Lord Jim

3D Book Lord Jim_deitado

Este texto foi escrito antes de ser eu o editor de “Lord Jim”, na Guerra e Paz. A minha edição, que tem esta bela capa do Ilídio Vasco, foi traduzida com brilho por João Moita, que é, agora, também, meu autor. Com excepção da primeira citação, e pelas explicativas razões que já vão ler, todas as citações foram roubadas à tradução de João Moita.

Não sei se gostava mais de o ter conhecido antes, depois ou, inteiro, agora. Antes, depois ou agora, para todos os efeitos Lord Jim nasceu em short story, fez-se por episódios em folhetim. Hoje, inteiro e em livro, é uma lenda. Num dia de ócio tive a pretensão de me apropriar dele pondo as minhas palavras portuguesas em cima das inglesas que são o sangue dele. A ousadia caiu desamparada ao fim do segundo parágrafo:

Tinha um metro e noventa, dois ou três centímetros menos, físico imponente, e caminhava direito a nós com balanço ligeiro dos ombros, cabeça para a frente, e um olhar fixo, de baixo para cima, que nos fazia pensar na investida de um touro. A sua voz era funda, sonora, e os modos testemunhavam uma espécie de persistente auto-afirmação que nada tinha de agressiva. Parecia uma necessidade, e era aparentemente dirigida tanto a ele mesmo como a qualquer outra pessoa. Era de uma limpeza sem mancha, trajando num branco imaculado, do chapéu aos sapatos, e era muito popular nos vários portos do Oriente onde ganhava a vida como encarregado de armazéns de provisão de navios.

Um encarregado de armazém não tem de fazer exame em parte nenhuma do mundo, mas deve ter Talento em abstracto e demonstrá-lo na prática. O seu trabalho consistia em bater em corrida, à vela, a vapor ou a remos, os outros encarregados na abordagem de qualquer navio prestes a ancorar, acenando vigorosamente ao seu capitão, forçando-o aceitar um cartão – o cartão de visita do armazenista – e, na sua primeira visita a terra, guiá-lo com firmeza, mas de forma não ostensiva, a um vasta loja, semelhante a uma caverna, cheia das coisas que se comem e bebem a bordo de um navio…”

Fascina essa imagem imaculada, de touro branco. E logo, nessa descrição de Joseph Conrad, que é de Lord Jim o cronista, adivinhamos uma mancha.  O chapéu branco, o alvo linho do casaco e das calças escondem, de irrepreensíveis, um passado. Disse “escondem” e arrependo-me. O linear significado do verbo não faz justiça à complexidade da personagem. O traje imaculado desperta a nossa curiosidade exigindo a procura dum passado que não se esconde, mas também não se revela gratuitamente.

Jim, após um treino de dois anos, embarcou para ser marinheiro. E o seu “ser marinheiro” fazia-o, cumpria-o, com um “um amor sincero”. Convalescente num porto do Oriente, a seguir a um pequeno acidente, embarca como imediato no Patna, um navio decadente, propriedade de um chinês ganancioso e fretado por um árabe para transportar 800 peregrinos muçulmanos a Meca. Começou a viagem: “Uma quietude maravilhosa impregnava o mundo, e as estrelas, juntamente com a serenidade dos seus raios, pareciam derramar sobre a Terra a certeza de uma segurança perpétua.” Na verdade, o universo limitava-se a reflectir a luz, a paz e a segurança de Jim. A outra verdade é que a harmonia do universo é sempre precária: a casca de noz podre que era o Patna sofreu, numa das noites, um brutal tremor, como se lhe tivessem dado uma pancada seca. Ao mesmo tempo, vindo do fundo das águas, rugiu surdo um trovão longínquo e arrepiante. Do embate o carunchoso Patna saiu maltratado, um rombo abaixo da linha de água, e inundação fatal como Jim verificou ao abrir a escotilha do pique de vante. O barco afundar-se-ia em minutos, salva-vidas haveria para menos de metade dos peregrinos que dormiam pacificamente, ignorando o que passava. Não sabiam, mas estavam já mortos. Todos. Não havia tempo e ninguém os poderia salvar – nada os poderia salvar, nem um milagre.

Quando subiu à ponte e o capitão lhe pediu silêncio, Jim sabia ao pormenor, ínfimo, o horror que ia acontecer. E que nada podia fazer. Nem por si. Resignou-se à morte: “Julguei que ia asfixiar antes de me afundar.” Não se impressionou, conhecia os seus deveres. Cumpriria o que tinha a cumprir com amor sincero.

Não era o que o capitão se preparava para fazer. Tão silencioso quanto possível fez descer um dos salva-vidas. Ele e os outros miseráveis tripulantes iam desertar, entregando os peregrinos ao sorvo do oceano e ao nocturno abraço da morte. Na direcção da ré, Jim viu os sinais de uma negra tempestade, do salva-vidas farrapos dos gritos dos outros: “Salte, George! Nós apanhamo-lo! Salte!’ ” Os claros olhos azuis de Jim viram uma vez mais o barco perdido, só uma precária chapa na proa sustendo ainda o afundamento inevitável, a raiva silenciosa do mar, as águas escuríssimas, a chuva a começar a varrer o convés. Segundos depois, Jim sentiu o seu corpo no ar, olhos cerrados até tombar sobre outro corpo no abjecto salva-vidas.

Acabava de se salvar, acabava de se perder. Desejou morrer logo ali: “ Era como se me tivesse atirado para dentro de um poço – para dentro de um buraco sem fundo…

Como não sei se conhecem a história, não quero estragar-vos a leitura Mas foi assim que, no final do século XIX, nasceu Jim, numa short story de culpa e desonra, ainda mais brutalmente exposta pelo salvamento do Patna e dos oitocentos peregrinos perpetrada pela ínvia mão do Omnipotente. Se a história tivesse terminado aqui, Jim teria sido consumido em fogo lento pelas chamas rubras do inferno. Só que Joseph Conrad, instado pelo editor da Maga, a Blackwood’s Magazine, decidiu seguir Jim e o terrível peso da honra perdida.

Em treze números da Maga, o escritor polaco escolheu inverter a narrativa bíblica. Por uma indecidível culpa – ainda hoje estou para saber se por mimética sede do conhecimento divino se por, em Eva, ter entrevisto, mais abaixo, lábios tão beijáveis como beijáveis eram os que acima já conhecia – Adão foi expulso do Paraíso. Na narrativa conradiana, se nalgum lugar, é no Paraíso que Jim pode talvez redimir-se do peso de culpa pior do que a herdade de Adão.

Marlow, o alter ego de Conrad, conduz Jim a Patusan, uma ilha remota onde o fará descobrir lábios, outra Eva e algumas indonésias bem aventuranças de Jardim Celeste. Tudo cercado pelo terrestre rumor da culpa e da indelével memória da fraqueza original e da ignomínia que a acompanha.

Lord Jim fica bem nesta Página Negra. Podemos beber com ele uma cerveja, uma água mineral que refresque a garganta e lhe permita, noite dentro, contar-nos, como contou a Marlow e Marlow a Conrad, a aventura de Patusan e de como, da abjecção, se ergueu a Tuan, Lord, Senhor de um romântico paraíso.

Lord Jim CAPA_

Prazer proibido

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Há rios de champanhe na vida de Orson Welles. E eu devia ter escrito “champagne”, sem cedências ortográficas, com o mesmo imperativo com que Welles o exigia estupidamente gelado, quando, confessando-se a Deus, disse: “Há três coisas intoleráveis na vida, café frio, champanhe morno e mulheres sobrexcitadas.”

Hoje, uma horda de homens e mulheres sobreexcitados pisa e seca o rio de champanhe de Orson Welles. Arrebatados por um ardor evangélico, de tipo apeado e vegetal, os novos hunos estão possessos do espírito de um Savonarola, prontos a queimar hereges na praça pública.

Queimariam já, em apocalipse e fúria, o anafado Hitchcock, hedonista epidérmico, que exigia à produção dos seus filmes que vestisse as actrizes com a roupinha interior sumptuosamente cara. Reparem, os filmes de Hitchcock eram inexibicionistas, de um pudor que tomariam certas alas do Vaticano.

“Mas, Alfred, ninguém vai ver o raio do sutiã”, gemia o produtor. E logo o pérfido inglês explicava: “Ninguém vê, mas a actriz sente.” Vestia-as de La Perla, digo eu, sutiãs e cuequinhas de seda, um debruado finíssimo fio de ouro, um recôndito diamante. Nos filmes que fizeram com ele, Grace Kelly, Kim Novak, Eva Marie-Saint ou Tippi Heddren provocam ao espectador inomináveis sensações que o espectador sente, sem saber que só as sente pelo que verdadeira e não fingidamente a pele das actrizes sentia.

Hitchcock é o cineasta anti-pessoano por excelência, o que talvez fosse o começo de um belo parágrafo se fosse disso que eu quisesse falar. Não quero. Quero é vingar o hedonismo ofendido. Quero vingar o gosto dos prazeres de boca que se via num Mário Soares ou num François Miterrand, num Ernest Hemingway, nos fálicos havanos que as bocas, não obstante comunistas, de Fidel de Castro ou do mítico Che Guevara chupavam impudicas.

Cantemos a empada de perdiz, a delícia do foie-gras fumado, a lebre com trufas, o húmido e vermelhíssimo tártaro, a delicadeza do cozido à portuguesa, a graça rural da feijoada à transmontana, a fina subtileza de umas iscas, o queijo… e peço perdão, pluralizando penitente, os queijos da Serra e de Serpa, amanteigados ou curados, o Comté, que as vacas francesas Simmental nos prodigalizam, o Brie de Meaux.

Olhos vegan espreitam-nos a cada esquina, tremendas máquinas de olfacto perseguem o aroma de um Partagas série D n.º 4, príncipe dos havanos. São olhos vigilantes: perseguem cada garfada, cada copo ou cálice. Trocaram a velha treta da exploração do homem pelo homem, pela marcação homem a homem. Há um exército de conspícuos e virtuosos especialistas prontos a proibir, prontos a culpar-nos pela boca, narinas, palavras, desejos e mesmo omissões. Estão prontos a pendurar o último hedonista, pela língua, nos pelourinhos da Imprensa e das redes sociais. Em ataque às gorduras, molhos, carnes, aos vinhos que o poeta persa cantou, ouçam essas vozes mansas, todas derretidas em inflexões angélicas, a culparem-nos, prometendo-nos estágios num purgatório de onde só se sai para o inferno. Impele-as o terrorismo de um bárbaro bem-estar.

A darmos ouvidos, melhor será dar ouvidos ao passado. Mesmo o naturalíssimo bom selvagem que talvez houvesse em Rousseau nos avisou: “Sempre notei que as pessoas falsas são sóbrias e a grande reserva à mesa anuncia muitas vezes virtudes fingidas e almas dúplices.” Uma variada mesa à sua frente e nela a estética natureza morta de vinhos, peixe e carne, outro filósofo, um deliciado Voltaire, põe-me estas palavras na boca: “Escolhi ser feliz, porque é bom para a saúde.”

Publicado na minha coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

A culpa não é dos outros

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Hoje, o jornal i publica uma longa entrevista comigo. Está aqui, disponível na rede. O pretexto foi a publicação do meu Pequeno Livro dos Grandes Insultos. A um dado momento, o entrevistador trouxe o meu passado angolano à baila. E eu confessei-me:

Gostava de ter ficado em Angola?
Na altura podia ter tido a nacionalidade angolana, mas aconteceu que eu era um jovem maoista e entrei muito rapidamente em choque com o MPLA, que apoiava, ao qual pertenci mesmo, no Lobito, nos anos de confronto com a UNITA. Mas quando chegou a independência já as minhas relações com o MPLA eram de grande distância, para não dizer de fortíssima oposição. Opúnhamo-nos a todos os outros, mas também ao MPLA.

Porquê?
Tem a ver com opções políticas e, para mim, a percepção, que se tornou evidente, do autoritarismo e da emergência de uma ditadura. Daí o abandono do maoismo muito rapidamente, também. A percepção de que éramos profundamente autoritários e capazes de gerar monstros, tive-a cedo na vida. Aquilo que aconteceu no Camboja não aconteceu por acaso, os jovens idealistas convertem-se rapidamente em gente perigosa se não houver antídotos. E do que me apercebi aos 20 anos foi que o que vinha era tão mau ou pior do que o que tinha vivido antes e recusara, a ditadura salazarista. Nunca mais voltei a pertencer a um partido político nem a fazer vida política porque a minha descrença tornou-se muito forte e, sobretudo, a descrença em mim próprio por ter apoiado e pensado que aquilo que defendia era uma solução.

Quero sublinhar o trabalho do jornalista António Rodrigues, a quem agradeço o rigor da pesquisa e a fidelidade à conversa.