Em pele humana

o livro de James Allen

James Allen assaltava a cavalo. Um dos encantos dos caminhos e das estradas americanas do começo do século XIX era o assalto e a dignidade social do roubo. O roubo tinha de ser aspiracional: todo o americano queria ser roubado pelo salteador a cavalo. O vexame era ser roubado pela escória da bandidagem, o salteador apeado.

John A. Fenno sentiu-se roçado por um halo da sofisticação quando, numa encruzilhada de poeira e sol, lhe surgiu o salteador James Allen. A cavalo. Fenno tomou, então, uma decisão que lhe reservaria lugar na História: resistir.

Pouco tempo depois, Allen, o salteador, malhava, pele e ossos, na prisão. Uma tuberculose não o deixou chegar sequer aos 30 anos de idade. Antes de morrer, escreveu as memórias e evocou Fenno, o único e bravo homem que lhe fizera frente num assalto. Mandou que lhe entregassem um exemplar do livro encadernado em pele. A sua.

Das costas de Allen, acabadinho de morrer, foi destacado um vasto pedaço de pele que, no curtume local, se tratou para que parecesse pele de veado. O inocente encadernador fez, depois, o seu trabalho: assaltaram-no pesadelos quando soube que era pele humana. Mas Fenno recebeu o livro. E o livro é, há mais de um século, a coqueluche da biblioteca do Boston Athenaeum.

 À prática das encadernações em pele humana chama-se bibliopegia antropodérmica. Há treze encadernações cientificamente atestadas, todas do século XIX e XX, mas há rumores de que, na Revolução Francesa, uma Constituição e uma Declaração dos Direitos do Homem teriam sido encadernadas com a pele aristocrático-reaccionária dos partidários do Ancien Régime. Esses exemplares, um caso de velhaca ironia, estão no Museu Carnavalet, em Paris, no belíssimo Marais, não tendo sido certificada a origem humana da encadernação.

Humaníssima pele, de homem ou mulher branca, é a da encadernação da “Dança da Morte”, livro que reúne crudelíssimas, inclementes e satíricas xilogravuras do pintor renascentista alemão Hans Holbein. A incansável morte arrebata o burguês e o lavrador, o comerciante e a duquesa, abade, abadessas, mesmo o Papa. Essa desapiedada e esquelética morte bailarina pode espetar um lança na barriga ao cavaleiro, arrastar a duquesa da cama, dançar com a dama, levar pela mão a criança. O exemplar guardado na Universidade de Brown foi encadernado, no século XIX, em pele humana, incrustada com marroquim preto e decorada com flechas, cabeças mortas e ossos dos dedos. Tudo isso fechado num elegante estojo de tecido preto.

Na pele de uma fedorenta doninha foi como o capitão Maurice Hamonneau, irreverente bibliófilo, encadernou o seu exemplar do “Mein Kampf”, de Adolf Hitler. Mas vejam, um livro salvara-lhe a vida. Na I Guerra, durante um ataque, tombou baleado. Quando despertou, deu conta que a bala que o devia ter abatido, fora deflectida por um exemplar de “Kim”, o romance de Rudyard Kipling. As últimas 20 páginas de “Kim” pararam a sua dança da morte. Ficou amigo de Kipling e foi viver para Nova-Iorque. Ganhava a vida a encadernar livros com pele de serpente, de elefante ou mesmo pele humana, no caso para um livro sobre doenças de pele.

Eugène Sue, folhetinista e romancista, juntava à sua elegância e sedução, a considerável herança que o pai lhe deixara. Choviam sobre ele amantes, na Paris do meio do século XIX. Uma delas, sentindo-se a dançar com a morte, pediu-lhe uma última homenagem: que lhe usasse a pele para encadernar o próximo livro. Eugène cumpriu: um exemplar do seu “Vignettes: Mystères de Paris” tinha por capa a pele da amada.

E digam agora que a humanidade não traz a literatura na pele.

Publicado no Jornal de Negócios

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