Há uns bons anos, no dia 31 de Julho de 2009, era por acaso uma 6.ª feira, José Saramago escreveu uma crónica bela e pungente. Na altura, a blogosfera no seu nadir, estranhei que tivesse tido tão pouco eco.
A crónica evocava a grandeza de Álvaro Cunhal, a sua falta. Nostálgica evocação? Sebastiânica saudade? Talvez, mas não só. Era mais. Era, a meu ver, uma elegia do comunismo. Numa crónica perpassada por irremediável tristeza, Saramago despedia-se publicamente da sua ideologia de sempre.
O cronista lamentava que Cunhal não tivesse escrito as memórias que nos permitiriam compreender, diz ele, ”os fundamentos da raquítica árvore a cuja sombra se recolhem hoje os portugueses a ingerir os palavrosos farnéis com que julgam alimentar o espírito.” A “raquítica árvore” cujos fundamentos as memórias de Cunhal poderiam elucidar é, sabemos todos, o velho e cristalino partido de que Cunhal foi o ideólogo obsessivo, o rosto austero e a mão mais ou menos férrea.
Na crónica de Saramago, a saudade de Cunhal e a crítica ao Partido poderiam ser as duas faces de uma moeda de circunstância – crítica de pormenor que não abalasse a monumental arquitectura. Faça-se-lhe justiça, a meditação de Saramago é mais exigente e convulsa. O escritor lamenta que Cunhal não tenha deixado testamento e memórias que fossem, afinal, “uma reflexão sobre a grandeza e decadência dos impérios, incluindo aqueles que construímos dentro de nós próprios, essas armações de ideias que nos mantêm o corpo levantado e que todos os dias nos pedem contas, mesmo quando nos negamos a prestá-las.” Há uma agónica amargura neste balanço da “armação de ideias”. Não escrevendo as memórias, Cunhal negou-se “a prestar contas”. Cabe, por isso, a Saramago a missão de evocar a grandeza da Ideia comunista e lavrar em acta a sua decadência.
Já antes, em vida de Cunhal, Saramago terá discordado dele algumas vezes, interpretando a História de forma diferente. Pouco importa, dizia Saramago na crónica: “A esta distância, porém, já tudo parece esfumar-se, até as razões com que, sem resultados que se vissem, nos pretendíamos convencer um ao outro. O mundo seguiu o seu caminho e deixou-nos para trás.” Nem as razões de Cunhal, nem as razões de Saramago prevaleceram. O comunismo falhou e a História seguiu (ou já seguira, sem que os dois o tenham pressentido) um caminho diferente. Encontrando-se ou não com a História, Saramago reconhece a inutilidade da caminhada e o fim do comunismo.
Desde meados dos anos 40 (antes, em casos mais lúcidos) que muitos homens e mulheres, anónimos ou de intenso brilho intelectual, abandonaram o comunismo. Não há heroísmo, hoje, no abandono dessa carruagem decrépita. Não há sequer, no século XXI, a desculpa da ilusão ou da utopia. Demasiado tarde. O que não torna menos feroz e brutal o acto pessoal de despedida da ideologia, essa ruptura individual de quem “carbonizou” uma vida inteira na devoção de um sol de cinzas frias.
De Ermler, Velikyi Perelom, Grande Prémio de Realização, em Cannes, 1946
À cidade podemos chamar-lhe o que quisermos, São Petersburgo, Petrogrado ou Leninegrado. Mas à pistola que, com arrojo e estrondo, Fridrikh Ermler atirou para cima da secretária nunca quereremos chamar-lhe senão uma Browning.
Antes de se chamar Ermler, já Vladimir Markovich Breslav agarrara nos seus 17 anos e viera da tundra russa para Moscovo. Queria ser uma estrela. Queria ser actor nesse cinema que, em 1915 dava, mudo, os primeiros passos. Teria pouco mais ou pouco menos do que a 4.ª classe e esbarrou nas portas snobes das artes. Não teve escolha que não fosse a de mudar de nome para Fridrikh Ermler e, patrioticamente, ir trabalhar de espião nos territórios russos que as tropas alemãs ocupavam na I Grande Guerra em curso. Descobriu uma vocação, e espião ou polícia continuaria, integrando a Tcheka, a assassina polícia política que a Revolução de Outubro, mal nasceu, logo criou.
Ermler era um tchekista convicto. Acreditava firmemente estar do lado do bem. Com a mesma firmeza, acreditava que o seu destino era o cinema. Em 1923, em Leninegrado, voltou a bater às portas das Artes, já a Revolução ia a caminho da consolidação, depois de Lenine e Trotski afogarem num mar de sangue a rebelião dos marinheiros de Cronstadt. No Instituto de Artes Cinematográficas olharam para as habilitações de Ermler e nem lhe quiseram dar a ficha de inscrição. Meteu então a mão ao bolso, sacou a persuasiva Browning e bateu com ela em cima da secretária, dizendo alto e bom som: “Aqui está a minha ficha de inscrição!” Não me admira que a direcção do Instituto o tenha aceitado: eu faria o mesmo, com vénia à teatralidade do gesto. E diga-se, Ermler pode ter-se enganado ao pensar que estando do lado da Tcheka estava do lado do bem. Mas não se enganou na sua vocação cinematográfica. Há dois anos, convidado pela Cinemateca, o especialista russo Peter Bagrov veio explicar a Lisboa que Ermler é um dos expoentes do cinema soviético, ao lado de Eisenstein ou Vertov. Cineastas clássicos como Chaplin ou Pabst prestaram-lhe homenagem suficiente para pensarmos que a sua obra não se reduz à suspeita hagiografia do regime, que os quatro prémios Estaline pareceriam indiciar.
Deixo um aviso revolucionário: a veemente Browning de Ermler, que ele não deixaria de usar em algumas filmagens como argumento de direcção artística com actores mais renitentes ou insubordinados, está longe de ser um episódio isolado na história do cinema russo do período épico da revolução de Outubro.
Vejamos, a Tcheka teve uma considerável influência nas artes soviéticas, da literatura ao cinema. Félix Dzerjinski, que foi, a pedido de Lenine, a alma mater da polícia política, era um espírito requintado, polaco-lituânio de origens aristocráticas, católico antes de ser comunista, místico antes de ser revolucionário, fluente em polaco, iídiche, russo e latim. Implacável no comando do Terror Vermelho, ao ponto de afirmar de si mesmo “Derramei tanto sangue humano, que já não mereço viver”, Dzerjinski quis revestir o terror policial com uma estética que o redimisse. Em vez de esconder a repressão e o gulag, Dzerjinski quis mostrá-los controlando rigorosamente a forma como seriam vistos. Se e quando Estaline veio chamar aos artistas revolucionários “engenheiros da alma humana”, foi porque a tanto o inspirou a praxis (oh, as saudades que tinha desta velha palavra!) da Tcheka e, em particular, de Dzerjinski, que foi, ao sair da Tcheka, o presidente da Sociedade dos Amigos do Cinema Soviético, organismo que deveria destruir o fosso entre os filmes, os cineastas eo público russo.
Há um tardio exemplo literário, multimédia avant la lettre, de 1933. É um livro de vários escritores sobre a construção do Canal Belomor, que ligou o Mar Branco ao Báltico. O livro inclui a prosa de Maximo Gorki e as fotografias de Aleksander Rodchenko, para mencionar só os mais notáveis artistas. A construção desse canal usou o trabalho forçado dos prisioneiros do gulag e a representação pública, em documentário, desenhos, fotografias, foi co-editada, na parte literária, por Gorki e pelo comandante da polícia política no campo de concentração, Semen Firin.
O campo e o trabalho forçado são literária e artisticamente redefinidos como uma epopeia reeducativa, em que os inimigos de classe e os criminosos reencontram uma função social e se redimem do mal. O genial fotógrafo Rodchenko, sinceramente esmagado pelo gigantismo do empreendimento, afirmou: “Fiquei em estado de choque com a sensibilidade e sabedoria que são usadas para reeducar o povo.” O livro foi, claro, um enorme êxito popular e um enorme êxito da Tcheka.
Arrebatador, porém, foi o êxito do primeiro filme sonoro soviético, de 1931, um projecto nado e criado intestinamente na e pela polícia secreta. Putyovka v zhizn, a que em português chamaremos “O Caminho da Vida”, foi o acabado exemplo de utilização do cinema, “a mais importante de todas as artes”, como arma ideológica. A acção tem lugar numa colónia de trabalho juvenil e os actores, na sua maioria, são os jovens presos autênticos, em regime de reeducação pelo trabalho.
Começamos por ver os miúdos integrados em gangs, na cidade, até serem presos pela Tcheka e, luminosamente, os agentes da Tcheka conceberem um campo de reeducação, para o quem usam uma igreja e mosteiro já desactivados. Realizado por Nikolai Ekk, que estudou com Meyerhold e foi assistente de Eisenstein, para referir dois expoentes da vanguarda do teatro e cinema russos, o filme combina duas colheres de melodrama e uma navalha manipulativa de narrativa conservadora, com algumas cenas de delirante e inovadora mise-en-scène, que confirmam as origens artísticas de Ekk.
Projectado no Festival de Veneza de 1932, o filme teve um prémio do público, e deram a Ekk o prémio da realização mais convincente. A polícia política, que Dzerjinski fundara, via, assim, reconhecida artisticamente a sua estratégia de apresentação pública do gulag. E o público russo, ao contrário do que fazia com o experimentalismo formal de Eisenstein ou Dziga Vertov, encheu as salas, transformando “O Caminho da Vida” no maior êxito que o cinema soviético conheceu até essa altura. O filme termina com uma declamada santificação de Félix Dzerjinski,uma voz a chamar-lhe “o melhor amigo das crianças”, um busto dele em fundo.
Hoje, o jornal i publica uma longa entrevista comigo. Está aqui, disponível na rede. O pretexto foi a publicação do meu Pequeno Livro dos Grandes Insultos. A um dado momento, o entrevistador trouxe o meu passado angolano à baila. E eu confessei-me:
Gostava de ter ficado em Angola? Na altura podia ter tido a nacionalidade angolana, mas aconteceu que eu era um jovem maoista e entrei muito rapidamente em choque com o MPLA, que apoiava, ao qual pertenci mesmo, no Lobito, nos anos de confronto com a UNITA. Mas quando chegou a independência já as minhas relações com o MPLA eram de grande distância, para não dizer de fortíssima oposição. Opúnhamo-nos a todos os outros, mas também ao MPLA.
Porquê? Tem a ver com opções políticas e, para mim, a percepção, que se tornou evidente, do autoritarismo e da emergência de uma ditadura. Daí o abandono do maoismo muito rapidamente, também. A percepção de que éramos profundamente autoritários e capazes de gerar monstros, tive-a cedo na vida. Aquilo que aconteceu no Camboja não aconteceu por acaso, os jovens idealistas convertem-se rapidamente em gente perigosa se não houver antídotos. E do que me apercebi aos 20 anos foi que o que vinha era tão mau ou pior do que o que tinha vivido antes e recusara, a ditadura salazarista. Nunca mais voltei a pertencer a um partido político nem a fazer vida política porque a minha descrença tornou-se muito forte e, sobretudo, a descrença em mim próprio por ter apoiado e pensado que aquilo que defendia era uma solução.
Quero sublinhar o trabalho do jornalista António Rodrigues, a quem agradeço o rigor da pesquisa e a fidelidade à conversa.
O Mein Kampf é um livro de ódio. Agora, com a florescência dos populismos percebêmo-lo melhor ainda, o Mein Kampfé um livro a ler e debater. Proibi-lo, como se fez durante décadas, é criar-lhe uma aura que o livro não merece, e que uma análise atenta logo desvanece.
Publiquei o livro na Guerra e Paz editores, vai fazer três anos. E entendi contextualizá-lo, fazendo-o preceder de um texto a que dei o título auto-explicativo de Ascensão, Poder e Crime do nazismo, juntando a esse texto abundante material fotográfico da violência e genocídio desses anos 30 e 40. O livro constitui um dos grandes êxitos editoriais da Guerra e Paz. Deixo aqui um breve excerto desse meu texto.
Hitler alimentava a sua ideologia racial com alguns pós pilhados ao darwinismo, com generosas doses de eugenismo, racismo científico, que era então o ar do tempo, e um caldeirão esotérico e místico. Na sua prática, o nazismo foi uma ideologia de um ateísmo nimbado a um patético paganismo. Decididamente, uma ideologia anti-cristã, que o triunfo da vontade e a exigência de se se incarnar um vagamente darwinista papel do mais forte não contemplavam a baixeza do amor ao próximo.
O Nacional-Socialismo é, nalguns dos seus traços ideológicos, uma caricatura do marxismo que, talvez por filosófico complexo de inferioridade, odeia e combate. Alemão, como o marxismo, o nazismo sabe que é filosoficamente mais burro, que escreve pior a língua alemã, que nem afastadíssimo primo é do melhor que a filosofia alemã legou ao mundo. O nazismo é também, como o marxismo, anti-capitalista. Recorde-se que o partido nazi, NSDA, se chamava Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Ao marxismo, o nazismo copiou a base operária. Ataca, como o seu rival vermelho, a ideia de propriedade, mostrando a sua irrelevância face ao papel patriarcal que o Estado passa a assumir na sociedade homogeneizada que o colectivismo nazi vai utopicamente engendrar. Numa transformação alquímica, Adolf Hitler converte a luta de classes de Marx numa luta de raças. A destruição do judeu é o propósito final dessa luta – pelo caminho liquidar-se-iam os comunistas, extinguir-se-ia a democracia e os partidos, punha-se um freio estatal à economia de mercado.
Pode dizer-se que o motor do nazismo foi o ódio: ao judeu, ao comunismo, à democracia parlamentar e ao liberalismo económico. Foi, foi sim. Mas, tanto como o ódio, o motor do nazismo foi Adolf Hitler.
O judeu
Para Adolf Hitler, o judeu acolhe e é a fonte de todos os males do Mundo e do Tempo. Historicamente, para Hitler, o Tratado de Versalhes, que humilhava e agrilhoava o Povo Alemão, fora o resultado de uma conspiração do judaísmo internacional, dos banqueiros judeus, fossem eles ingleses ou franceses.
O judeu era, portanto, responsável pelo capitalismo e pela secreta conspiração da alta finança. Era o judeu que espalhava a ideologia materialista que induzia à ganância um povo cuja virtude era a temperança.
Mas era também o judeu que espalhava a ideologia comunista, a ideologia criadora da dupla ameaça bolchevista, ameaça interna e subjacente da República de Weimar, ameaça externa com o crescimento do comunismo soviético.
O judeu era agiota, banqueiro, comunista. Mas era também, no ideário nazi, um ser física e moralmente sujo, um bacilo, um piolho. Incapaz de se ligar à nação, o judeu era a faca sempre apontada às costas do patriota alemão. Se era rico, explorava o povo. Se era intelectual, era o agitador subversivo que trouxera ao povo alemão a desgraça que era a República de Weimar, a intragável democracia parlamentar. A pureza ariana tinha de ser protegida do judeu – o judeu era o violador de que a donzela ariana tinha de ser escondida. O odiado Eterno Judeu era responsável pela sífilis e pelo comunismo, pela imprensa e pelo capitalismo
O judeu não podia ser cidadão. Privado de todos os direitos, o judeu devia, numa visão benigna, ser expulso da pátria alemã. Numa solução ideal, deveria ser erradicado da face da Terra.
A patologia de Hitler tinha proporções homéricas: um dia soube que a mulher de um seu general fizera, na juventude, fotografias pornográficas. O autor das fotos fora um fotógrafo judeu. Ora, Hitler tinha sido padrinho do casamento e beijara a mão a essa mulher. Quando soube, horrorizado com a lembrança dos beijos dados na pele de uma mulher que estivera nua com um fotógrafo judeu, Hitler tomou, nesse dia, sete banhos sucessivos. Ter-se-á esfregado com pedra-pomes?