Ascensão, poder e crime do Nazismo

E é claro que eu tinha de abrir a porta e dar passagem a estes livros da Guerra e Paz. Contra os totalitarismos, sempre.

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Prometemos aqui que traríamos aos leitores da Guerra e Paz excertos dos estudo críticos que enquadraram três dos livros que mais terrivelmente marcaram a História do século XX. O Mein Kampf, de Adolf Hitler, é um desses livros, o mais sombrio, o mais intencionalmente letal. O editor da Guerra e Paz fê-lo preceder de um estudo com cerca de 90 páginas, a que chamou “Ascensão, Poder e Crime do Nazismo“.

Entre outros pontos de interrogação, o autor mostra neste passo o papel que a violência teve na conquista e consolidação do poder. Leia-se:

«Hitler chegou ao poder pelo voto popular, diz-se. E chegou. Mas também chegou à força da cacetada e à força de cacetada consolidou o poder. A cacetada sufocou a voz da social-democracia, que Hitler odiava, como odiava os comunistas. A cacetada foi intimidatória e atapetou o caminho do voto, em particular a das últimas eleições de 5 de Março de 1933. Muita Alemanha votou nela, mas muita Alemanha se calou com medo do vaivém do cacete.

Um tsunâmi de Terror varreu a Alemanha. Manifestações comunistas e do SPD proibidas. Jornais comunistas incendiados, jornais do SPD restringidos. Aos directores desses jornais partiam-se os dentes com mocas, às redacções era só escavacar a mobília e pegar-lhes fogo.

Os SA, tropas de assalto de Hitler, organização paramilitar autorizada, esses expoentes da revolução permanente, cuja dinâmica Trotski e Mao Tsé-tung talvez pudessem invejar, passaram anos em actos de banditismo, a espancar comunistas na rua, assaltando-lhes as delegações partidárias, e a espancar judeus – sempre os judeus. Assassinavam à luz do dia. Prendiam os adversários em caves, torturavam-nos até os converterem numa indistinta massa de sangue, dentes e bocas desfeitos. Entre as diversas eleições a que os nazis concorreram, os SA de Hitler, chefiados por Ernst Röhm, fizeram verdadeiras guerras civis nas cidades alemãs. Antes do voto, houve sempre orgias de violência.

Mesmo antes de chegarem ao poder, os nazis já assassinavam com impunidade. Mataram comunistas e matavam judeus. O cidadão alemão fingia que não via ou olhava com tolerância para esses farrapos de «outros» que tombavam. Como viria a escrever o pastor Martin Niemöller: «Quando os nazis levaram os comunistas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era comunista. Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era social-democrata. Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, eu não era sindicalista. Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque, afinal, eu não era judeu. Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse.»

Niemöller era uma voz isolada. As igrejas protestantes, cegas, surdas e mudas, também não davam conta. Só as organizações políticas da Igreja Católica reagiram até 1933. Mas com a chegada ao poder de Hitler, a hierarquia católica quer salvar-se e prescinde da política. O Vaticano assina a Concordata com Hitler. Tê-la-ia, bem se vê, assinado com o Diabo.»

Noutro passo, e falando das primeiros ataques sistemáticos aos judeus, Manuel S. Fonseca escreve:

«Era de noite e levaram… A noite nazi encheu a Alemanha de gritos. De 9 para 10 de Novembro de 1938, no progrom da Noite de Cristal, as tropas de choque do Partido Nacional-Socialista, tropas de Hitler, assaltam as casas das famílias judias, rebentam-lhes as lojas de comércio, insultam-nos, cospem-lhes, batem-lhes violentamente, numa vaga de arrogante arbitrariedade. São turbas selváticas, hordas de hienas que guincham e caem de dentes afiados sobre as suas presas indefesas. Entram pelos apartamentos, espancam os velhos, as mulheres, as crianças, arrastam-nos pela rua, escavacam oito mil estabelecimentos, atiram dos prédios as mobílias das casas. Os cem judeus mortos nessa noite são, já se pode adivinhar, o prenúncio dos milhões que hão-de ser chacinados mais tarde. Uma triste via láctea de fragmentos de vidro partido cobre as ruas das cidades alemãs, resultado do vendaval de destruição com que se partiram as lojas e se incendiaram centenas de sinagogas por todo o grande Reich, na Alemanha, Áustria e nos Sudetas. Trinta mil homens são arrancados das camas, das suas casas e levados para campos de concentração: Dachau, Buchenwald e Sachsenhausen passam a ser nomes com um significado sinistro. São trinta mil judeus e serão apenas os primeiros. Goebbels, o serventuário do carrasco Hitler, declara: «Agora, nós é que mandamos.» E o Nazi, obcecado com a higiene, asséptico, pele translúcida de tanto se lavar, dá luz verde à limpeza étnica.

O judeu passa a ser uma sombra encostada à parede, tira-se-lhe a casa, tira-se-lhe a loja, a profissão. Todos têm de ter no passaporte um J, todos os homens se passam a chamar Israel, todas as mulheres Sara. Começa a cumprir-se o voto favorito de Hitler: uma Alemanha Judenrein, uma Alemanha limpa de judeus.

Os alemães assistem passivos a tudo. Indiferentes à selvajaria dos uivos que enchem a rua, calcando para o fundo da alma a compaixão que é a marca do humano, são poucos os alemães que se atrevem a oferecer algum consolo, ajuda ou protecção ao judeu. Desviando o olhar do sangue que ficou no passeio, muitos aproveitam para lhes ocupar ou comprar por tuta-e-meia a loja, o negócio, o consultório.

E, não obstante, estes judeus acreditavam na Alemanha e acreditavam que eram alemães. Mesmo depois da ascensão dos nazis ao Poder, em 1933, três quartos da população judaica permanecera na Alemanha. Ficaram até à data fatídica deste progrom gigantesco. Agora, enegrecendo-lhes as vidas, caíam sobre eles as cendradas sombras que se tinham visto nos filmes mudos alemães, no Caligari de Robert Wiene, no Nosferatu de Murnau, na Morte Cansada, nos Mabuse e no M todos de Fritz Lang. Um horrível e desfigurado Expressionismo atormentava as cidades, as ruas e as casas da Alemanha.»

Este livro, devidamente enquadrado, é uma obra essencial para conhecermos o mal e as razões do mal que sufocaram o século XX.

Hitler, Mein Kampf

 

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O Mein Kampf é um livro de ódio. Agora, com a florescência dos populismos percebêmo-lo melhor ainda, o Mein Kampf é um livro a ler e debater. Proibi-lo, como se fez durante décadas, é criar-lhe uma aura que o livro não merece, e que uma análise atenta logo desvanece.

Publiquei o livro na Guerra e Paz editores, vai fazer três anos. E entendi contextualizá-lo, fazendo-o preceder de um texto a que dei o título auto-explicativo de Ascensão, Poder  e Crime do nazismo, juntando a esse texto abundante material fotográfico da violência e genocídio desses anos 30 e 40. O livro constitui um dos grandes êxitos editoriais da Guerra e Paz. Deixo aqui um breve excerto desse meu texto.

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Hitler alimentava a sua ideologia racial com alguns pós pilhados ao darwinismo, com generosas doses de eugenismo, racismo científico, que era então o ar do tempo, e um caldeirão esotérico e místico. Na sua prática, o nazismo foi uma ideologia de um ateísmo nimbado a um patético paganismo. Decididamente, uma ideologia anti-cristã, que o triunfo da vontade e a exigência de se se incarnar um vagamente darwinista papel do mais forte não contemplavam a baixeza do amor ao próximo.

O Nacional-Socialismo é, nalguns dos seus traços ideológicos, uma caricatura do marxismo que, talvez por filosófico complexo de inferioridade, odeia e combate. Alemão, como o marxismo, o nazismo sabe que é filosoficamente mais burro, que escreve pior a língua alemã, que nem afastadíssimo primo é do melhor que a filosofia alemã legou ao mundo. O nazismo é também, como o marxismo, anti-capitalista. Recorde-se que o partido nazi, NSDA, se chamava Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Ao marxismo, o nazismo copiou a base operária. Ataca, como o seu rival vermelho, a ideia de propriedade, mostrando a sua irrelevância face ao papel patriarcal que o Estado passa a assumir na sociedade homogeneizada que o colectivismo nazi vai utopicamente engendrar. Numa transformação alquímica, Adolf Hitler converte a luta de classes de Marx numa luta de raças. A destruição do judeu é o propósito final dessa luta – pelo caminho liquidar-se-iam os comunistas, extinguir-se-ia a democracia e os partidos, punha-se um freio estatal à economia de mercado.

Pode dizer-se que o motor do nazismo foi o ódio: ao judeu, ao comunismo, à democracia parlamentar e ao liberalismo económico. Foi, foi sim. Mas, tanto como o ódio, o motor do nazismo foi Adolf Hitler.

  1. O judeu

Para Adolf Hitler, o judeu acolhe e é a fonte de todos os males do Mundo e do Tempo. Historicamente, para Hitler, o Tratado de Versalhes, que humilhava e agrilhoava o Povo Alemão, fora o resultado de uma conspiração do judaísmo internacional, dos banqueiros judeus, fossem eles ingleses ou franceses.

O judeu era, portanto, responsável pelo capitalismo e pela secreta conspiração da alta finança. Era o judeu que espalhava a ideologia materialista que induzia à ganância um povo cuja virtude era a temperança.

Mas era também o judeu que espalhava a ideologia comunista, a ideologia criadora da dupla ameaça bolchevista, ameaça interna e subjacente da República de Weimar, ameaça externa com o crescimento do comunismo soviético.

O judeu era agiota, banqueiro, comunista. Mas era também, no ideário nazi, um ser física e moralmente sujo, um bacilo, um piolho. Incapaz de se ligar à nação, o judeu era a faca sempre apontada às costas do patriota alemão. Se era rico, explorava o povo. Se era intelectual, era o agitador subversivo que trouxera ao povo alemão a desgraça que era a República de Weimar, a intragável democracia parlamentar. A pureza ariana tinha de ser protegida do judeu – o judeu era o violador de que a donzela ariana tinha de ser escondida. O odiado Eterno Judeu era responsável pela sífilis e pelo comunismo, pela imprensa e pelo capitalismo

O judeu não podia ser cidadão. Privado de todos os direitos, o judeu devia, numa visão benigna, ser expulso da pátria alemã. Numa solução ideal, deveria ser erradicado da face da Terra.

A patologia de Hitler tinha proporções homéricas: um dia soube que a mulher de um seu general fizera, na juventude, fotografias pornográficas. O autor das fotos fora um fotógrafo judeu. Ora, Hitler tinha sido padrinho do casamento e beijara a mão a essa mulher. Quando soube, horrorizado com a lembrança dos beijos dados na pele de uma mulher que estivera nua com um fotógrafo judeu, Hitler tomou, nesse dia, sete banhos sucessivos. Ter-se-á esfregado com pedra-pomes?