventia meia escandinava que é a Finlândia. Com as boas maneiras insidiosas do antropófago, Estaline diz carinhosamente aos finlandeses que lhes vai comer 25 quilómetros de território ao longo da fronteira para protecção das suas nádegas georgianas. A rouca voz da Finlândia responde com um rotundo e já arquejante “não”. O canalha, socialista e científico, atira com 750 mil homens, uns seis mil tanques e quatro mil aviões para cima da Finlândia.

Os finlandeses deveriam cair numa tarde, num dia. E é aqui que entra o herói. Simo Häyhä estava em sossego camponês, serviço militar cumprido, mas é mobilizado. Traz, presa aos seus 34 anos cambutas, uma velha espingarda, a Mosin-Nagant M28, com anacrónica mira de aço. Veste a imaculada farda branca e vai, sozinho, fundir-se com a floresta de neve finlandesa. Rasteja, procura buracos de raposa, com gestos delicados calca a neve onde vai apoiar a arma para que, ao disparar, não se levante uma nuvem de partículas que o denuncie, mete na boca bolas de neve para matar o bafo quente da respiração e espera, invisível. Os soviéticos hão de vir. E quando vêm, um só tiro, mata o primeiro. Matará 505.

E tenho de voltar ao canalha. Estaline também ajudou a matar estes 505 russos. Na Grande Purga, de 1934 a 1938, o canalha liquidou dois terços dos quadros comunistas e cinco mil oficiais do Exército Vermelho, entre majores e generais. Nunca ninguém matara tantos comunistas como este Führer dos comunistas. Inexperientes, os novos oficiais do exército da URSS na Finlândia aprenderam a comer o pão da guerra com a massa que o diabo amassou. De farda escura os soviéticos eram coelhos vermelhos numa paisagem branca. Simo Häyä em cem dias mata 505. Cinco por dia se acreditarmos nessa história das médias, fora o dia em que matou quarenta. Vejam bem, um tiro, um homem. Na I Grande Guerra foram precisos sete mil tiros para cada baixa. No Vietnam 25 mil.

Os soviéticos chamam a Simo a “Morte Branca”. Num dos combates, Simo e mais 33 fazem recuar 4 mil soldados vermelhos. A artilharia matraqueia a posição onde Simo possa estar. E nada. Vem a aviação fazer terra rasa. E nada. A “Morte Branca” continua a devastar as hostes russas.

E ouçam os versos que cantavam os meus amigos que foram para heróis na guerra da independência de Angola: “Eu vou, eu vou morrer em Angola / Com arma, com arma de guerra na mão / Enterro, enterro será na patrulha, / Granada, granada será meu caixão.”

 Sem saber que é isso que canta, a 6 de Março, Simo volta a avançar, rastejante, camuflado. Abate mais um inimigo e há de ser, desse dia, a última coisa de que se lembra. Um sniper soviético dá-lhe a comer do mesmo veneno. A bala estoira-lhe a bochecha e arranca-lhe a mandíbula. Os camaradas resgatam-no. Recupera a consciência no dia em que se assina a paz e há-de viver, com a sua meia cara de herói, uma vida de caçador de alces e criador de cães. Simo morreu em paz aos 96 anos.

A minha crónica semanal publicada no Jornal de Negócios

Milagres e hospitais

médicos
foto do CM, com a devida vénia

Estas mini-crónicas, as minhas Bicas Curtas, são publicadas, 3.ª, 4.ª e 5.ª, no CM. São escritas dia a dia e são reacções imediatas à actualidade. Trago-as para aqui, duas semanas depois, com o risco de já estarem ultrapassadas-

O milagre

Agora que a maior viagem que podemos fazer é a viagem em redor do nosso quarto, incapaz de dizer sobre o coronavírus algo que não tenha já sido dito, faço uma sugestão: leiam. Fujam das visões pestíferas com um livro divertido, cheio de personagens boémias, um bando de bons vagabundos, que sabiam o que fazer com o ócio, geniais a arrancar prazer de uma fatia de pobreza e de um ou dois copos de vinho. Também há uma lareira, o doce calor humano, cães e mesmo o milagre de um santo. “O Milagre de São Francisco”, romance de John Steinbeck, reensina-nos a beleza de não fazer nada. Lê-se num fósforo e põe-nos a boca e a alma a rir.

Coração gémeo

Mesmo se nunca acreditou na alma gémea, acredite, agora, no coração gémeo. A pesquisa de universidades belgas, inglesas e americanas desenvolveu um coração digital. Será um coração digital gémeo do seu e do meu. Com esse gémeo poderá monitorizar-se o coração humano e detectar problemas da função cardíaca. Levamos no peito o nosso coração e o médico pode observar no coração digital se caminhamos bem e dormirmos melhor – ainda que o coração gémeo não saiba com quem.  Agora que andamos de coração tão aflito, é um belo pingo de esperança ver nascer o coração gémeo que, mais uns anos, não deixará falhar o nosso. Ou o dos nossos filhos.

Os médicos

Uma destas noites, Portugal veio à janela aplaudir médicos, enfermeiros, assistentes, essa mulheres e homens que se esfarrapam à exaustão para salvar vidas e vencer o sórdido vírus. São ainda mais heróis, digo eu, porque se batem por uma causa humilde: arriscam-se a morrer para garantir que depois de amanhã possamos sentar os nossos filhos ao colo e dar-lhes um beijo; para termos a alegria da bica curta numa esplanada; para que venhamos rir-nos para a rua e façamos as asneiras comezinhas sem as quais o raio da vida não é vida. Médicos heróis: sofrem e lutam, hoje, para gozarmos amanhã, sem cuidados, a vida banal de todos os dias

Voltou o Escrever é Triste

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O Escrever é Triste é uma lenda. Escreviam lá 16 ou 17 autores, sei lá. E já levanto um braço para dizer que está mal, qual escreviam, qual quê, desenhavam, fotografavam, diziam poemas. Por ter acabado o Escrever é Triste é que eu criei esta cela solitária, esta monástica Página Negra.

Pois bem o Escrever é Triste voltou. Está aqui. Estar aqui e estar tão bonito já é um milagre. Mas o Ricardo Espírito Santos, que eu conheci na SIC, realizador imparável, que fez os mais belos “jornais da Noite”, que deu ao futebol um toque de delicadeza e ambrósia nos muitos jogos que realizou, fez para a RTP um programa, o Novo Mundo Digital, e fez sobre o Escrever é Triste um programa de televisão lindo. Vamos poder vê-lo no dia 4 de Abril, um sábado, às 11 horas da manhã, na RTP 1. Levantem-se dessas camas e mesmo de pijama, e antes do banho recauchutante, deixem-se levar pela câmara e pela narração do Ricardo. Que programa lindo!

Já disse e repito, o Escrever é Triste voltou. Está aqui. Estar aqui, tão vivo, juntando de novo os mesmos autores, ainda mais amigo e solidário, é um milagre anti-pestífero. Uma espécie de antídoto albert-camusiano contra o covid 19. Escrever é Triste e, todavia, tão feliz.

Este foi o video de promoção da estreia. Mas, não se esqueçam, é no sábado, dia 4 de Abril, às 11:00 da manhã, na RTP1.

O papa apóstata

Peço desculpa aos leitores da Página Negra, mas outros valores e urgências se levantaram. Espero que estejam todos com um valente saúde anti-vírica.

São Pedro

De que cor são os olhos do Papa Francisco? Apesar de já se ter derramados sobre eles a indecifrável cor da velhice, são claros como os do meu avô Brigas, que ofereceu o corpo a cargas contrabandistas, antes de ser emigrante na Argentina. Terá o avô Brigas cruzado em Buenos Aires o menino Bergoglio? Que interessa. O que eu queria dizer é que os olhos de Francisco se iluminam sempre que sorri. Ou seja, iluminam-se muitas vezes.

Os olhos de Francisco também olham algumas vezes para o céu.  Já o vi, em fotografias, olhos postos no alto horizonte e parece-me, nessas ocasiões, que afinal são quase azuis os seus olhos claros, reflexo talvez da luz celeste. Adivinho-lhe então nos olhos uma tris­teza azul – e o que esta frase ganharia escrita em inglês! Mas logo a fileira branca dos den­tes e a doçura da con­tração do rosto, a que cha­ma­mos sorriso, dão cabal des­men­tido à minha lamentável desconfiança ou a qualquer sus­peita de tristeza.

Tal­vez os olhos deste homem, tão largo e con­fi­ante é o seu sor­riso, este­jam a ver Deus. Afi­nal, se há no mundo um homem habi­li­tado a ver Deus é ele, o homem da batina branca. Che­guei a pen­sar que era de ouro e disseram-me que era de prata, a cor­rente que traz presa ao pes­coço e lhe des­liza pelo peito sus­ten­tando a Cruz Pei­to­ral. O soli­déu sin­gelo e a sotaina branca conferem-lhe uma ele­gân­cia con­for­tá­vel. Se que­re­mos ver a Deus deveríamos vestir-nos assim e calçar, como ele, uns sapa­tinhos vermelhos.

Lembrei-me, sabe Deus porquê, de um conto de Gio­vanni Papini, magnífico escritor cujo romance com o fascismo quase o apagou da história da literatura. É a his­tó­ria de um dis­si­mu­lado após­tata que é eleito Papa. Quando cami­nha para a varanda que se abre sobre a agora vazia Praça de São Pedro e sobre a mul­ti­dão que, em fé e pela fé, exulta e reza, esse novo Papa vem pronto para denunciar a fraude, a gigan­tesca impos­tura que ele pensa ser a reli­gião. Abrem-se as por­tas, ele dá o primeiro passo, dis­curso na ponta da demoníaca lín­gua ser­pen­tina, e a esperança e gáu­dio da mul­ti­dão entram nele como a luz que lavasse os olhos de um cego. O após­tata converte-se e já o habita o Pai, o Filho e o Espí­rito Santo.

E se este Francisco de quipá, per­dão, de soli­déu alvo, se este homem que é tal­vez o único que pode ver Deus, sou­besse, como mais nenhum homem sabe, que Deus não existe? Por­que mais nenhum homem sabe, como este homem sabe, que o Deus a que um milhão de fiéis se ajo­e­lha na gigan­tesca praça dessa Roma que crucificou Pedro de cabeça para baixo, esse Deus patri­ar­cal, a cor­rer de prece para prece, entre­tido a vingar-se, a acu­sar, a sal­var, cas­tigo numa mão, a mise­ri­cór­dia na outra, nem por mila­gre pode exis­tir.

Sécu­los de teo­lo­gia e Tei­lhard de Char­din dis­si­pa­ram essa nuvem, essa luz que cega Pau­los. Sécu­los de teo­lo­gia e Pierre Tei­lhard de Char­din foram um tiro na pomba. Este homem sabe e, toda­via, na tris­teza clara, quase azul, dos olhos que levanta ao céu, nesse seu sorriso que pro­mete mais regresso à vida do que a Vénus de Bot­ti­celli nos pode dar, ele acredita.

E que insus­ten­tá­vel fra­gi­li­dade! A tris­teza clara, quase azul, de um olhar e um mara­vi­lhoso sor­riso de conto de fadas sus­ten­tam uma civi­li­za­ção, uma imensa e recon­for­tante forma de ver, sen­tir e viver o mundo. Bas­tava que este homem dis­sesse uma só pala­vra. Uma pala­vra e a mul­ti­dão cor­re­ria des­vai­rada, em uivos apocalípticos…

Eis como vivemos, eis a civilização que criámos: a uma pala­vra do caos, a uma palavra de um triun­fal niilismo. Que insus­ten­tá­vel fra­gi­li­dade. Que insustentável beleza.

Crónica escrita há 15 dias, publicada há 8, na minha coluna do Jornal de Negócios. 

Matem o general Aupick!

Baudelaire

Matemos o general Aupick! Mato-o eu com um punhal florentino ou mata-o o leitor com um limpo tiro de espingarda?

Vejamos, o poeta francês Charles Baudelaire subiu às barricadas, corria a comoção revolucionária de 1848, que invadiu os povos da Europa com a galopante velocidade de um coronavírus. O povo de Paris, a que o presidente Macron não distribuíra ainda os coletes amarelos, desaguou nas praças com os seus músculos pré-lisnave, assaltou armeiros, espingardarias e arsenais e Baudelaire, sacudindo da bela melena o spleen de Paris, já levanta no ar o roubado fuzil de dois canos, uma cartucheira de couro a obliquar-lhe um peito que ferve de metáforas, perífrases e prosopopeias.

Mas eis que a todas as figuras de estilo, se impõe a apóstrofe! Baudelaire, com a magreza a que a sífilis o verga, uma voz que não tem um quinto do estentóreo da voz de Ary dos Santos, cavalga a barricada como se montasse o cavalo mongol de Gengis Khan e grita à tresloucada turbamulta: “Fuzilemos o general Aupick! Vamos matar o general Aupick!”

A multidão está pronta a fuzilar a abstracta burguesia, sonha com a ideia de cem banqueiros estripados, talvez dezassete padres enforcados nos cordões das próprias batinas, mas ouvir-se um nome, mesmo o nome de um general, é uma mancha ultrajantemente concreta para a grandiosa, radiosa, libertadora e utópica revolução.

E quem é o general Aupick? Eis a pergunta que já se desenha no rosto rubro da multidão. Ora Aupick é o padrasto de Baudelaire. É o comandante da escola Politécnica, virá a ser embaixador, e já não faz, por esta altura, mal a uma mosca. Mas Baudelaire, órfão de pai aos sete anos, não lhe perdoa as tentativas de o submeter a uma mais austera educação, não lhe perdoa, entendamo-nos, ter-lhe roubado o exclusivo dos mimos da mãe. Quando Baudelaire brada aos céus e à multidão “Vamos fuzilar o general Aupick!” é a literatura que afirma os seus direitos, cena shakespeariana, um rumor edipiano que o menino Sigmund Freud, então com oito anos, terá escutado em Viena.

E já vasculho no meu passado. O que gritei eu nessa revolucionária independência angolana, quando a febre anarco-maoista me encheu o coração de hipérboles? Lembro-me com carinho desses dias de fragor e fogo e a primeira coisa de que me lembro é que os elevadores deixaram de funcionar. Bem sei que a revolução, na sua voracidade igualitária, não gosta que nada suba e está cansada das coisas que descem. Mas os elevadores fizeram-se para descer e subir, e peço pelas alminhas aos futuros revolucionários que tenham este pormenor em conta: é na imobilidade dos elevadores que a revolução começa a perder o seu encanto.

Gritasse eu o que gritasse, nada do que gritei ombreia com o urro de Baudelaire, a que já voltarei. Houve, não obstante, uma palavra de ordem que ainda hoje me risca o peito de luz. Um camarada comandante, com aquele lindo sotaque Hoji Ya Henda, gritava numa interrogação retórica à multidão, “O colonialismo?” E a multidão, com este puto Manel lá no meio, respondia, musical, mozartiana: “Caiu na lama!”

Na lama da pós-revolução, Baudelaire foi dirigir um jornal republicano bem posto, no círculo de Berry, coração da França. Apresentou a amante como sua mulher. À primeira polémica despediram-no. E o ofendido presidente do jornal, um notário, recriminou-o: “Além do mais a senhora que nos apresentou como sua mulher, é afinal a sua favorita.” Foi aqui, que Baudelaire matou o general Aupick: “Senhor, a favorita de um poeta vale bem a mulher de um notário!”