Sejam bem vindos a 2021

Um percalço tirou-me do mês de Dezembro. Quase 25 dias desse mês de 2020, que agora acaba, não foram meus. Ou, se me quiser confessar ao mais secreto dos vossos ouvidos, nunca tantos dias de um mês tinham sido tão obsessiva e defensivamente meus.
Foi, chamemos-lhe um percalço. Por bem mais dramáticos e perigosos percalços passam todos os dias os meus e nossos irmãos humanos.
Volto. Com esperança em 2021. Com esperança na ciência, na inteligência, na elegância, nessa fusão carnal e espiritual que nos une. Ou que nos separa quando nos deve separar. Sejam bem vindos a 2021

A Cama de Salazar e de Cunhal

Mestres do confinamento, Cunhal e Salazar seriam peixes gordos nas águas turvas desta pandemia. É o que penso, depois de pousar na mesinha de cabeceira o “Três Retratos”, de António Barreto. Contra e ao lado do mundo cerrado e policiado que eles, Cunhal e Salazar, ruminavam nos seus sonhos secos, houve um outro mundo.

Ao bom povo deste planeta pandémico, que enche a boca com a visão sanitária de um mundo rigorosamente vigiado, a que Cunhal e Salazar não fariam fine bouche, eu lembro que houve outro mundo, feliz e húmido. Era um mundo de muitas gerações, entre elas a minha. Dou-lhe um nome: mundo de Roger Vadim. Habitavam-no seres mitológicos a que a História deu o nome de Brigitte Bardot e Jane Fonda.

O segredo da felicidade está em como tudo começa. Da primeira vez que Vadim amou a nua e adolescente Bardot, ela quis saber se já era mulher. “És 25%!” À segunda, e à repetida pergunta, o ofegante Vadim, disse-lhe: “Já és 75%”. À terceira, consumado o que consumado tinha de ser, bastou a Vadim acenar com a cabeça para que a linda BB viesse à varanda de um quartinho de St. Germain de Prés e proclamasse a toda a margem esquerda do Sena: “Já sou mulher, já sou mulher”. St. Germain, desconfinado e livre, aplaudiu e gritou ao ver à varanda a incauta Bardot deliciosamente nua.

Jane Fonda veio filmar a Paris. Estremeceu nela um vulcão quando conheceu Roger Vadim. Filmava e soube que ele estava no café ao lado. Correu pelo estúdio, batido por uma chuva de 1963, e entrou desabrida na cafetaria. Sentou-se à mesa dele. Eis o que Vadim viu: o mesmo seio ofegante que faz uma das melhores páginas de um romance de velhice de Philip Roth. Vadim seguiu o seio arfante. Na cama, durante duas semanas, aconteceu ao fálico Vadim uma coisa que designarei com termo roubado ao calão brasileiro: Vadim broxou. Mas Jane, filha de Henry, com aquela persistência que depois dedicaria ao Vietnam, não desistiu. E eis que o relâmpago primordial se reacende e ergue em Vadim: durante dois dias e duas noites trocaram sem cessar vírus, bactérias, gotículas e aerossóis num sumptuário comércio kamasútrico.

Se ainda sei o que quero dizer, eis o que tenho a dizer: não havia máscaras e havia festas. Vadim e Fonda viveram em Paris, Roma e Los Angeles. Nas festas juntaram mais gente do que numa feira do livro: Marlon Brando, Gore Vidal, Sharon Tate, Simone Signoret ou Norman Mailer, mesmo Andy Warhol. Eram cem ou mais: juntava-os a conversa, a alegria, a orgíaca troca de fluídos, algum ácido e muitíssima droga.

O mundo puritano que se insinua, rastejante, por baixo das portas fechadas, é o mundo que rejeita o estrangeiro, a desconhecida. Era outro o mundo de Vadim. Um dia, com Bardot, recolheram a namorada abandonada de um amigo deles. Mal a conheciam, a não ser que se chamava Ursula Andress. Logo Vadim a meteu na cama da Bardot. Mas a amada pouco inclinada a triângulos, só quis conversar. Ele sentado num cadeirão e elas numa nudez de meninas, a rir e a dizer tolices que tomara as Confissões de Santo Agostinho.

Jane Fonda, sim. Um dia Vadim trouxe uma call girl ruiva, de alta voltagem, recomendada por Madame Claude, senhora do melhor bordel de Paris. Jane confessou: “Atirei-me ao ménage à trois com a competência e o entusiasmo da actriz que sou.”

Aos pandémicos convertidos e militantes lembro que já houve um mundo de liberdade. E que a liberdade só o é plenamente se também for trivial e lúdica. Demonstra-o António Barreto: essa liberdade não é cama em que se deitassem Salazar ou Cunhal.

Publicado no Jornal de Negócios

Alain e Myriam

Outro ciclo de um então incontornável cineasta foi o que, na Cinemateca, dedicámos ao suíço Alain Tanner. Eram tempos de cidade branca. Alain trouxe com ele uma das suas actrizes favoritas, Myriam Mézières. Eu consegui pô-los a olhar para o alto.

Há no palacete da Cinemateca uma inscrição em árabe, que o director da Cinemateca do Egipto (ou de Marrocos?) em visita, me disse ser o começo da primeira sura do Corão: “Em nome de Deus, Clemente, Misericordioso, todos os louvores são para Deus, o Senhor de todos os Mundos.” É isso o que lhes estou a dizer e eles a gostar de ouvir.

Depois, Tanner, que hoje tem 91 anos, assinou o livro de honra, e Myriam beijou-o deixando numa página a indelével marca do batom dos seus lábios: um beijo perfeito. Na sessão que se seguiu, Myriam, que agora tem 71 anos, fez um número extraordinário: não me lembro se uma esparregata, se um flic-flac, pondo em delírio a sala esgotada que os veio ver. O mundo já teve dias divertidos. E há de voltar a tê-los.

O peito adolescente

Ainda o rabo de Salazar não se sentara em cadeira de São Bento e já Graham Greene tinha um revólver. Há cem anos, Greene trazia no peito adolescente a desmesurada depressão que o fazia beijar as maminhas do tédio e a púbis do desespero. O rabo de Salazar era de Salazar, mas o revólver de Greene era do irmão. Descobrira-o numa gaveta e fez dele amante ou refrigério. Relação amorosa perversa: Greene traía o amor fraterno, esfregando-se no revólver roubado.

Desamado pelos colegas de escola, bipolar ou só deprimido, Greene tirava o revólver do bolso e, num arroubo romântico, encostava o cano à têmpora. Tinha antes metido uma só bala e rodado o cilíndrico tambor de cinco munições, entregando o seu destino às mãos do acaso. Não fechem os olhos e vejam: o dedo de Greene tira a tensão do gatilho e agora aperta-o sem dó à espera do tiro. Ouve-se o clique seco da câmara sem bala.

Greene lavava a adolescência nesta roleta russa, jogo de casino místico. Ouçam-no: “Lembro-me de ser tocado por um prodigioso sentido de júbilo, como se um carnaval de luzes incendiasse de repente uma ramelosa viela escura. Pulava-me o coração na sua gaiola, e a vida parecia conter uma girândola de infinitas possibilidades…”

Contraponho com a minha biografia de rodapé: tinha 21 anos quando fui senhor e dono da minha primeira e única pistola, uma Star. Já tivera duas metralhadoras, uma G3 e uma Vigneron, e eis o que digo: a metralhadora é a anti-arma, impessoal, uma apoteose da logística e do colectivo. Só a singela pistola é pessoal e intransmissível. Rodei a Star em cima da mesa, levei-a a jantar e em viagens de circo e breu, mas, ainda inconhecedor da roleta russa, nunca lhe prestei essa surda paixão que despejava adrenalina na cabeça, coração e estômago de Greene. Num obscuro fio de rua de Oxford, atrás das negras árvores do Inverno inglês, o subreptício Greene enfiava o cano frio do revólver no ouvido latejante e disparava. Sobrevivente, inspeccionava depois o tambor para descobrir às vezes que a única e singela bala estava na câmara que seria agora a da posição de fogo.

De roleta em roleta, Greene confessa que foi passando da paixão cósmica à reles concupiscência e, no Natal de 1923, o rabo de Salazar ainda em Coimbra ou a uma lareira de Santa Comba Dão, o futuro espião do MI6 e autor de “O Terceiro Homem” e “O Poder e a Glória” despediu-se desta espasmódica forma de amor: uma droga de cano gélido e melancólico clique em ruas vadias. Nunca mais.

Exceptuando a mão de Greene, a trémula mão do escritor não foi feita para a pistola. Olhem para a mão do falso comunista Maximo Gorki, que se andou a roçar por Lenine, mais do que qualquer escritor nacionalista português por Salazar, e depois, tendo querido ser a consciência moral de Estaline, acabou a branquear torturas, campo de concentração e trabalhos forçados, vomitando esta frase suicida: “…a bem sucedida reabilitação dos antigos inimigos do proletariado.” Sim, quisera matar-se aos 19. Pôs a pistola pusilânime encostada ao coração e disparou. Bailarina incerta, pistola sobre o alvo, essa mão de Gorki falhou o nebuloso coração e mandou a bala alojar-se-lhe no pulmão!

Mão bêbada era a de William Burroughs: a replicar a lenda de William Tell, disparou sobre um copo na cabeça de Joan Vollmer, musa da beat generation, falhando o copo e matando a musa. Firme como a de Greene era a mão de Hemingway: sem devaneios lúdicos, disse adeus às armas disparando uma espingarda Boss de dois canos. Na sua boca, inescapável beijo de pólvora e aço.

Tom Zé: para rir é preciso chorar

Quantas vidas tem Tom Zé? Vamos lá, Tom Zé já tinha vida quando a família, moradora em Irará, na Baía, ganhou um qualquer Euromilhões brasileiro. Foi logo outra vida. A terceira foi a descoberta do violão e da música. Nos anos 60, saído da escola de música, impressentido intelectual escondido num físico débil, Tom Zé foi uma figura de proa do tropicalismo, ombro com ombro com Caetano, Gil e essa tal Gal ou também Betânia.

Fosse por ser quem é, flor que de vez em quando não se cheire, apagaram-no da história e não sei em quantas vidas já vamos.  Chamaram-lhe o Trotsky do tropicalismo, mas como ninguém lhe deu com a picareta, David Byrne ressuscitou-o, muitos anos depois, já Tom Zé ia nuns cadavéricos 50 anos. Levou-o, ou à música dele para Nova Iorque. E deu outra vida a Tom Zé: em 1998, o New York Times elegeu o álbum dele desse ano como um dos dez melhores do ano.

Mas eu só queria que ouvissem a delícia que é Se o Caso é Chorar prodigiosa canção sentimental e totalmente assentimental.

E queria ainda mais que ouvissem esse maravilhoso exercício de desconstrução, feito com esses duros materiais que são a inteligência e a ironia. Ouçam e considerem que é já prendinha de Natal.

Samuel Fuller

Sei que tenho mais umas fotos com Samuel Fuller, de quem fui também “guia” no ciclo que a Cinemateca lhe dedicou e de cujo catálogo e logística o João Bénard me encarregou. Não sei é onde é que as meti. O ciclo foi uma revelação, com a descoberta de parte significativa, se não a maioria dos seus filmes, para a quase totalidade da cinefilia portuguesa e da douta crítica (moi-même, armado aos cucos, também incluído).

Nessa altura defendi junto do João Bénard que, em boa verdade, os catálogos dedicados a cineastas deviam ser feitos depois do ciclo e não antes, vistos e revistos os filmes e as obras completas. Mas isso são minudências: o que conta é que o Fuller era um tipo felicíssimo e americaníssimo, dessa América de outros tempos pela qual eu me batia aos pulos. Veio cá filmar, com produção executiva do António da Cunha Teles, um filme para esquecer, mas com uma obviamente nuíssima Godiva, a cavalo, filmada numa noite fria, ali entre a Feira da Ladra e São Vicente de Fora. Devo-lhe o mais belo par de lágrimas que já vi no cinema. O par de lágrimas rola pela cara barbuda de um soldado, em Merril’s Marauders, tombado pela exaustão de marchas foçadas, que acorda com um miúdo birmanês sorridente a tentar alimentá-lo, metendo-lhe bagos de arroz pela boca abaixo. A singela humanidade desse gesto, a silenciosa compreensão vital daqueles dois seres humanos é das coisas mais belas e comoventes que já vi. Um dia, em homenagem a este Fuller tão amável e tão americano, tenho de voltar a rever essa cena.

Em pele humana

o livro de James Allen

James Allen assaltava a cavalo. Um dos encantos dos caminhos e das estradas americanas do começo do século XIX era o assalto e a dignidade social do roubo. O roubo tinha de ser aspiracional: todo o americano queria ser roubado pelo salteador a cavalo. O vexame era ser roubado pela escória da bandidagem, o salteador apeado.

John A. Fenno sentiu-se roçado por um halo da sofisticação quando, numa encruzilhada de poeira e sol, lhe surgiu o salteador James Allen. A cavalo. Fenno tomou, então, uma decisão que lhe reservaria lugar na História: resistir.

Pouco tempo depois, Allen, o salteador, malhava, pele e ossos, na prisão. Uma tuberculose não o deixou chegar sequer aos 30 anos de idade. Antes de morrer, escreveu as memórias e evocou Fenno, o único e bravo homem que lhe fizera frente num assalto. Mandou que lhe entregassem um exemplar do livro encadernado em pele. A sua.

Das costas de Allen, acabadinho de morrer, foi destacado um vasto pedaço de pele que, no curtume local, se tratou para que parecesse pele de veado. O inocente encadernador fez, depois, o seu trabalho: assaltaram-no pesadelos quando soube que era pele humana. Mas Fenno recebeu o livro. E o livro é, há mais de um século, a coqueluche da biblioteca do Boston Athenaeum.

 À prática das encadernações em pele humana chama-se bibliopegia antropodérmica. Há treze encadernações cientificamente atestadas, todas do século XIX e XX, mas há rumores de que, na Revolução Francesa, uma Constituição e uma Declaração dos Direitos do Homem teriam sido encadernadas com a pele aristocrático-reaccionária dos partidários do Ancien Régime. Esses exemplares, um caso de velhaca ironia, estão no Museu Carnavalet, em Paris, no belíssimo Marais, não tendo sido certificada a origem humana da encadernação.

Humaníssima pele, de homem ou mulher branca, é a da encadernação da “Dança da Morte”, livro que reúne crudelíssimas, inclementes e satíricas xilogravuras do pintor renascentista alemão Hans Holbein. A incansável morte arrebata o burguês e o lavrador, o comerciante e a duquesa, abade, abadessas, mesmo o Papa. Essa desapiedada e esquelética morte bailarina pode espetar um lança na barriga ao cavaleiro, arrastar a duquesa da cama, dançar com a dama, levar pela mão a criança. O exemplar guardado na Universidade de Brown foi encadernado, no século XIX, em pele humana, incrustada com marroquim preto e decorada com flechas, cabeças mortas e ossos dos dedos. Tudo isso fechado num elegante estojo de tecido preto.

Na pele de uma fedorenta doninha foi como o capitão Maurice Hamonneau, irreverente bibliófilo, encadernou o seu exemplar do “Mein Kampf”, de Adolf Hitler. Mas vejam, um livro salvara-lhe a vida. Na I Guerra, durante um ataque, tombou baleado. Quando despertou, deu conta que a bala que o devia ter abatido, fora deflectida por um exemplar de “Kim”, o romance de Rudyard Kipling. As últimas 20 páginas de “Kim” pararam a sua dança da morte. Ficou amigo de Kipling e foi viver para Nova-Iorque. Ganhava a vida a encadernar livros com pele de serpente, de elefante ou mesmo pele humana, no caso para um livro sobre doenças de pele.

Eugène Sue, folhetinista e romancista, juntava à sua elegância e sedução, a considerável herança que o pai lhe deixara. Choviam sobre ele amantes, na Paris do meio do século XIX. Uma delas, sentindo-se a dançar com a morte, pediu-lhe uma última homenagem: que lhe usasse a pele para encadernar o próximo livro. Eugène cumpriu: um exemplar do seu “Vignettes: Mystères de Paris” tinha por capa a pele da amada.

E digam agora que a humanidade não traz a literatura na pele.

Publicado no Jornal de Negócios

São pretos os azulejos de Pedro Bidarra

Os Azulejos do Pedro

Depois da viva recensão de Manuel Falcão, no Jornal de Negócios, e da boa recensão de António Costa Santos, na Antena 2, que acabava com um sonoro aviso aos leitores – “é pena se não for lido” – hoje, o Expresso inclui Azulejos Pretos nos dez livros a ler e oferecer este Natal.

Leio a última frase da recensão de Luísa Mellid-Franco: “Um romance cáustico e desafiador, que ficará cravado no espírito do mais cético leitor.” Eu, enquanto editor deste romance, Azulejos Pretos, de Pedro Bidarra, confesso: não podia estar mais de acordo!

Não lhe posso dar murros

Kinuyo Tanaka

A nostalgia da mãe. Tal como John Ford, em cuja boca nunca entrou e ainda menos saiu a palavra “nostalgia”, mas que tinha nostalgia de tudo, o japonês Kenji Mizoguchi reclama a nostalgia da mãe.

Mizoguchi foi o realizador de filmes como “A Vida de O’Haru”, “Os Contos da Lua Vaga” e “Os Amantes Crucificados”, a que a minha geração ajoelhou e rezou, mesmo sem saber nada do Japão na maioria dos casos, horda ignorante a que pertenço, e que escutar até às três da matina o cineasta Paulo Rocha, à porta da Cinemateca, a perorar sobre o sensual roçagar de um quimono, não releva.

Mas deixemos a ignorante boca aberta com que lhe vimos os filmes, para ouvirmos Mizoguchi. O pai tinha um negócio e faliu. Correu mal e desatou a beber ou já bebia e correu mal. E se uma falência não é soneto que se cheire, a emenda foi pior. O pai vendeu a irmã de Mizoguchi a uma casa de gueixas, alindado termo étnico que usamos, com acordes de shamisen, para não lhes chamar putas.

Isto sim é o começo de um romance que nunca mais lhe largou a vida e a obra. Afirmava ser um homem violento e os filmes dele estão impregnados de funda tristeza. Há outros filmes carregados de tristeza na história do cinema, mas a tristeza de Mizoguchi é lentíssima, feita de longos planos e movimentos de encenação milimétrica. O perfeccionismo com que cantou essa tristeza, arrancou-o ele a golpes autoritários e murros dados a técnicos e actores. Com uma ressalva: “… mas se é uma actriz, por muito que me zangue, não lhe posso dar murros!”

Todo o autoritarismo gera lealdade e relações apaixonadas, como a de Mizoguchi com Kinuyo Tanaka, actriz de 15 filmes dele, que arrancou os dentes todos para, rameira de baixo coturno, parecer velha e desdentada no final da “Vida de O’Haru”, jurou o já tão falecido Paulo Rocha.

Ninguém sabe se foi a nostalgia da mãe, se o trauma da venda da irmã, mas o fascínio pela mulher vítima, e um certo prazer na contemplação dela vítima, é a cama em que mais vezes se deita o cinema de Mizoguchi. Das camas em que se deitou ele mesmo, sabe-se que levou a mulher à loucura e a meteu num asilo, passando a viver com a irmã mais nova dela. Andaria nisso o fantasma da irmã gueixa?

A nostalgia da mãe confessou-a com esta candura: “Gosto de mulheres gordas. Talvez por a minha mãe ser gorda e ter morrido, era eu ainda jovem. Parece ridículo dizê-lo, prefiro as gordas. Sim, atraem-me muito.”