Era uma vez um vírus chamado Hitler. Em 1943, dava já tão mau nome aos vírus, que mesmo alguns dos seus subordinados o queriam matar. Hitler tinha vindo a Smolensk, cidade russa, saborear mais um viral ataque das suas tropas. O general Henning von Tresckow recebeu-o, cordato pela frente, indignado nas costas. E pediu a um dos acompanhantes de Hitler que levasse no avião, de volta, um pacote com garrafas de conhaque para um amigo, que trabalhava no quartel general de Hitler, em Berlim. Era a bomba que deveria explodir no avião e liquidar o vírus nazi.
Deus põe ao menino a mão por baixo? Também o diabo, que o imita e dá colo a quem, como escreveu Jorge de Sena em carta ao capitão Sarmento Pimentel, por ser “filho da puta é sempre da puta filho.” O pacote do bombástico conhaque foi para o porão do avião e as baixíssimas temperaturas gelaram e incapacitaram os fusíveis que deveriam fazer explodir a bomba.
O general Tresckow mandou resgatar o pacote a Berlim. Se Hitler saiu incólume, incólumes saíram também os conspiradores, prontos para reincidir. Outro dos oficiais indignados era o aristocrático major-general Rudolf von Gertsdorff, formado na Academia Militar da Prússia. Hoje, os historiadores e mesmo nós, ex-frequentadores de cafés e de uma ou outra cervejaria, podemos perguntar-nos se o que inquietava Gertsdorff era uma revolta de consciência, ou se, ciente dos crimes nazis e antevendo a derrota, queria só salvar a pele no futuro.
A acção a que Gertsdorff se cometeu é auto-explicativa. A miserável história do avião fora há oito dias e Hitler vinha agora, dia 21 de Março de 1943, visitar uma exposição de armas capturadas aos soviéticos. No Arsenal, avenida Unter den Linden, o equivalente ao nosso Museu Militar. Gertsdorff seria o guia. Ofereceu-se a Tresckow para uma missão suicida: armar-se de explosivos, abraçar o vírus Adolf e acabar-lhe com a cadeia de contágio. Morreria, mas mandava o vírus para o inferno que o parira. Precisava de dez minutos.
Há em todo o herói um desarvorado grão de ambivalência. Gertsdorff, e também o general Tresckow, tinham sido coniventes, feito a guerra de Hitler e sabiam dos crimes. Calaram, vergados à lealdade hedionda. Mas queriam resgatar a velha honra militar. Mesmo à custa da vida.
Gertsdorff ouviu o estardalhaço da comitiva a chegar. Vinha Hitler e vinham Goebbels, Himmler. Correu à casa de banho para accionar os explosivos. Feito. Agora, faltavam dez minutos para haver resquícios de Hitler esparramados nas paredes. Com sorte, de Gobbeles e Himmler também. Sorriu-lhes, quis mostrar-lhes devagar as armas, mas um moscardo infecto deve ter mordido Hitler. Passou por tudo como cão por vinha vindimada e foi falar para o púlpito. Gertsdorff respirou fundo. Os discursos invertebrados de Hitler demoravam horas. Mas eis que Hitler se cala e ala que se faz tarde. Tinham passado oito minutos e Gertsdorff, bomba armada, estava prestes a explodir sozinho e sem glória. Tenta desarmar num minuto os explosivos. Consegue no último segundo.
Gertsdorff, para fugir a suspeitas, avançou para a Frente Leste e foi ele que descobriu o genocídio do outro vírus, Estaline: os corpos dos polacos exterminados pela NKDV, a PIDE comunista, em Katyn. Vinte e dois mil oficiais, soldados, intelectuais, artistas e padres polacos, todos fuzilados após interrogatório.
Tresckow persistiu e em 1944 pôs uma bomba na sala de reuniões do quartel general secreto de Hitler. A bomba explodiu, mas o inabalável vírus só sofreu escoriações. Tresckow suicidou-se.
Publicado em “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios
Agora vejam o herói. Tem um nórdico metro e cinquenta e dois e ia ganhando a guerra. Mas antes de falar deste finlandês de olhos agudos e mãos camponesas nas quais quase podemos apalpar a ternura com que o indicador direito acaricia o gatilho, deixem-me chamar aqui os canalhas.
Os canalhas são Hitler e Estaline. O nazi e o comunista já estão ao colo um do outro no abominável pacto em que se cevaram e já retalharam a Polónia, toma lá metade, dá cá metade. Cada canalha fareja o canalha que há no outro. Estaline teme que o canalha alemão dê a volta por cima e lhe entre pela porta de serventia meia escandinava que é a Finlândia. Com as boas maneiras insidiosas do antropófago, Estaline diz carinhosamente aos finlandeses que lhes vai comer 25 quilómetros de território ao longo da fronteira para protecção das suas nádegas georgianas. A rouca voz da Finlândia responde com um rotundo e já arquejante “não”. O canalha, socialista e científico, atira com 750 mil homens, uns seis mil tanques e quatro mil aviões para cima da Finlândia.
Os finlandeses deveriam cair numa tarde, num dia. E é aqui que entra o herói. Simo Häyhä estava em sossego camponês, serviço militar cumprido, mas é mobilizado. Traz, presa aos seus 34 anos cambutas, uma velha espingarda, a Mosin-Nagant M28, com anacrónica mira de aço. Veste a imaculada farda branca e vai, sozinho, fundir-se com a floresta de neve finlandesa. Rasteja, procura buracos de raposa, com gestos delicados calca a neve onde vai apoiar a arma para que, ao disparar, não se levante uma nuvem de partículas que o denuncie, mete na boca bolas de neve para matar o bafo quente da respiração e espera, invisível. Os soviéticos hão de vir. E quando vêm, um só tiro, mata o primeiro. Matará 505.
E tenho de voltar ao canalha. Estaline também ajudou a matar estes 505 russos. Na Grande Purga, de 1934 a 1938, o canalha liquidou dois terços dos quadros comunistas e cinco mil oficiais do Exército Vermelho, entre majores e generais. Nunca ninguém matara tantos comunistas como este Führer dos comunistas. Inexperientes, os novos oficiais do exército da URSS na Finlândia aprenderam a comer o pão da guerra com a massa que o diabo amassou. De farda escura os soviéticos eram coelhos vermelhos numa paisagem branca. Simo Häyä em cem dias mata 505. Cinco por dia se acreditarmos nessa história das médias, fora o dia em que matou quarenta. Vejam bem, um tiro, um homem. Na I Grande Guerra foram precisos sete mil tiros para cada baixa. No Vietnam 25 mil.
Os soviéticos chamam a Simo a “Morte Branca”. Num dos combates, Simo e mais 33 fazem recuar 4 mil soldados vermelhos. A artilharia matraqueia a posição onde Simo possa estar. E nada. Vem a aviação fazer terra rasa. E nada. A “Morte Branca” continua a devastar as hostes russas.
E ouçam os versos que cantavam os meus amigos que foram para heróis na guerra da independência de Angola: “Eu vou, eu vou morrer em Angola / Com arma, com arma de guerra na mão / Enterro, enterro será na patrulha, / Granada, granada será meu caixão.”
Sem saber que é isso que canta, a 6 de Março, Simo volta a avançar, rastejante, camuflado. Abate mais um inimigo e há de ser, desse dia, a última coisa de que se lembra. Um sniper soviético dá-lhe a comer do mesmo veneno. A bala estoira-lhe a bochecha e arranca-lhe a mandíbula. Os camaradas resgatam-no. Recupera a consciência no dia em que se assina a paz e há-de viver, com a sua meia cara de herói, uma vida de caçador de alces e criador de cães. Simo morreu em paz aos 96 anos.
A minha crónica semanal publicada no Jornal de Negócios
E Chatila já foi homenageado pela Conferência Europeia de Rabis
O nome é islâmico: Abdallah Chatila. Nasceu no Líbano, numa família cristã. É ateu e tem uma fortuna. Escolheu uma causa: secar o mito e o culto de Hitler. Abdallah comprou em leilão os objectos pessoais do ditador assassino, um chapéu, uma suástica, a edição de luxo do Mein Kampf. Custou-lhe mais do que o preço de uma bica, mas teria, diz ele, investido um milhão de euros, se fosse preciso. Agora, doou os objectos a uma associação judaica para que os guarde ou destrua.
De origem islâmica, Abdallah não pactua com nazis: sabe onde está o crime e a vítima. E, por ser rico, cumpriu a obrigação de dar o exemplo.
E é claro que eu tinha de abrir a porta e dar passagem a estes livros da Guerra e Paz. Contra os totalitarismos, sempre.
Prometemos aqui que traríamos aos leitores da Guerra e Paz excertos dos estudo críticos que enquadraram três dos livros que mais terrivelmente marcaram a História do século XX. O Mein Kampf, de Adolf Hitler, é um desses livros, o mais sombrio, o mais intencionalmente letal. O editor da Guerra e Paz fê-lo preceder de um estudo com cerca de 90 páginas, a que chamou “Ascensão, Poder e Crime do Nazismo“.
Entre outros pontos de interrogação, o autor mostra neste passo o papel que a violência teve na conquista e consolidação do poder. Leia-se:
«Hitler chegou ao poder pelo voto popular, diz-se. E chegou. Mas também chegou à força da cacetada e à força de cacetada consolidou o poder. A cacetada sufocou a voz da social-democracia, que Hitler odiava, como odiava os comunistas. A cacetada foi intimidatória e atapetou o caminho do voto, em particular a das últimas eleições de 5 de Março de 1933. Muita Alemanha votou nela, mas muita Alemanha se calou com medo do vaivém do cacete.
Um tsunâmi de Terror varreu a Alemanha. Manifestações comunistas e do SPD proibidas. Jornais comunistas incendiados, jornais do SPD restringidos. Aos directores desses jornais partiam-se os dentes com mocas, às redacções era só escavacar a mobília e pegar-lhes fogo.
Os SA, tropas de assalto de Hitler, organização paramilitar autorizada, esses expoentes da revolução permanente, cuja dinâmica Trotski e Mao Tsé-tung talvez pudessem invejar, passaram anos em actos de banditismo, a espancar comunistas na rua, assaltando-lhes as delegações partidárias, e a espancar judeus – sempre os judeus. Assassinavam à luz do dia. Prendiam os adversários em caves, torturavam-nos até os converterem numa indistinta massa de sangue, dentes e bocas desfeitos. Entre as diversas eleições a que os nazis concorreram, os SA de Hitler, chefiados por Ernst Röhm, fizeram verdadeiras guerras civis nas cidades alemãs. Antes do voto, houve sempre orgias de violência.
Mesmo antes de chegarem ao poder, os nazis já assassinavam com impunidade. Mataram comunistas e matavam judeus. O cidadão alemão fingia que não via ou olhava com tolerância para esses farrapos de «outros» que tombavam. Como viria a escrever o pastor Martin Niemöller: «Quando os nazis levaram os comunistas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era comunista. Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era social-democrata. Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, eu não era sindicalista. Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque, afinal, eu não era judeu. Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse.»
Niemöller era uma voz isolada. As igrejas protestantes, cegas, surdas e mudas, também não davam conta. Só as organizações políticas da Igreja Católica reagiram até 1933. Mas com a chegada ao poder de Hitler, a hierarquia católica quer salvar-se e prescinde da política. O Vaticano assina a Concordata com Hitler. Tê-la-ia, bem se vê, assinado com o Diabo.»
Noutro passo, e falando das primeiros ataques sistemáticos aos judeus, Manuel S. Fonseca escreve:
«Era de noite e levaram… A noite nazi encheu a Alemanha de gritos. De 9 para 10 de Novembro de 1938, no progrom da Noite de Cristal, as tropas de choque do Partido Nacional-Socialista, tropas de Hitler, assaltam as casas das famílias judias, rebentam-lhes as lojas de comércio, insultam-nos, cospem-lhes, batem-lhes violentamente, numa vaga de arrogante arbitrariedade. São turbas selváticas, hordas de hienas que guincham e caem de dentes afiados sobre as suas presas indefesas. Entram pelos apartamentos, espancam os velhos, as mulheres, as crianças, arrastam-nos pela rua, escavacam oito mil estabelecimentos, atiram dos prédios as mobílias das casas. Os cem judeus mortos nessa noite são, já se pode adivinhar, o prenúncio dos milhões que hão-de ser chacinados mais tarde. Uma triste via láctea de fragmentos de vidro partido cobre as ruas das cidades alemãs, resultado do vendaval de destruição com que se partiram as lojas e se incendiaram centenas de sinagogas por todo o grande Reich, na Alemanha, Áustria e nos Sudetas. Trinta mil homens são arrancados das camas, das suas casas e levados para campos de concentração: Dachau, Buchenwald e Sachsenhausen passam a ser nomes com um significado sinistro. São trinta mil judeus e serão apenas os primeiros. Goebbels, o serventuário do carrasco Hitler, declara: «Agora, nós é que mandamos.» E o Nazi, obcecado com a higiene, asséptico, pele translúcida de tanto se lavar, dá luz verde à limpeza étnica.
O judeu passa a ser uma sombra encostada à parede, tira-se-lhe a casa, tira-se-lhe a loja, a profissão. Todos têm de ter no passaporte um J, todos os homens se passam a chamar Israel, todas as mulheres Sara. Começa a cumprir-se o voto favorito de Hitler: uma Alemanha Judenrein, uma Alemanha limpa de judeus.
Os alemães assistem passivos a tudo. Indiferentes à selvajaria dos uivos que enchem a rua, calcando para o fundo da alma a compaixão que é a marca do humano, são poucos os alemães que se atrevem a oferecer algum consolo, ajuda ou protecção ao judeu. Desviando o olhar do sangue que ficou no passeio, muitos aproveitam para lhes ocupar ou comprar por tuta-e-meia a loja, o negócio, o consultório.
E, não obstante, estes judeus acreditavam na Alemanha e acreditavam que eram alemães. Mesmo depois da ascensão dos nazis ao Poder, em 1933, três quartos da população judaica permanecera na Alemanha. Ficaram até à data fatídica deste progrom gigantesco. Agora, enegrecendo-lhes as vidas, caíam sobre eles as cendradas sombras que se tinham visto nos filmes mudos alemães, no Caligari de Robert Wiene, no Nosferatu de Murnau, na Morte Cansada, nos Mabuse e no M todos de Fritz Lang. Um horrível e desfigurado Expressionismo atormentava as cidades, as ruas e as casas da Alemanha.»
Este livro, devidamente enquadrado, é uma obra essencial para conhecermos o mal e as razões do mal que sufocaram o século XX.
Nadavam nuas no Danúbio. E antes de falar de Hitler ou de Simone de Beauvoir, digo já os nomes dessas americanas que nadavam nuas ali perto de Budapeste. São mulheres mortas, mas estavam vivas nos anos 20 do século passado. Passaram cem anos e custa imaginar, à nossa vigilância policialmente correcta, a líquida liberdade de uma poeta, Edna St. Vincent Millay, e de uma jornalista, Dorothy Thompson, nesses anos em que nos querem fazer crer que a mulher ainda não existia.
E agora pergunto: por que estremece o bigode de Hitler? De desejo ou de raiva? Perverso, incestuoso, seria de desejo se ainda estivesse viva Geli Raubal, a sua juvenil sobrinha, de suficiente beleza apolínea para segurar um facho no “Triunfo da Vontade” da genial, porém nazi, Leni Rieffenstahl. Mas a sobrinha suicidou-se ou ter-se-ia suicidado se a jornalista americana Dorothy Thompson não olhasse com ululante desconfiança para o tiro no peito que a matou. Como é que alguém se suicida com um tiro no peito? O mínimo bigode de Hitler estremece com uma raiva SS à pergunta americana de 1931, ano em que Hitler começou a estar na moda.
Antes, a nudez do Danúbio inspirara a Dorothy o primeiro casamento com um poeta húngaro. A sexualíssima cintilação da amiga Edna terá ajudado: Edna tinha dois amantes na Embaixada americana e conseguia, em prodigiosa camuflagem diplomática, que nenhum soubesse do outro, perguntando a Dorothy: “Achas que sou ninfomaníaca?”
Dorothy foi a Viena em reportagem e deixou o marido com Edna. Quando voltou, a poeta mostrou-lhe um anel de verde esmeralda e sussurrou à amiga jornalista: “Foi o teu marido que mo deu, mas ele gosta mesmo de ti.”
Dorothy não rifou a nua amiga, mas rifou o marido e deram-lhe, então, a chefia da delegação do New York Post, em Berlim. Era uma mulher, coisa que Simone de Beauvoir ainda não inventara, e puseram-lhe na mão a mais trepidante das delegações da Europa, como já fora ela a cobrir a celebração dos dez anos da revolução bolchevique. Terá estremecido o bigode do tio Estaline?
Estava agora casada com Sinclair Lewis, cosmopolita como o marido húngaro, e melhor escritor, se o Nobel quer dizer alguma coisa. Lewis ganhou-o, ainda mal Saramago abria os olhos. Mas é da liberdade de Dorothy que quero falar e não de glórias masculinas. Talvez Dorothy apreciasse na meia-sobrinha de Hitler o gosto dela se banhar também nua com uma amiga, não sei se no Wannsee, e deixarem-se ficar angélicas ao sol, na peregrina busca de um bronzeado sem mancha.
Tudo isto se sabia na infrene Berlim. Dorothy convivia com Thomas Mann e Brecht. Nos braços ou colo de Christa Winsloe, outra escritora, entregou-se a delícias sáficas, permanecendo casada com Lewis: reivindicava o direito a amar. Terá voltado a estremecer o bigode de Hitler?
Em 1931, Hitler concedeu-lhe uma entrevista. Digamos com uma franqueza portuguesa de tasca, Hitler saiu da entrevista a andar à pinguim. Dorothy compôs-lhe um retrato de “pequeno homem”, de anão político, corpo sem formas, cartilagem onde devia estar um esqueleto, um tipo que em vez de cara tem uma caricatura. E, falando de carácter, acrescentou: inconsequente e volúvel, doentio e inseguro.
Dorothy sentou-se na entrevista e escreveu um livro: “Eu vi Hitler”. Hitler é que já não a podia voltar a ver. Ou talvez fosse só o nervoso bigode de Hitler. Deu-lhe ordem de expulsão da Alemanha. Dorothy Thompson, nua sereia do Danúbio, amiga de Edna, amante de Christa, mulher de Lewis, foi a primeira jornalista a ser expulsa pelo odioso nazi. Uma mulher.
Publicado na minha coluna, Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo, no Jornal de Negócios
Bica Curta servida no CM, na 3ª feira, 30 de Abril
Casaram no dia anterior. Tomaram uma bica e suicidaram-se depois. Adolf Hitler e Eva Braun morreram, faz hoje, dia 30 de Abril, 74 anos. Hitler testou antes, no seu cão, o cianeto que ele e Eva engoliram depois. A si mesmo, Hitler deu ainda, por via das dúvidas, um tiro na cabeça. Deixou-nos o mais hediondo crime que a humanidade viu, a morte em massa de seres humanos em fornos crematórios. Matou por uma só razão: o ódio étnico, ódio ao judeu.
O monstro da irracionalidade atormentou nazis e comunistas no século XX. Invocou-se a raça, invocou-se a ideologia para matar sem lei. Não podemos deixar o monstro à solta no século XXI.
Voltei às minhas velhas notas do tempo da Cinemateca e, às ordens e por despacho do Cineclube de Viseu e da revista Argumento, reescrevi um texto que tinha ficado perdido no tempo. Deu-me gozo. Mudei adjectivos, criei subtítulos, redimi alguns parágrafos, acrescentei outros – até Merkel foi para aqui chamada. Pior ainda, revi boa parte do filme. Fiquei com pena de não ter revisto tudo.
Somos todos marionetas?
Hitler, um filme da Alemanha, filme realizado por Hans-Jürgen Syberberg, em 1977, é o quê? Sim, é um filme de sete horas, extravagância que não casa com as programações de cinematecas, festivais e cineclubes contemporâneos. Ou será que não casa, sobretudo, com o apressado e instantâneo Homem contemporâneo – e deixem-me vir já armado de maiúscula, para que neste H caibam homens e mulheres e o mais que de géneros se convoque e legitime.
Será Hitler uma evocação fascinada de terríveis fantasmas do passado? Um libelo contra a moral e a estética do mundo contemporâneo? Um relato, simultaneamente em tom hagiográfico e de farsa, à volta da vida do homem de anacrónico bigode que presidiu ao terceiro Reich? Ou será uma invocação e uma diatribe contra o cinema e a sua história? Talvez seja, e confirmá-lo-ia Angela Merkel, se o tivesse visto, a devassa do inconsciente colectivo da Alemanha. São muitas perguntas e eu diria, em três prosaicas linhas, que é o fim de uma trilogia (de que os outros painéis são Ludwig, Requiem para Um Rei Virgem e Karl May) cobrindo a história da nação alemã – e, logo, a da Europa – desde a industrialização no século passado até às sequelas, que chegam aos nossos dias, da queda do terceiro Reich.
Um filme em inflação cósmica Tudo isto, e um fausto de símbolos e bandeiras, sobreposições, alegorias e fantasmas, é Hitler, filme de Hans-Jürgen Syberberg, ainda que a simples soma das facetas referidas, contraditórias e até paradoxais, seja insuficiente para designar o que, na sua globalidade, o filme efectivamente é. Hitler, um filme da Alemanha é uma suma em forma de oratória, articulando a história, o cinema, o teatro, as ideologias, e sobretudo esse fundo mítico e irracional que parece ser a fonte da nossa ansiedade e dos nossos medos, mas também a mola fulcral da nossa acção. Tudo cabe num filme, se o filme, como o universo, for passível de inflação cósmica.
E eis que Hitler vira as costas ao universo para ser só cinema. Hitler é o filme colagem em que se inscreve a memória ritualizada do cinema no cinema: perante um Hitler na tribuna do seu estádio, a uma velocidade de Jesse Owens, desfilam fantasmas, a naïveté de Méliès, a montagem de Eisenstein, a megalomania de Stroheim, a ascética culpa de Lang, a multidão da Riefenstahl, o servilismo funcional de Veit Harlan, o barroco prestidigitador de Orson Welles, o rigorismo de Stanley Kubrick, o rosto da Garbo, o sonho de Mary Pickford, os artefactos chaplinescos, alguma inocente magia circense, em que Ophüls e Lola Montés estão presente de parte inteira.
Os cúmplices de Hitler Lembro-me do que me lembro, diria João Bénard da Costa, e eu lembro-me de ter ido jantar com ele e com Syberberg ao Gambrinus, nesse tempo em que os restaurantes em Portugal não tinham estrelas Michelin e ainda à refeição se falava de Brecht, esse alemão dividido ao meio por um muro. Foi Syberberg que o chamou, a Brecht, à toalha da mesa, e o colou ao seu filme, invocando a distância – a celebrada distanciação brechtiana, aqui carregada em ombros por um negríssimo humor, artifício e marionetas. Deixo Syberberg explicar: «Brecht, por exemplo, em determinado momento das suas obras introduz uma canção: detém a história e um dos personagens avança até ao público e canta, para depois prosseguir a história. Penso que este ponto especial da história em que o personagem sai dela para dizer coisas, expondo pensamentos do autor e recolhendo ideias da audiência, para continuar a seguir, é muito interessante, porque é como uma encruzilhada de ideias.»
Volto atrás, macaquinho de imitação desse corso-ricorso joyceano que Syberberg está sempre a tirar da manga ou do seu houdinesco chapéu mágico: a ideia de filme-colagem tem em Hitler uma ressonância mais profunda, a da colagem (e não se trata, entenda-se, da projecção) entre o espectador e o tema. O que incendeia o filme de Syberberg não é a personagem de um Hitler histórico, assepticamente apresentado. O que é avassalador e nos fere é que nós estamos também no filme e somos nós que retocamos a personagem de Hitler e lhe damos a última demão. A imagem de Hitler que Syberberg quer construir só se revela quando nós a completamos, nela nos reconhecendo, deixando ver – aflitivo espelho, aflitivo reflexo – o Hitler em nós, a escondida herança que ele nos deixou e que infiltra e impregna os nossos sentimentos, a nossa moral, as nossas instituições, a nossa arte, as nossas democracias.
Será legítima, ideológica e politicamente, a colagem de Hitler ao espectador que somos? Será legítima a “acusação épica de cumplicidade”, como lhe chamou Alberto Moravia? Somos ainda herdeiros, ainda mais agora, com este populismo palpitante que, à direita e à esquerda, se levanta em estandartes que se reclamam do povo e da boca do povo? Somos ainda os cúmplices, como nos acusa o céptico Moravia, filiado na nascente cultura da queixa, que o indefectível apreço moraviano pela alienação e pela incomunicabilidade já anunciavam?
Justiça estética Não consigo, por não saber, responder. Mas se as emoções são uma resposta, ao ver o filme de Syberberg sinto que aquela colagem é esteticamente justa. Liminarmente justa. E talvez radique na “justiça estética” de Hitler, um filme da Alemanha o seu maior escândalo.
Donde vem a “justiça estética” do filme de Syberberg? Em meu entender, a sua principal fonte é Brecht. Na sua distância, na sua ironia (tantas vezes tintada do sarcasmo), na articulação histórica que segue simultaneamente um princípio de causalidade e um princípio dialéctico (refiro-me à pluralidade das “camadas do real” que Syberberg convoca), Hitler, um filme da Alemanha representa a concreção das premissas teóricas de Brecht numa grande obra de arte. O escândalo de Hitler, um filme da Alemanha talvez decorra, afinal, do facto de, tendo sido apontado como “um filme nazi”, ele ser, num improvável encontro paradoxal de beaux esprits, os de Syberberg, Wagner e Brecht, a maior, e quem sabe se não a única, grande obra de arte de raiz brechtiana já criada.
E ao espectador que fui, das várias vezes que vi o filme, não restam dúvidas, inspirado embora numa estética brechtiana, Hitler, um filme da Alemanha, por muito que nele pesem as referências (ou mesmo citações) teatrais, musicais, literárias e, por que não, circenses, tem como sua forma última e soberana o cinema.
Sob o signo do cinema, desde o monólogo inicial no “Black Maria”, o primeiro estúdio de Edison – a que Syberberg, ou alguém por ele, chama no filme “o estúdio negro da nossa imaginação” – desde as sucessivas interpretações de Hitler, (Frankenstein, Charlot), desde o monólogo que retoma o premonitório julgamento da personagem de Peter Lorre no M de Fritz Lang, até ao violento libelo contra Hollywood, contra os “seus Hitlers”, chamem-se Hayes ou McCarthy, Hitler, um filme da Alemanha, assombrado pela música de Wagner, é uma obra sobre a ascensão do cinema neste século, sobre a sua essência cósmica, a primordial lux in tenebris, terminando com o desejo de “projecção no buraco negro do futuro”.
Tem dias. Dias em que me apetece correr os estereótipos a pontapé. Outros dias em que beijaria o primeiro estereótipo que me saísse debaixo da pedra a que tivesse dado um pontapé. Dou um exemplo, esse lugar-comum, essa frase batida, «les beaux esprits se rencontrent», que tem uma variante portuguesa plebeia, a saber, «os extremos tocam-se». Topo com esse estereótipo e estava capaz de lhe morder a orelha com um apetite de Mike Tyson ou de o pôr KO ao primeiro gancho de esquerda, fosse eu Muhammad Ali.
Mas foi uma raiva que logo engoli quando me pus a pensar que Adolf Hitler e Vladimir Ilitch Ulianov, mais conhecido por Lenine, nunca trabalharam. Hitler viveu de pensões que lhe permitiram viver em Viena de Áustria a roçar o cu pelas paredes e Lenine às custas da mãe que o financiava, permitindo-lhe a sua carreira de revolucionário profissional. Nunca trabalharam. Une-os o elo, o festivo laço do estereótipo.