If love’s a sweet passion

Por nada. Pura indulgência de fim de semana. Antes que, 2ª feira, choro, risos, drama, ranger de dentes, farsa, verdades e mentiras, tudo recomece.

Gozem esta “Fairy Queen” de Henry Purcell (século XVII). Interpreta-a a soprano Veronique Gens, que é linda de morrer, se é que ainda se podem dizer coisas destas.

Gens
Veronique Gens

As palavras que canta são, doces e apaixonadas, estas:

If Love’s a Sweet Passion, why does it torment?
If a Bitter, oh tell me whence comes my content?
Since I suffer with pleasure, why should I complain,
Or grieve at my Fate, when I know ’tis in vain?
Yet so pleasing the Pain, so soft is the Dart,
That at once it both wounds me, and tickles my Heart.

I press her Hand gently, look Languishing down,
And by Passionate Silence I make my Love known.
But oh! I’m Blest when so kind she does prove,
By some willing mistake to discover her Love.
When in striving to hide, she reveals all her Flame,
And our Eyes tell each other, what neither dares Name.

Ye Gentle Spirits of the Air, appear;
Prepare, and joyn your tender Voices here.
Cath, and repeat the Trembling Sounds anew,
Soft as her Sighs and sweet as pearly dew,
Run new Division, and such Measures keep,
As when you lull the God of Love asleep.

As quatro noites de um sonhador

zeca

Foi em 1973, em Lis­boa, onde vim estu­dar Direito, catorze anos depois de ter sido adop­tado por uma África que já só exis­tia em Hollywood e nas nos­sas ton­tas e amo­ro­sas cabe­ças colo­ni­ais.

Na mar­ce­lista noite de Lis­boa, que já era menos claus­tro­fó­bica do que polí­tica e cho­ro­na­mente se anda para aí a dizer, éra­mos dois rapa­zes e duas rapa­ri­gas e queríamos ouvir Zeca Afonso. Ele ia can­tar no Cen­tro Naci­o­nal de Cul­tura, ao lado do Tea­tro São Luiz, na afa­mada Rua Antó­nio Maria Car­doso, ou seja, nas barbas da PIDE.

A noite e a rua vestiam-se de jeans, mui­tos cabe­los com­pri­dos, toda a gente com per­nas e olhos cheios de bicho-carpinteiro. Cheirou-me que depressa íamos ter reco­lher obrigatório, mas estávamos ali de peito cheio e feito.

E chega a notícia: o Zeca não cantaria. Repa­rem, não é bem a mesma coisa que dar uma veneta a Keith Jarrett e ele sair do palco. Usava-se então a pala­vra “proi­bido”, termo que teria caído em desuso, não fosse a sal­ví­fica inter­ven­ção de algum escol femi­nista e, agora, do louro Trump. Zeca foi proi­bido de cantar.

Houve uma convulsão e per­cebi que a Antó­nio Maria Car­doso era estreita, uma entrada e uma saída, sem outro recuo estra­té­gico. Digo isto, por­que a peque­nina mul­ti­dão se agi­tou, sol­tando os bichos-carpinteiros num bruaá que se ouviu no vizi­nho São Car­los. Faça­nhuda, mas orga­ni­za­dís­sima, a polí­cia de cho­que vinha, do São Luiz para o Chiado, num irre­pre­en­sí­vel geo­me­trismo, lim­pando a rua a viseira e cas­se­tete, o que, apesar de serem só nove horas, sig­ni­fi­cava cace­tada de meia-noite nas filo­só­fi­cas cabe­ças e macios cos­ta­dos que esti­ves­sem à mão de semear – e se nós éra­mos trigo limpo.

Havia, está claro, uma expli­ca­ção razoá­vel: não só era proi­bido o Zeca can­tar, era também proi­bido ouvi-lo. Num ápice, eu e o meu amigo enten­de­mos pro­te­ger as nos­sas meló­ma­nas e ino­cen­tes ami­gas: ele, ousado, à frente, elas no meio, eu a fechar a coluna: “leave no man behind”, muito menos uma miúda. Fize­mos meia-volta para o Chi­ado: sairíamos por onde tínha­mos entrado. E não é que o atra­sado men­tal do capi­tão que coman­dava os caceteiros tinha pen­sado a mesma coisa?! A limpa entrada da Antó­nio Maria Car­doso era, agora, uma far­pa­dís­sima saída. Nós, cân­di­dos filhos da madru­gada, tive­mos então o pen­sa­mento que se tem quando, de tão aper­ta­dís­simo, não cabe onde sabem um fei­jão: “Mas que filhos da puta!”

Por­tanto, eles malha­vam pela frente e por trás. Pequena manada de bison­tes man­sos, avan­çá­mos. No caso do nosso escasso pelo­tão em fuga, a máquina ini­miga portou-se pouco cavalheirescamente. Pelo berro que o meu amigo deu, pela súbita con­trac­ção que converteu o meu vigo­roso físico numa magra agulha, os cho­ques do Mal­tês falha­ram as bas­to­na­das. Pas­sá­mos ile­sos. Mas os bru­tos, olhar cego ao género, politicamente correctos avant la lettre, não é que acer­ta­ram em cheio nos deli­ca­dos pes­co­ços das nos­sas ami­gas? Para nossa viril ver­go­nha, foi sobre o corpinho delas que se abateu a violência da longa noite. Em noi­tes de vam­pi­ros, nenhum pes­coço se salva.

Cer­vi­cais em ai-ai, omo­pla­tas em ui-ui, fomos ao cinema buscar o que a vida nos tirara. À meia-noite, no falecido Apolo 70, desfil­a­vam as silhu­e­tas que Robert Bres­son, jan­se­nista fran­cês, arrancou às pági­nas rus­sas de Dos­toi­evski. A escura noite em que não ouvi o Zeca, foi a branca noite em que vi as “Qua­tro Noi­tes de um Sonhador”.

Ascensão, poder e crime do Nazismo

E é claro que eu tinha de abrir a porta e dar passagem a estes livros da Guerra e Paz. Contra os totalitarismos, sempre.

trilogia

Prometemos aqui que traríamos aos leitores da Guerra e Paz excertos dos estudo críticos que enquadraram três dos livros que mais terrivelmente marcaram a História do século XX. O Mein Kampf, de Adolf Hitler, é um desses livros, o mais sombrio, o mais intencionalmente letal. O editor da Guerra e Paz fê-lo preceder de um estudo com cerca de 90 páginas, a que chamou “Ascensão, Poder e Crime do Nazismo“.

Entre outros pontos de interrogação, o autor mostra neste passo o papel que a violência teve na conquista e consolidação do poder. Leia-se:

«Hitler chegou ao poder pelo voto popular, diz-se. E chegou. Mas também chegou à força da cacetada e à força de cacetada consolidou o poder. A cacetada sufocou a voz da social-democracia, que Hitler odiava, como odiava os comunistas. A cacetada foi intimidatória e atapetou o caminho do voto, em particular a das últimas eleições de 5 de Março de 1933. Muita Alemanha votou nela, mas muita Alemanha se calou com medo do vaivém do cacete.

Um tsunâmi de Terror varreu a Alemanha. Manifestações comunistas e do SPD proibidas. Jornais comunistas incendiados, jornais do SPD restringidos. Aos directores desses jornais partiam-se os dentes com mocas, às redacções era só escavacar a mobília e pegar-lhes fogo.

Os SA, tropas de assalto de Hitler, organização paramilitar autorizada, esses expoentes da revolução permanente, cuja dinâmica Trotski e Mao Tsé-tung talvez pudessem invejar, passaram anos em actos de banditismo, a espancar comunistas na rua, assaltando-lhes as delegações partidárias, e a espancar judeus – sempre os judeus. Assassinavam à luz do dia. Prendiam os adversários em caves, torturavam-nos até os converterem numa indistinta massa de sangue, dentes e bocas desfeitos. Entre as diversas eleições a que os nazis concorreram, os SA de Hitler, chefiados por Ernst Röhm, fizeram verdadeiras guerras civis nas cidades alemãs. Antes do voto, houve sempre orgias de violência.

Mesmo antes de chegarem ao poder, os nazis já assassinavam com impunidade. Mataram comunistas e matavam judeus. O cidadão alemão fingia que não via ou olhava com tolerância para esses farrapos de «outros» que tombavam. Como viria a escrever o pastor Martin Niemöller: «Quando os nazis levaram os comunistas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era comunista. Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era social-democrata. Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, eu não era sindicalista. Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque, afinal, eu não era judeu. Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse.»

Niemöller era uma voz isolada. As igrejas protestantes, cegas, surdas e mudas, também não davam conta. Só as organizações políticas da Igreja Católica reagiram até 1933. Mas com a chegada ao poder de Hitler, a hierarquia católica quer salvar-se e prescinde da política. O Vaticano assina a Concordata com Hitler. Tê-la-ia, bem se vê, assinado com o Diabo.»

Noutro passo, e falando das primeiros ataques sistemáticos aos judeus, Manuel S. Fonseca escreve:

«Era de noite e levaram… A noite nazi encheu a Alemanha de gritos. De 9 para 10 de Novembro de 1938, no progrom da Noite de Cristal, as tropas de choque do Partido Nacional-Socialista, tropas de Hitler, assaltam as casas das famílias judias, rebentam-lhes as lojas de comércio, insultam-nos, cospem-lhes, batem-lhes violentamente, numa vaga de arrogante arbitrariedade. São turbas selváticas, hordas de hienas que guincham e caem de dentes afiados sobre as suas presas indefesas. Entram pelos apartamentos, espancam os velhos, as mulheres, as crianças, arrastam-nos pela rua, escavacam oito mil estabelecimentos, atiram dos prédios as mobílias das casas. Os cem judeus mortos nessa noite são, já se pode adivinhar, o prenúncio dos milhões que hão-de ser chacinados mais tarde. Uma triste via láctea de fragmentos de vidro partido cobre as ruas das cidades alemãs, resultado do vendaval de destruição com que se partiram as lojas e se incendiaram centenas de sinagogas por todo o grande Reich, na Alemanha, Áustria e nos Sudetas. Trinta mil homens são arrancados das camas, das suas casas e levados para campos de concentração: Dachau, Buchenwald e Sachsenhausen passam a ser nomes com um significado sinistro. São trinta mil judeus e serão apenas os primeiros. Goebbels, o serventuário do carrasco Hitler, declara: «Agora, nós é que mandamos.» E o Nazi, obcecado com a higiene, asséptico, pele translúcida de tanto se lavar, dá luz verde à limpeza étnica.

O judeu passa a ser uma sombra encostada à parede, tira-se-lhe a casa, tira-se-lhe a loja, a profissão. Todos têm de ter no passaporte um J, todos os homens se passam a chamar Israel, todas as mulheres Sara. Começa a cumprir-se o voto favorito de Hitler: uma Alemanha Judenrein, uma Alemanha limpa de judeus.

Os alemães assistem passivos a tudo. Indiferentes à selvajaria dos uivos que enchem a rua, calcando para o fundo da alma a compaixão que é a marca do humano, são poucos os alemães que se atrevem a oferecer algum consolo, ajuda ou protecção ao judeu. Desviando o olhar do sangue que ficou no passeio, muitos aproveitam para lhes ocupar ou comprar por tuta-e-meia a loja, o negócio, o consultório.

E, não obstante, estes judeus acreditavam na Alemanha e acreditavam que eram alemães. Mesmo depois da ascensão dos nazis ao Poder, em 1933, três quartos da população judaica permanecera na Alemanha. Ficaram até à data fatídica deste progrom gigantesco. Agora, enegrecendo-lhes as vidas, caíam sobre eles as cendradas sombras que se tinham visto nos filmes mudos alemães, no Caligari de Robert Wiene, no Nosferatu de Murnau, na Morte Cansada, nos Mabuse e no M todos de Fritz Lang. Um horrível e desfigurado Expressionismo atormentava as cidades, as ruas e as casas da Alemanha.»

Este livro, devidamente enquadrado, é uma obra essencial para conhecermos o mal e as razões do mal que sufocaram o século XX.

O chimpanzé

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Bica Curta servida no CM, na 5.ª feira, dia 21 de Novembro

Hoje tomo a bica na Vila Alice, meu bairro da Luanda colonial. Eram dez da manhã e estava à janela o meu ocioso amigo Victor Silva, agora advogado em Faro. Na esquina, mercearia do senhor Amaral, descarregava a camioneta da Coca-Cola. Eis que surge do nada um chimpanzé. Foge a boa gente, fecha-se a mercearia. O solitário chimpanzé sobe à camioneta, desata a partir garrafas e a ingerir a bebida capitalista, beiços feridos nos gargalos escaqueirados.

Ninguém, nem tu Victor, propôs um brinde ao nosso digno antepassado! E, todavia, estava ali, líquida, uma lição: livre, a natureza delicia-se com o capitalismo.

Para cortar pulsos

Isto é para se ler e ouvir de solidão em fogo. 

Não faço ideia. Talvez seja um bolero, talvez seja um blues. Sei que me cativa a electricidade da coisa. A electricidade não impede o derrame sentimental com laivos líricos. Nem impede o humor que nunca descamba na irrisão.

“No me llores mas” é o tema. O guitarrista, que agora mesmo acho o melhor do mundo, é Marc Ribot. A extraordinária banda é Los Cubanos Postizos.

E entretanto pus-me a ouvir “Aurora en Pekin” e começaram a aparecer-me cortes nos pulsos. Tem a beleza de uma lâmina.

A bela virgem

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Bica Curta servida no CM, 4.ª feira, dia 20 de Novembro

Foi antes da bica curta, século XIII. Após longa guerra, Luís VIII, católico rei francês, venceu uma seita herética. Voltava a casa, mas apanhou uma disenteria de alto lá que o baile não pára. O precário Serviço Nacional de Saúde da época declarou: a doença era do jejum sexual, dormir com uma virgem curava-o. Hesitariam os ministros de Costa, Macron ou Boris?  Não hesitaram os ministros do rei: meteram-lhe na cama uma bela virgem. O rei, com mansa gentileza, afastou-a. Preferiu morrer do que curar-se à custa de um pecado mortal.

Que pecados mortais se enfiam hoje na cama do poder? Afastarão com mansa gentileza as belas virgens?

É de Marx, um belo livro

Já se sabe que se é da Guerra e Paz eu publico sempre!

Em 2016, a Guerra e Paz publicou, por serem livros que serviram de bandeira ideológica a grandes movimentos nacionalistas ou internacionalistas, uma trilogia que incluiu o Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, o Mein Kampf, da Adolf Hitler, e o Pequeno Livro Vermelho, de Mao Tsé-Tung.

Os três livros foram precedidos por estudos críticos, situando historicamente o papel de cada um deles e as consequências, todas elas trágicas que os movimentos políticos, que deles se reivindicavam ou reivindicam, acabaram por gerar.

Curiosamente, essas edições críticas tiveram uma extraordinária receptividade junto dos nossos leitores, obrigando a editora a reeditá-los. É esse êxito que vamos recordar nos próximos dias, trazendo aqui excertos dos textos críticos que os enquadram, a começar pelo Manifesto Comunista.

No texto de introdução de Manuel S. Fonseca lê-se:

«Publicado originalmente em língua alemã, o Manifesto coincide com a Primavera dos Povos, fogueiras da revolta a arderem por toda a Europa, com revoluções na Alemanha, França, Itália, Império Austríaco, Hungria, Polónia, Ucrânia, Dinamarca. O Manifesto não foi o rastilho dessas revoluções, cujos agentes não o podiam ainda ter lido. O texto de Marx, participando do ar dos tempos e exprimindo a sua Angst, era um texto ilustremente desconhecido das massas  revolucionárias que protagonizaram essas insurreições, com excepção de parte dos  revolucionários e operários alemães que, esses sim, podiam ter acedido às teses de Marx, fosse na edição em livro referida, fosse nas diferentes edições do jornal Neue Rheinische Zeitung, editado por Marx. Extintos os fogos e os ímpetos revolucionários de 1848, parecia ter-se apagado a luz do Manifesto. Durante duas décadas não teve mais leitores do que o mais obscuro poema de Hölderlin. Tudo indicava que o «comunismo crítico» corria o risco de se converter numa peça política e filosófica que a História varreria para debaixo do seu obtuso tapete.

Foi outra revolução a dar gás, ou carvão (metáfora talvez mais adequada à nascente Revolução Industrial), às teses de Marx e Engels. A praxis precedeu – ou pelo menos legitimou – a teoria. Em plena Guerra Franco-Prussiana, as massas populares parisienses, sentindo-se traídas pela capitulação do Governo francês perante o exército invasor, sublevam-se, submetendo a Guarda Nacional, e instauram, a 18 de Março de 1871, o primeiro governo operário da História, a Comuna de Paris. Sonho, utopia, grito de sofrida e patriótica revolta, a Comuna de Paris teve vida curta: 62 dias que acabaram num rio de sangue e morte. As tropas francesas, feito o armistício com os alemães, assaltaram Paris, a 21 de Maio, e mataram 20 mil dos seus cidadãos, prendendo outros 40 mil, muitos dos quais viriam a ser executados, numa semana de barbárie e pesadelo.

Marx foi um incansável paladino da Comuna. Por essa altura, o filósofo era membro da Primeira Internacional, integrando o comité central, e já publicara O Capital, mas sobretudo a Contribuição para a Crítica da Economia Política, que fora um enorme êxito teórico e editorial. Com a defesa da Comuna, Marx avalizou e procurou dar corpo teórico à insurreição violenta e armada que, bandeira vermelha ao fresco vento de Paris em Março, se converteu no primeiro governo da História a declarar que exercia o poder «representando o interesse dos trabalhadores». No ano anterior, com a Guerra Franco-Prussiana em curso, Marx incitara os trabalhadores a apoiar o governo burguês republicano que, em Setembro de 1870, depusera Napoleão III. Menos de seis meses depois, a rápida evolução dos acontecimentos leva-o a dar suporte teórico à tomada revolucionária do poder. E o Manifesto voltou a ser lido.»

E mais adiante:

«Movido por uma concepção materialista da Histó­ria, o Manifesto apresenta, e esse é um dos elementos que permanece válido hoje, uma análise que nos mete pelos olhos dentro o dinamismo das relações de produ­ção capitalistas e as suas conquistas civilizacionais. (As viagens marítimas portuguesas são uma dessas con­quistas – com referência explícita de Marx à passagem do cabo da Boa Esperança.)

Outro elemento surpreendente para o leitor actual é ver como hoje, muito mais do que em 1848, é certeira a descrição de um mercado global, com o desapare­cimento de fronteiras e com um desenvolvimento ini­maginável dos transportes e das comunicações. Marx é mais profeta e mais visionário do que os poetas, do que um Blake, por exemplo: em 1848, o profeta Marx teve uma visão perfeita da actual globalização. Parecia estar a falar do presente e estava, afinal, a descrever o futuro.

Onde é que as previsões do Manifesto falharam? Clamorosamente, na previsão de uma queda próxima do capitalismo, que Marx via exangue e à beira de uma crise que uma revolução à escala europeia se prepa­rava para varrer. Falhou, por isso, a previsão da vitó­ria inelutável de um proletariado ao que o capitalismo reservaria apenas um futuro de pauperização. Mesmo o carácter revolucionário (e redentor) do proletariado, como Marx o via, não se cumpriu e, se uma parte do proletariado engrossou as hostes dos partidos co­munistas, ao longo do século XX, largos e maioritários segmentos da classe operária fizeram escolhas refor­mistas, militando em partidos que, para usar uma ex­pressão portuguesa recente, são do «arco da governa­ção». E grande parte dos «10 mandamentos» que são as reivindicações de Marx no Manifesto foram reali­zadas, sem sangue, pelas democracias parlamentares que estes partidos reformistas criaram.»

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