O erotismo é um livro

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É um dos meus ídolos da idade de homem. Já aqui falei de outro, Michel Leiris, com quem andou de braço dado. Este, Georges Bataille, um só livro dele, foi uma das minhas ferozes alegrias entre os menos de vinte e os meus primeiros vinte anos. Mas julgo não mentir se disser que, ao contrário do que aconteceu com o feiíssimo Leiris, nunca tive a curiosidade de ver sequer uma fotografia dele. Era, achava eu, um místico e os místicos não têm rosto, apenas um véu de êxtase e luz.

Sabemos como a vida está feita de pequenos equívocos, Bataille também não lhes escapou: tomaram por pura pornografia o seu romance “A História do Olho” cuja carga metafórica, do ovo ao testículo, do olho ao sol, era sem dúvida transgressiva, mas nimbada de uma emoção filosófica que põe uma líquida nota na noite mais seca. Também não escapou, por outras razões, e por obra mais tardia, a acusações de necrofilia. Passo, “Ma Mére”, romance em que uma mãe inicia o filho no vício e na luxúria.

Se me fosse dado escolher, unilateral e injusto, esqueceria tudo, essas obras e as polémicas que despertaram, preferindo que ele tivesse sido o autor de um só livro, O Erotismo. O livro em que todos os outros livros dele se lêem. Nesse ensaio, Bataille funde erotismo e sagrado*, de uma forma que me estragou a possibilidade de ver o sexo da forma rasteira que era regra usar à saída do liceu ou no primeiro emprego, medido em metáforas gastronómicas, centímetros e progressão aritmética. O Erotismo empresta ao momento de encontro de dois corpos distintos e “estranhos” uma violência rara, a da fusão que pressupõe a morte e, pela morte, a continuidade. O Erotismo fixa também a necessidade do interdito e o fascínio da sua violação.

Cada um tira de um livro o que quer ou o que pode. O que dele tirei, na tradução de um João Bénard da Costa que então não fazia a mais pequena ideia de quem fosse, foi o reconhecimento de uma poética suja, de saliva e sémen, de uma comunicação extrema, obscena, onde tudo se roça, o que às vezes roça o escatológico.

Não sei se por estas ou outras palavras, Bataille terá dito que a transgressão é a única maneira de aceder à “jouissance”. Leiris e Klossowski foram irmãos de armas nesta aventura que Sade iniciara dois séculos antes. Há dias, no passado 10 de Setembro, fez 122 anos que Bataille nasceu para essa contraditória experiência de interdito e transgressão (quanto mais tabu, tanto mais deleite) que é a vida nossa de cada dia.

* Um sagrado sem Deus, às vezes excrementício, de rompimento do eu. É complicado? É, mas o que é que se há-de fazer!

L'erotismo

Call center

central phone

“Olá, fala a Marta…” A frase foi popular, mas só a repito porque –  fez em Setembro 141 anos — aconteceu uma pequena revolução. O Boston Telephon Dispatch, sob a asa do senhor Bell, que, ouvi dizer, é um discutível inventor do telefone, foi o primeiro operador a criar uma central telefónica. Eram rapazes que se ocupavam de tudo, do telégrafo e dos telefones. Mas se no telégrafo eram ágeis e imbatíveis, ao telefone mostravam-se irritadiços, sempre prontos a praguejar, já para não falar na tentação de mandar para o Bujumbura quem só queria ir até Luanda.

Tocou uma campainha na cabeça do senhor Bell e ele revolucionou: entrevistou e contratou Emma Nutt, fazendo dela a primeira telefonista do mundo. A voz de Emma, suave,  a sua paciência, uma prodigiosa memória que lhe permitia saber de cor todos os números do directório de Boston, ditaram o futuro: o triunfo das telefonistas, a maravilhosa associação do telefone à voz feminina. O telefone é uma mulher: é por isso que é fácil falar com ele, dar-lhe beijinhos, prometer-lhe ternuras e, claro, mentir-lhe com um bocadinho de vergonha.

Tout, rien du tout

As mulheres são diferentes dos homens por quererem tudo. Tout. O que, claro, a qualquer homem parece logo rien du tout. Traduzindo, e nem é preciso ser para esperanto, os homens querem ontologicamente a mesma coisa: só que para os homens qualquer coisa, a mais pequenina coisa, é já tudo. O homem é holográfico: basta-lhe a fina abertura do decote e fica logo na veemente excitação de quem já viu a eternidade – um nimbado mamilo e, valha-nos Deus, os sonhos de toda a corte celestial!

Mas querem os dois, masculinos e femininos, a mesma coisa – os homens a mais pequena partícula, que acarinham como se fosse tudo, porque é tudo; as mulheres querem tudo com medo que o tudo seja menos do que a soma das mais pequeninas partes.

Vamos lá ser pedagógicos e ouvir cada um — uma mulher, um homem – pedir a mesma coisa. Vão ouvir que cada um, pedindo o mesmo, pede coisas diferentes.

Ladies first, claro, com mil perdões pelo execrável visual do vídeo – não vejam, ouçam só:

Ouviram? Claro que é lindo. Mas perceberam o artifício, a pose, o subtil prazer de tirar mais dor da contemplação da dor do que da própria dor? Ouçam lá agora um homem a querer a mesma coisa:

Claro que já viram a diferença. Até lhe custa começar, de tão fundo vem a voz. Rouca de emoção pela coisa que se quer. Nenhum cuidado com a expressão, toda a atenção vai direitinha para o coração um bocadinho partido da silly girl – ó, a forma como o rapaz aconchega a silly girl entre a língua e o céu da boca!

 A canção foi composta por Tom Waits para um dos meus filmes de culto, o One From the Heart, de Francis Coppola. Infelizmente, não consegui encontrar o momento mais comovente do filme, quando a personagem de Frederic Forrest, que não sabe cantar, do que a namorada sempre se queixava, canta o You’re my sunshine no aeroporto para que ela, arrebatada por um cantor, pianista, bailarino (tudo!), não o deixe.

O mundo que os meus olhos vêem

Podemos recriar a natureza? É pelos ramos de uma árvore ou pelo geométrico périplo de um corrimão que chegaremos à eternidade?

Escadas

Trazemos a pré-história, o metafísico traço de Lascaux para dentro de casa. Sentamo-nos em arabescos da foz do côa, no hálito do presente o ilusório reflexo de uma arte perdida. Como se o presente fosse uma litografia.

Cadeira

Que rubra nitidez vem escandalizar a doçura dos véus, a difusa luz translúcida?

Candeeiro

Três fotografias domésticas de Manuel S. Fonseca. Tentativa de uma nova arte, a arte de telemóvel.

 

As mulheres, os homens

As mulheres. Falemos então de “as mulheres”. São seres alados, bem sei, mas o que nelas nos tortura é a dúvida. Negam. Bem podem os sentidos delas dizer o contrário. Negam na mesma. O beijo que lhes pomos na boca, os nossos dedos a apertar-lhes onde a carne é macia, soube-lhes melhor que framboesas. Negam. Podia insistir. Não insisto, Kate Winslet é que confessa. A cantar.

Os homens. Falemos então de “os homens”. Seres de coração puro, líricos. Seres sofridos, tanto faz que seja a cappela ou com orquestra e coro. A violência dos trabalhos, a áspera barba, o grosseiro fato de macaco: tudo fragilidades quando se arranha a superfície. Movem-se como ursos: bailarinos inconfessados e insuspeitos. Mesmo num triciclo onde pedalam a sua inocência é já para o amor que pedalam porque é muito só o homem sem amor. Mesmo ou se canta e dança como James Gandolfini.

Os extractos são do peculiar “Romances and Cigarettes” realizado por bizarro John Turturro.

Humphrey Bogart

Bogart

Na Broadway, já ganhava 500 dólares por semana, e bastara-lhe a experiência de um filme para se desiludir de Hollywood. Tinha 35 anos e preparava-se para se resignar a uma existência sombria.

Humphrey DeForest Bogart nascera a 23 de Janeiro de 1899, embora o departamento de publicidade da Warner o dê, congeminando subtil variação, como nascido no dia de Natal. Um menino Jesus noir.

Numa tarde de Outono, estava 1934 a chegar ao fim, preparando-se para protagonizar a peça “The Petrified Forrest”, de Robert E. Sherwood, o actor Leslie Howard convidou-o para ser seu parceiro e fazer o papel de Duke Mantee, “a foul mouthed vicious killer”. Bogie aceitou e, deu-se o grande salto, trampolim para outras famas. A peça foi um êxito e a Warner quis fazer o filme. Howard aceitou com a condição de que Bogart fosse com ele e voltasse a ser, como na peça, um Duke Mantee que, como diz Jorge Luis Borges que viu o filme, era um “gangster fatigado, resignado a matar (e a fazer-se matar) como os outros a morrer”. É muito provável que Bogart nunca tenha lido esta tão exacta definição, mas mesmo assim caprichou em não fazer outra coisa que não fosse dar-lhe razão.

Ainda assim, Hollywood não se convenceu logo. Os thirties eram o tempo de heróis à Gary Cooper, um “gentle giant” que sumarizava a inocência da América, galante e obstinado a lutar pela Boa Causa. E depois, como era belo. Até o insuspeito Hemingway lhe caiu nos braços: “the most beautiful man I ever met!”. A beleza de Cooper submergiu a década, o seu “play natural” também. Era uma água cristalina e Bogart era homem para beber tudo menos água.

A década seguinte, quando a Guerra, modelo WW II, lhes caiu na cabeça como um tijolo, mudou os americanos. Os novos heróis de Hollywood queriam-se “rough, tough and ready for anything” à maneira de Clark Gable. Bogart pensou duas vezes antes de ir a jogo. “Rough and tough” era como ele, mas porque raio é que haveria Bogart de estar “ready for anything”?

Quem melhor compreendeu Bogart, foi uma mulher que nunca foi mulher dele (falo menos em termos bíblicos que nisso não me meto, mas nos termos notariais que dão direito a pensão alimentar). Lulu, a lendária Louise Brooks, percebeu-o da cabeça aos pés e nada faz um homem mais feliz do que ver a nossa idiossincrasia apanhada por um possessivo raio xis do olhar feminino.

Lulu viu logo que ser actor cansava Bogart – o homem não tinha energia para actividade tão extenuante. Pensou ela: ou desistes ou fazes da debilidade o teu trunfo. Valeram-lhe os ingleses que tinham vindo representar Chekov e Shaw na Broadway. Trouxeram um estilo que rompeu com o “more a fight than a play” dos yankees. E Bogart, nesse “new and quiet and subtle style of acting – a prose style” sentiu-se como peixe no mar, o cherne de Louise Brooks.

Hollywood demorou 34 filmes até aceitar a verdade de Miss Brooks. Matara Bogart a tiro em 12 filmes, electrocutou-o ou enforcou-o noutros 8, condenara-o a prisão perpétua em 9. O ponto mais disgusting da sua carreira foi uma coisa chamada “The Amazing Dr. Clitterhouse” a que, mais por raivosa vingança do que por ironia, chama “The Amazing Dr. Clitoris”.

Mas, de repente, fez-se luz. Uma série de mudanças tecnológicas que não vêm ao caso, permitiram criar a atmosfera visual do que hoje chamamos film noir – sombras muito longas, rostos obscurecidos, formas enigmáticas num espaço recortado por fitas de luz. E isso, que antes não imprimia, passou a imprimir. Em filmes de Raoul Walsh (High Sierra e They Drive by Night), John Huston (Maltese Falcon) e Michael Curtiz (Casablanca), Bogart aparece como uma Nossa Senhora dos Aflitos, filmado, pelo menos em três deles, pela mestria de Arthur Edeson, um dos directores de fotografia que foi expoente do estilo. Em Maltese Falcon a mão prodigiosa de Edeson está por todo o lado, nos ângulos baixos de câmara, nos planos nocturnos sinistros e ameaçadores, como em Casablanca está na densa bruma que inventou no plateau para fazer o exquisite recuo de câmara quando Bogart e Claude Rains caminham para o começo de “beautiful friendship” deles. Nesses planos, assim iluminada, via-se finalmente o que a adorável Miss Brooks chamava “the face of St. Bogart”.

Um rosto e um olhar vazio. O “blank look” era, é outro dito de Lulu, a chave do magnetismo sexual de Bogart: “devassa-nos, dá nome mesmo à mágoa”, escreveu o poeta Ruy Belo.

Trabalho e whisky, sem sono e comida parecem ter sido os ingredientes da receita de Bogart contra a inércia. O efeito, naqueles anos de cepticismo e desilusão, foi portentoso: um rosto velho, místico e petrificado que inaugurou o niilismo como forma de representação.

O resto são filmes e histórias, Faulkner, Hawks e Bacall que Bogart, St. Bogart, agora nos contará pessoalmente no recato desse cemitério a que chamamos memória.

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Adaptação de texto que escrevi em 1985, para ciclo da Cinemateca Portuguesa sobre Bogart.

Vão-se lá fender

Les Baigneuses
A dulcíssima indolência da carne

Ninguém voltará a pintar a mulher nua. A dulcíssima indolência carnal das “Banhistas” e das “Grandes Banhistas”, que Pierre-Auguste Renoir pintou há mais de cem anos, é varrida com escândalo para baixo do tapete pelo austero progressismo de género da revista New Yorker. Há 40, mesmo 30 anos, eu juraria, olhos rasos de lágrimas, mão sobre a New Yorker, muito mais do que sobre a Bíblia. Depois vi os novíssimos catecismos invadir-lhe as páginas, o reaccionarismo teórico-progressivo a julgar as artes, o cinema, agora a pintura. O pintor Renoir, diz um crítico, deve ser corrido do cânon: o olhar masculino e patriarcal ofende. Ora, se a vogal inicial me dá licença, vão-se lá fender!

Eis a sombra que teima em derramar-se sobre as nossas vidas: temos medo de passar a língua pela sensualidade e de enfiar o dedo no deleite. O prazer está a tornar-se clandestino

Quem poderá hoje pedir, como o poeta Herberto Helder, “dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra e seu arbusto de sangue, com ela encantarei a noite”? Quem poderá pintar, como Renoir ou Manet, a nudez das banhistas, a deitada Olympia, os pequenos almoços sobre a erva? Pior, quem ousará voltar a pintar a volúpia trágica, arrepanhada, de dedos no crânio ou na vulva das mulheres de um Egon Schiele?

Onde está a América inocente, de grandes olhos juvenis e curiosos, a descobrir o sabor e requinte da França, essa América de Gene Kelly e de Vincent Minnelli, a sapatear bons dias na cara sorridente de Paris? Onde está a América que recebeu em Hollywood, o cineasta Jean Renoir, filho do agora execrado pintor de banhistas opulentamente nuas?

Eis o que penso: a New Yorker é como o dono do urso que Jean Renoir contratou para o seu filme, “Swamp Water”, em 1941, nos pântanos selvagens de Okefenokee. Renoir precisava de um urso. Um homem, nas profundas da Georgia, tinha um em cativeiro. Capturara-o bebé, a conselho de um velho feiticeiro índio, para fazer companhia à linda menina sua filha, que tinha crises de epilepsia. O feiticeiro tivera razão, na companhia do urso a menina não voltou a ter ataques epilépticos.

Renoir foi buscar o urso e ficou abismado com a sua gulodice. Passaram por uma casa de gelados e o urso urrou sem parar até lhe darem meia cassata. Preparou-se tudo para as filmagens e o urso ficou com o dono a dormir na aldeia. Foram buscá-lo, no dia seguinte, e a Renoir ia-lhe caindo uma coisinha indigna aos pés. O dono tinha levado o urso ao cabeleireiro e fizera-lhe uma juba que o deixava entre um caniche e um leãozinho. Para ultraje e desespero do seu dono, o urso de Okefenokee não entrou no filme. Eis o que querem pôr nos filmes: o urso que já não é urso. Eis o que querem verter na tela: a nudez que já não é nudez.

Jean Renoir estraçalhava a língua inglesa com a sua pronúncia francesa. Nesse filme, deu os pequenos papéis à gente dos pântanos, aos habitantes de Okefenokee. Numa cena com o actor principal, Dana Andrews, uma jovem vinha da margem de um ribeiro e subia para uma canoa. Nervosa, fez a coisa a alta velocidade. Iam repetir, ela vinha de novo acelerada. Renoir gritou “Miss, wait a little”, mas o “wait” saiu-lhe com pronúncia de “wet”. Em vez de a mandar esperar, estava a pedir-lhe que, “wet a little”, fizesse um bocadinho de xixi. A jovem, escandalizada, perguntou a Dana Andrews: “Ele quer mesmo que eu faça…” O actor, vivíssimo e deliciado, disse-lhe: “Querida, sabe que estes cineastas estrangeiros têm ideias muito esquisitas.” Os pintores também.

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Outro Renoir: nos pântanos selvagens de Okefenokee

Publicado na minha coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios