Em louvor do amor bom

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Van Gogh, cabeça de esqueleto com cigarro aceso

Bica Curta servida no CM 5.ª feira, dia 26 de Dezembro

Há um amor mau: homens que julgam ser senhores e donos de uma mulher, controlando, batendo, matando. Agora que acaba 2019, continua a ser vergonhoso o balanço da violência contra mulheres em Portugal – 28 mulheres assassinadas até Novembro e mais 27 tentativas de homicídio.

É preciso, por isso, louvar o amor bom. O bom afecto dá plenitude a homens e a mulheres. A felicidade na intimidade predispõe ao sorriso na rua, nos transportes, no café. Arrisco: o bom afecto melhora a produtividade e levanta virilmente a economia. Contra a posse e o ciúme, precisamos de legislação, mas também de uma educação sentimental para o amor bom.

Cuidado com o açúcar

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Bica Curta servida no CM, 5.ª feira, dia 14 de Novembro

Gosto da bica sem açúcar. Se por um velho automatismo deito açúcar na chávena, o café passa a mistela e é intragável. É ao que me sabe, quando nela tropeço, a paternal condescendência. Tenho ouvido homens a tecer públicos louvores açucarados à “mulher”. A “mulher” é, dizem, muito mais inteligente e verdadeira do que o homem e de uma sensibilidade, ui, meu Deus!

E há mulheres que aplaudem a demagogia. Não deviam: nenhum dos sexos é melhor do que o outro. Foi o que jurou a escritora Margaret Atwood: “As mulheres não são anjos sem defeitos, nem dizem sempre a verdade.” Falando do #MeToo, disse Atwood: “Surpresa, às vezes mentem.”

Tout, rien du tout

As mulheres são diferentes dos homens por quererem tudo. Tout. O que, claro, a qualquer homem parece logo rien du tout. Traduzindo, e nem é preciso ser para esperanto, os homens querem ontologicamente a mesma coisa: só que para os homens qualquer coisa, a mais pequenina coisa, é já tudo. O homem é holográfico: basta-lhe a fina abertura do decote e fica logo na veemente excitação de quem já viu a eternidade – um nimbado mamilo e, valha-nos Deus, os sonhos de toda a corte celestial!

Mas querem os dois, masculinos e femininos, a mesma coisa – os homens a mais pequena partícula, que acarinham como se fosse tudo, porque é tudo; as mulheres querem tudo com medo que o tudo seja menos do que a soma das mais pequeninas partes.

Vamos lá ser pedagógicos e ouvir cada um — uma mulher, um homem – pedir a mesma coisa. Vão ouvir que cada um, pedindo o mesmo, pede coisas diferentes.

Ladies first, claro, com mil perdões pelo execrável visual do vídeo – não vejam, ouçam só:

Ouviram? Claro que é lindo. Mas perceberam o artifício, a pose, o subtil prazer de tirar mais dor da contemplação da dor do que da própria dor? Ouçam lá agora um homem a querer a mesma coisa:

Claro que já viram a diferença. Até lhe custa começar, de tão fundo vem a voz. Rouca de emoção pela coisa que se quer. Nenhum cuidado com a expressão, toda a atenção vai direitinha para o coração um bocadinho partido da silly girl – ó, a forma como o rapaz aconchega a silly girl entre a língua e o céu da boca!

 A canção foi composta por Tom Waits para um dos meus filmes de culto, o One From the Heart, de Francis Coppola. Infelizmente, não consegui encontrar o momento mais comovente do filme, quando a personagem de Frederic Forrest, que não sabe cantar, do que a namorada sempre se queixava, canta o You’re my sunshine no aeroporto para que ela, arrebatada por um cantor, pianista, bailarino (tudo!), não o deixe.

As mulheres, os homens

As mulheres. Falemos então de “as mulheres”. São seres alados, bem sei, mas o que nelas nos tortura é a dúvida. Negam. Bem podem os sentidos delas dizer o contrário. Negam na mesma. O beijo que lhes pomos na boca, os nossos dedos a apertar-lhes onde a carne é macia, soube-lhes melhor que framboesas. Negam. Podia insistir. Não insisto, Kate Winslet é que confessa. A cantar.

Os homens. Falemos então de “os homens”. Seres de coração puro, líricos. Seres sofridos, tanto faz que seja a cappela ou com orquestra e coro. A violência dos trabalhos, a áspera barba, o grosseiro fato de macaco: tudo fragilidades quando se arranha a superfície. Movem-se como ursos: bailarinos inconfessados e insuspeitos. Mesmo num triciclo onde pedalam a sua inocência é já para o amor que pedalam porque é muito só o homem sem amor. Mesmo ou se canta e dança como James Gandolfini.

Os extractos são do peculiar “Romances and Cigarettes” realizado por bizarro John Turturro.

Como jaquinzinhos

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Bica Curta tirada no CM, 3.ª feira, diz 23 de Julho

“Capillaria” é um romance húngaro de 1921, e é o nome de um país habitado por belas e gigantescas mulheres louras, rosto angélico, pele alabastrina. Não há homens, mas há imensos e pequenos seres em forma de órgão sexual masculino. Diz-se que estimulam a reprodução da espécie e as mulheres acham-nos saborosos. Petiscam-nos como se fossem jaquinzinhos. As mulheres são sensualíssimas. Um aroma, um sabor, uma música causam-lhes arrebatadores orgasmos. E a bica curta, por certo.

Será o nosso crispado mundo de géneros já um cruzeiro a caminho dessa Capillaria que rifou os homens e se consola numa luxúria auto-suficiente?

Agustina é para homens

Retomo os textos que publiquei ao longo destes anos sobre Agustina. Esta é uma crónica publicada na revista Epicur, há dois anos, se bem me lembro.

Agustina

Numa insofismável prova da insensibilidade literária de Deus, Agustina Bessa-Luís não escreve há mais de uma década. Agustina decidiu e o iliterato Deus deixou. A última vez que Agustina escreveu, escreveu para mim um livro, Fama e Segredo da História de Portugal, cheio de histórias da nossa História, que começavam em Viriato, passando pelo milagre que abriu as pernas a Afonso Henriques, até a um clandestino namoro de Salazar. Acabara, creio, A Ronda da Noite, seu último romance, e escreveu aquela obra que lhe encomendei, ou então escreveu as duas em paralelo.

Lembro-me que noutro livro de que fui editor, O Livro de Agustina, sua autobiografia, a minha autora contava o que fizera, uma vez, aos três anos, em Espinho: “… saí do hotel, sozinha, com um vestido de voile azul-claro e um ar de grande aventura. Tenho ainda essa aspiração de caminhar sem rumo, dizem que é um fio de epilepsia. Talvez seja, talvez a liberdade seja um sintoma epiléptico.”

Há mais de dez anos que a vejo sempre assim. Imagino-a nesse adolescente vestido de voile azul-claro, sentada debaixo da grande árvore da casa do Gólgota ou a caminhar sem rumo pelo jardim, deixando-se levar pela indecifrável liberdade a que ela chamou sintoma epiléptico.

Nós, os homens, e estou mesmo a falar de os homens por contraposição a as mulheres, até para contrariar a iliteracia do Deus que a autorizou a não escrever, devíamos ler mais Agustina. Uma vez, ela contou-me que um dos nossos ingentes políticos lhe protestara a maior admiração, concluindo: “A minha mulher leu todos os seus livros.” Com insidiosa ironia temperada pelo sentido das conveniências, Agustina riu-se – ria-se sempre e ria-se de tudo: “Ora, eu gostava era de ter a sua opinião, não digo sobre todos, mas ao menos sobre um dos meus livros.”

O pedregulho salazarista

Donde vem a resistência masculina à leitura de Agustina? E o mais certo é eu estar a deixar-me levar pelo entusiasmo dos grandes contrastes: talvez nem haja uma tão absoluta resistência masculina, talvez haja só uma certa resistência masculina. O que existe é uma certa resistência política, herdada dos tempos do salazarismo, quando os comunistas, através do seu exército neo-realista, ditavam à intelligentsia cultural o que era literatura. Não pensem que acabou, hoje há um diktat da esquerda alternativa que aperta o pescoço e esganiça a linguagem, o pensamento e os comportamentos… Mas deixemo-nos de lirismos e voltemos a Agustina: ostracizaram-na! E isso influenciou quase toda a esquerda, quase todos os bem-pensantes. Quem a desamarrou do pedregulho salazarista, que lhe queriam à força prender à perna, foi a geração da revista O Tempo e o Modo, de António Alçada Baptista, com João Bénard da Costa à cabeça, seguindo afinal o que Sophia de Mello Breyner Andresen, por amizade, admiração e comunhão literária, já defendia. O Tempo e o Modo proclamou a genialidade de Agustina, como proclamava a divindade de Sophia e de Jorge de Sena ou de Ruy Belo, nesses tempos em que se chegava a Deus de caneta na mão.

E, no entanto, continuo a dizer que nós, os homens, devíamos ler mais Agustina. Ia dizer porquê. Ia dizer: os livros dela; mas corrijo já e digo: os homens dos livros dela são um espelho admirável e devolvem-nos a imagem de uma natureza masculina perdida. Uma natureza pela qual sentimos mais nostalgia do que a que Proust sentia por esse passado que o odor e o sabor da madalena molhada no chá lhe trazia à memória.

Tomei algumas vezes chá com Agustina, mas nunca a vi molhar no chá madalenas proustianas. A que madalenas vai, então, Agustina buscar essa natureza masculina perdida? Esqueçam o chá e os bolos. A natureza masculina que Agustina pinta, a forma como a cada homem descobre o carácter, tem raízes biográficas.

Amar as mulheres

E volto a essa autobiografia, O Livro de Agustina, que tinha como subtítulo A Lei do Grupo. Na primeira linha do livro emergia a figura do avô Teixeira. E nem é preciso fazer nenhum homérico esforço hermenêutico para se celebrar a geminação desse avô José Teixeira com Francisco Teixeira, herói e galã de A Sibila.

No romance, Francisco é um “tipo pequeno, de muito nervo, prudente e conciso de falas, ciente do muito prestígio das suas suíças loiras junto das mulheres”. Na autobiografia, Agustina diz do avô José que é “pequeno de estatura, valente, de poucas falas, cheio de ironias que são fugas cautelosas, estratégias, emoções veladas.” Mas já antes, Agustina jurara que o avô Teixeira “amava as mulheres, que é mais do que as desejar”, rematando: “Elas adoravam-no e faziam bem. Que há poucos homens que saibam amar as mulheres e merecê-las.” Seriam também loiras, como n’ A Sibila, as suíças do avô de Agustina?

Nesse romance, outra personagem, Maria, aos 9 anos, apaixona-se por Francisco Teixeira, quando ele a salva numa tarde de invernia e a vem entregar a casa: “- Ora acautelem-me lá esta rapariga que é com ela que eu vou casar…” Na autobiografia que para mim escreveu, Agustina explica que a avó tinha 28 anos quando se casou com o avô Teixeira de 41: “Justina ficara enamorada desde os sete anos por José, com 20 anos, quando ele a ajudou a passar um ribeiro em dia de invernia e lhe disse que se casaria com ela, um dia.”

 Entre a fantasia e o pavor

O que eu quero dizer é que a obra de Agustina é uma rara celebração do masculino na literatura das últimas cinco ou seis décadas. Nas suas evocações da infância, Agustina saúda Texas Jack, o pistoleiro, e o seu cavalo Jumper, saúda os heróis de Emilio Salgari e os aventureiros de Júlio Verne. O que alimenta os homens dos romances de Agustina são essas mitologias inocentes, são as mitologias familiares que envolvem a figura do avô, que imagino a aprender o jogo do pau com o José do Telhado, e as aventuras do seu pai no submundo do Rio de Janeiro. Os homens de Agustina têm de ser conquistadores, sedutores, jogadores, aventureiros. Pecadores, em suma.

A imaginação de Agustina descobriu primeiro os homens. Os livros que a formaram eram misóginos, com mulheres decorativas, “sempre elegantíssimas, com cinta de vespa e cabelos frisados.” Só mais tarde, quando pôs os olhos na Madame Bovary ou começou a ir aos filmes mais adultos, as mulheres lhe inspiraram, afirma Agustina, “sentimentos devastadores como a Greta Garbo ou a Dietrich”.

O rumor da verdade é a maior fonte de inspiração de Agustina. Também dos seus heróis masculinos. Entre a fantasia e o pavor ouviu contar histórias de assaltos e crimes; era ainda menina e ouviu, com sonâmbula curiosidade, o murmúrio de inconfessáveis histórias de homens “que sabem amar as mulheres e merecê-las”, o murmúrio da pena das amantes do marido que tinha a avó Justina.

Termino. À língua portuguesa – que é feita de pérolas finas, jura Agustina –, os romances dela acrescentaram um conjunto humano que lhe faltava, os homens. Uma ideia de homem – sedento de infinito, mesmo e sobretudo se o não sabe – que fascina Agustina e assusta o chá dançante da contemporaneidade. É preciso relê-la e voltarmos a falar disto, não esquecendo embora o aviso que Agustina nos deixou: “Somos sempre muito faladores com o insignificante e muito calados com o que nos assusta.”

os homens, esses deuses

The lone Man
Nabin Mulepati, Homem sozinho

Shakespeare, o do retrato que ontem aqui trouxe e ali em cima plantei, pode ser que seja só um “nome emprestado” a uma obra – a hipótese de que as suas inúmeras peças sejam da autoria de um outro Shakespeare ou, numa hipótese plural, de outros Shakespeares, converte-o, afinal, na sublime personagem de uma inimitável “comédia de enganos”.

Mas há mais. É provável que Homero não tenha existido e que a Ilíada e a Odisseia, obras fundadoras, sejam também obras órfãs. Sócrates, infatigável voz falante dos diálogos de Platão, mesmo que tenha existido, não escreveu uma linha, o que deixa o célebre “conhece-te a ti mesmo” desesperadamente à procura do “seu” sujeito.

Já sei, já sei – vão também lembrar-me que Jesus Cristo não terá sequer existência histórica reconhecida e que Maomé, o áspero e arrebatado profeta, não escreveu, não ditou e não se reconheceria, nem nas 92 suras que dizem ter-lhe sido reveladas em Meca, nem tão pouco nas 22 que os céus só lhe mostraram em Medina.

Não é estranho que tenhamos construído tanta civilização em cima de “figuras ausentes”? Ficção em cima de ficção, fantasmas em cima de fantasmas? Ninguém se atreveria a censurar aos humanos que tenham inventado os esplêndidos deuses. Mas que tenham também inventado os humildes inventores dos deuses, num inverosímil labirinto ficcional, será que nos obriga ao mais feroz cepticismo?

Um dia, o meu amigo Pedro Norton pôs na ordem este meu exacerbado gosto pela deriva sobre a deriva e disse-me com aquela veemência que acaba com qualquer discussão: “Não vejo onde está a dúvida metafísica, Manel. Foram os deuses que inventaram os inventores dos deuses para que estes os pudessem inventar a eles. Cristalino, não é?”

Andei um ou dois anos a ruminar, com um ressentimento anti-girardiano. Respondo-lhe hoje: “Claríssimo Pedro. Ou melhor seria se não tivessem sido os humaníssimos inventores dos deuses a inventar as potestades para que a seguir os deuses, humildemente, os re-inventassem a eles!”

E lá me volta a metafísica inquietação…