O Mein Kampf é um livro de ódio. Agora, com a florescência dos populismos percebêmo-lo melhor ainda, o Mein Kampf é um livro a ler e debater. Proibi-lo, como se fez durante décadas, é criar-lhe uma aura que o livro não merece, e que uma análise atenta logo desvanece.
Publiquei o livro na Guerra e Paz editores, vai fazer três anos. E entendi contextualizá-lo, fazendo-o preceder de um texto a que dei o título auto-explicativo de Ascensão, Poder e Crime do nazismo, juntando a esse texto abundante material fotográfico da violência e genocídio desses anos 30 e 40. O livro constitui um dos grandes êxitos editoriais da Guerra e Paz. Deixo aqui um breve excerto desse meu texto.
Hitler alimentava a sua ideologia racial com alguns pós pilhados ao darwinismo, com generosas doses de eugenismo, racismo científico, que era então o ar do tempo, e um caldeirão esotérico e místico. Na sua prática, o nazismo foi uma ideologia de um ateísmo nimbado a um patético paganismo. Decididamente, uma ideologia anti-cristã, que o triunfo da vontade e a exigência de se se incarnar um vagamente darwinista papel do mais forte não contemplavam a baixeza do amor ao próximo.
O Nacional-Socialismo é, nalguns dos seus traços ideológicos, uma caricatura do marxismo que, talvez por filosófico complexo de inferioridade, odeia e combate. Alemão, como o marxismo, o nazismo sabe que é filosoficamente mais burro, que escreve pior a língua alemã, que nem afastadíssimo primo é do melhor que a filosofia alemã legou ao mundo. O nazismo é também, como o marxismo, anti-capitalista. Recorde-se que o partido nazi, NSDA, se chamava Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Ao marxismo, o nazismo copiou a base operária. Ataca, como o seu rival vermelho, a ideia de propriedade, mostrando a sua irrelevância face ao papel patriarcal que o Estado passa a assumir na sociedade homogeneizada que o colectivismo nazi vai utopicamente engendrar. Numa transformação alquímica, Adolf Hitler converte a luta de classes de Marx numa luta de raças. A destruição do judeu é o propósito final dessa luta – pelo caminho liquidar-se-iam os comunistas, extinguir-se-ia a democracia e os partidos, punha-se um freio estatal à economia de mercado.
Pode dizer-se que o motor do nazismo foi o ódio: ao judeu, ao comunismo, à democracia parlamentar e ao liberalismo económico. Foi, foi sim. Mas, tanto como o ódio, o motor do nazismo foi Adolf Hitler.
- O judeu
Para Adolf Hitler, o judeu acolhe e é a fonte de todos os males do Mundo e do Tempo. Historicamente, para Hitler, o Tratado de Versalhes, que humilhava e agrilhoava o Povo Alemão, fora o resultado de uma conspiração do judaísmo internacional, dos banqueiros judeus, fossem eles ingleses ou franceses.
O judeu era, portanto, responsável pelo capitalismo e pela secreta conspiração da alta finança. Era o judeu que espalhava a ideologia materialista que induzia à ganância um povo cuja virtude era a temperança.
Mas era também o judeu que espalhava a ideologia comunista, a ideologia criadora da dupla ameaça bolchevista, ameaça interna e subjacente da República de Weimar, ameaça externa com o crescimento do comunismo soviético.
O judeu era agiota, banqueiro, comunista. Mas era também, no ideário nazi, um ser física e moralmente sujo, um bacilo, um piolho. Incapaz de se ligar à nação, o judeu era a faca sempre apontada às costas do patriota alemão. Se era rico, explorava o povo. Se era intelectual, era o agitador subversivo que trouxera ao povo alemão a desgraça que era a República de Weimar, a intragável democracia parlamentar. A pureza ariana tinha de ser protegida do judeu – o judeu era o violador de que a donzela ariana tinha de ser escondida. O odiado Eterno Judeu era responsável pela sífilis e pelo comunismo, pela imprensa e pelo capitalismo
O judeu não podia ser cidadão. Privado de todos os direitos, o judeu devia, numa visão benigna, ser expulso da pátria alemã. Numa solução ideal, deveria ser erradicado da face da Terra.
A patologia de Hitler tinha proporções homéricas: um dia soube que a mulher de um seu general fizera, na juventude, fotografias pornográficas. O autor das fotos fora um fotógrafo judeu. Ora, Hitler tinha sido padrinho do casamento e beijara a mão a essa mulher. Quando soube, horrorizado com a lembrança dos beijos dados na pele de uma mulher que estivera nua com um fotógrafo judeu, Hitler tomou, nesse dia, sete banhos sucessivos. Ter-se-á esfregado com pedra-pomes?
As patologias da mente são o cabo dos trabalhos quando e se os dementes sobem ao poder. Mas o homem é uma caixinha de surpresas, é democraticamente que tais seres menores são eleitos…
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Digamos que a eleição democrática de Hitler tem muito que se lhe diga. As acções intimidatórias anteriores, de uma violência extrema, tiveram um peso significativo.
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Meu caro, sou dos que pensam não dever ser proibido mas apenas ignorá-lo, ao livro. Não estamos em tempos de “análises atentas”, o impulso é mais imediatista, me parece, mais básico, mais animal. Tempos muito perigosos, bem mais do que há três anos, portanto. Mein Kampf é um marco do Horror, de um Horror tal que hoje alguns entendem como libertação do Mal que, sendo-o, deve ser exterminado. Muito perigoso, portanto, apesar da excelência da contextualização, aqui fica um abraço por ela.
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Um abraço, Fernando. Bem sei, que como muito bem diz, o mundo está perigoso, mas o meu optimismo e as estatísticas também mostram que há outro mundo, cada vez melhor, a ser construído. Só o construiremos com pensamento, reflexão e total liberdade. E sei que nisso estamos de acordo.
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