As mulheres, os homens

As mulheres. Falemos então de “as mulheres”. São seres alados, bem sei, mas o que nelas nos tortura é a dúvida. Negam. Bem podem os sentidos delas dizer o contrário. Negam na mesma. O beijo que lhes pomos na boca, os nossos dedos a apertar-lhes onde a carne é macia, soube-lhes melhor que framboesas. Negam. Podia insistir. Não insisto, Kate Winslet é que confessa. A cantar.

Os homens. Falemos então de “os homens”. Seres de coração puro, líricos. Seres sofridos, tanto faz que seja a cappela ou com orquestra e coro. A violência dos trabalhos, a áspera barba, o grosseiro fato de macaco: tudo fragilidades quando se arranha a superfície. Movem-se como ursos: bailarinos inconfessados e insuspeitos. Mesmo num triciclo onde pedalam a sua inocência é já para o amor que pedalam porque é muito só o homem sem amor. Mesmo ou se canta e dança como James Gandolfini.

Os extractos são do peculiar “Romances and Cigarettes” realizado por bizarro John Turturro.

Que alegria é esta que é tão triste

Maysa

Que ale­gria é esta que é tão triste! A voz desta mulher vem do peito, da gar­ganta, mas não sai só pelo dese­nho lindo da boca. Sai pelos olhos, pelas nari­nas, pelas dra­má­ti­cas maçãs do rosto. Mesmo sem a estar­mos a ver, a cada pala­vra que liberta, sen­ti­mos o rosto dela contrair-se, expres­siva, ali­vi­ada, dolorosamente.

Maysa, aris­to­crata bra­si­leira, filha do barão de Mon­jar­dim, casou aos 17 anos, nos já lon­gín­quos anos 50, com um empre­sá­rio pode­roso, André Mata­razzo, homem com o dobro da idade dela. Teria sido uma grande his­tó­ria de amor se ele, mas­cu­lino digo eu, pos­ses­sivo desculpá-lo-ão outros, sem­pre os mes­mos, não a tivesse que­rido impe­dir de cantar.

Maysa deixou-o, can­tou sem­pre e amou com exu­be­rân­cia, cons­truindo um mito. Para ela, ima­gino, inaugurou-se o voo Rio-Tóquio, para que fosse a pri­meira bra­si­leira a can­tar na tele­vi­são japonesa. Em vez de malas, levou a Bossa Nova a Nova Ior­que e a Paris.

Na voz dela, toda a manhã, toda a aurora, é ainda pro­funda, ine­vi­ta­vel­mente nocturna.

Já sei o que vou fazer no dia deste ano em que hei de fazer anos: ouvir e talvez dançar Maysa Sings Songs Before Dawn como ela o gra­vou para a Colum­bia Records, disco mítico, quase todo em inglês. Dizem-me é mais do que canções, música, voz, mais até do que uma mulher. Alegria recheada a tristeza.

 

 

 

A solidão

dolores

Ando há seis décadas e um lustro a viver e ainda não tinha percebido. Só agora vi a autêntica religião que pode ser a solidão. Percebi isso hoje quando, da cansada vida e voz de Dolo­res Duran, se come­çou a der­ra­mar a bio­gra­fia da solidão.

Ouçam. As vas­sou­ri­nhas var­rem os pra­tos e tam­bo­res da bate­ria, mas não var­rem as lágri­mas e a retó­rica mag­ní­fica do sofri­mento. Não acre­dito que nós, homens, cheguemos verdadeiramente a com­pre­en­der o que Dolo­res canta. Nos nossos des­me­di­dos deva­neios épicos de homens, a forma como Dolo­res canta as pala­vras que ela mesma escre­veu, é uma his­te­ria irreal, um ensan­guen­tado folhe­tim.

Contaram-me que é pre­ciso que uma mulher cante e outra mulher ouça. Dolo­res Duran namo­rou os homens. Não dor­miu com todos, mas dor­miu com mui­tos. Dor­miu até, por­que amou, um gar­çon de caba­ret. Mas quando que­ria que lhe ouvis­sem as novas can­ções, cantava-as às ami­gas. Foi ao tele­fone que can­tou “ai a soli­dão vai aca­bar comigo” a outra cantora amiga, Maysa.

Maysa con­tou que ouviu, ao telefone, sublinho, e já não con­se­guiu vol­tar a falar. Cho­rou o dobro, o tri­plo do que os ver­sos de Dolo­res pare­ciam pedir, sufo­cada, estra­nha, ciente da infe­ri­o­ri­dade e da supe­ri­o­ri­dade de quem tem o segredo do romantismo.

Tom Jobim, Vini­cius, homens e artis­tas, os que “sabem o que fazem e o que dizem” che­ga­riam, mui­tas lágri­mas depois, à car­reira de mulher de Dolo­res. Que solidão! E talvez este ponto de exclamação seja só a minha forma masculina de estranhar e incompreender o que seja uma mulher ou quem foi Dolores.

as músicas negras: I’d rather go blind

I’d Rather Go Blind é uma canção de 1967. A interpretação original é de Etta James. Mas eu ouvi-a primeiro na versão dos Fleetwood Mac que, na altura (ou terá sido só para esta canção), integrava elementos de outra banda inglesa, os Chicken Shack.

A simplicidade da letra é extrema, como extrema é a sua emoção:

Something told me it was over
When I saw you and her talking
Something deep down in my soul said, ‘Cry, girl’
When I saw you and that girl walking out
Oh, I would rather go blind, boy
Than to see you walk away from me, child
You see I love you so much that I don’t want to watch you leave me, baby
Most of all, I just don’t want to be free, no

Experimentem ouvir agora o original de Etta James. Doce, redonda e cega como a alma, the soul.

negras escolhas musicais: Michel Portal

É para se ouvir nas wee wee hours, nas estranhas horas em que o mundo se eclipsa. Foi um dos últimos conselhos – mesmo o último – que o Jazé Andrade, kamba angolano de requintado gosto universal, me deu: «Ouve só Michel Portal.» Ao Jazé assistia-lhe uma imbatível razão estética. Como aqui se pode ouvir. Michel Portal com Richard Galliano ao acordeão.

Ou aqui, em Bailador (grande álbum) com  este sexteto: Michel Portal (Bass Clarinet), Lionel Loueke (Guitar), Ambroise Akinmusire (Trumpet), Scott Colley (Double Bass), Jack DeJohnette (Drums) and Bojan Z (Piano, Synth, Arrangements).

As negras escolhas musicais (2)

E para não deixarmos o Wynton Marsalis a tocar sozinho, vamos à segunda escolha negra.

O cinema faz mais milagres do que Jesus Cristo, o que faz dele o filho favorito de Deus. No cinema pode correr-se por cima do capot dos carros e pode cantar-se na rua, que a orquestra há-de vir dos céus. Tantos, tantos milhares que até Nicholas Cage pode cantar e comover-nos. A canção é Love Me Tender, o filme é Wild at Heart, do estranho, bizarro e inexplicável David Lynch.

As negras escolhas musicais da página negra

Começa aqui a primeira secção específica da Página Negra. Tem o interminável título “As negras escolhas musicais da página negra”. Registará as negras escolhas musicais do dono disto tudo, esse tal Manuel S. Fonseca.

 

Isto é muito bom. Primeiro, porque Wynton Marsalis é muito bom. Segundo, porque Dave Brubeck era muito bom. Terceiro, porque é muito bom ver gente a bater tão bem palmas. Quarto, porque ouve-se e parece que é domingo. E não é que é mesmo domingo!

Um slow de sábado à noite

 

Eu tive os meus anos Steppenwolf. Eram – serão sempre – os Steppenwolf. Tinham o som único, ácido, de The Pusher ou Born To Be Wild. Mas podiam ser estranhamente líricos como é aqui o caso. Eram cantados pela voz bluish de John Kay, magnífica, cheia, que de vez em quando se chegava à boca da noite e nos cantava assim, arrastando-nos e arrastando-me para slows de oh, meu Deus, é que nem me quero lembrar.

Ardíamos tão devagar nos slows de sábado à noite.

Corrina, Corrina, em boa verdade, não era uma canção deles. Roubaram-na a Bob Dylan. Mas, de a cantarem como a cantaram, é na deles que o meu pobre corpo se lembra e ressuscita.

Corrina, Corrina,
Gal, where you been so long?
Corrina, Corrina,
Gal, where you been so long?
I been worr’in’ ’bout you, baby,
Baby, please come home.

I got a bird that whistles,
I got a bird that sings.
I got a bird that whistles,
I got a bird that sings.
But I ain’ a-got Corrina,
Life don’t mean a thing.
Corrina, Corrina,
Gal, you’re on my mind.
Corrina, Corrina,
Gal, you’re on my mind.
I’m a-thinkin’ ’bout you, baby,
I just can’t keep from crying.