Mil palavras não fazem uma árvore

Mil palavras

Vem aí um programa de televisão que começa logo por nos sobressaltar com o título: Mil palavras não fazem uma árvore. Eu tenho, é claro, de fazer declaração de interesses: a autora do programa é minha autora na Guerra e Paz editores.
É já na próxima 5.ª feira, na RTP 2, à meia-noite em ponto. A Eugénia de Vasconcellos fará nesse dia a primeira de 13 entrevistas a personalidades ligadas à cultura portuguesa.
Falamos na 5.ª  para combinarmos ver juntos.

Vénus em larga escala

Quando escrevi o que aqui escrevi sobre Manet e Ticiano, devia ter feito justiça ao modelo inicial, à primeira representação numa tela de larga escala (um metro e oito por um e setenta e cinco) de uma Vénus em total e abençoada nudez. Pintada por Giorgione, pintor que se funde coma Veneza do seu tempo.

Vénus
Vénus adormecida

Antes de Ticiano (que terá finalizado o quadro por morte de Giorgione), por mais que a mão tape, ou porque tanto a mão tapa, o que esta adormecida Vénus reclama é o nosso olhar. Mesmo que feche os olhos ou, por isso, fecha os olhos.

É Vénus, mas de Veneza, duma cidade rica, católica e insolente. Ainda é Vénus, como poderia ser a Virgem se a Virgem pudesse ser pintada nua. Ainda é Vénus mas já é o corpo de uma mulher. Ticiano, levando-a para o interior da casa, deitando-a no leito conjugal como dama despida, completou essa lavagem do olhar.

Mas sem Veneza, sem a sensualidade e liberdade de Veneza, “cidade das mil e uma noites do catolicismo” como Sollers a chamou, não teríamos aqueles olhos fechados, aquela Vénus adormecida. Madame de Pompadour terá perguntado a Casanova, numa noite de Paris, “Você, vem lá de baixo, não é?”. E Casanova, gentil “Veneza não é lá em baixo, é lá em cima, Madame!”
Venetian-school-of-art

A alegria epiléptica

empire
Cadil­lac of the skies

É afro­di­síaca mesmo que quem a sinta não saiba quem raio seja Afro­dite. Falo da grande ale­gria, daquela que já não cabe no corpo, dessa ale­gria que nos estre­mece, enche e esvazia os pul­mões. A ale­gria con­vulsa.

Ima­gi­nem um campo de pri­si­o­nei­ros. Jim, um miúdo inglês, cres­ceu ali, meio-protegido, meio-abusado, por dois cor­ré­cios ame­ri­ca­nos. Cres­ceu entre o des­dém e a humi­lha­ção dos guar­das japo­ne­ses.

O campo de pri­si­o­nei­ros já é o deserto de toda ale­gria. Mas o campo de pri­si­o­nei­ros que sofre o ata­que da nossa pró­pria avi­a­ção é o pan­de­mó­nio dos sen­ti­men­tos, a lágrima de san­gue que trans­borda do cálice. Só o Pai que sabe­mos tem a cru­el­dade de dar esse cálice a um Filho.

É o que acon­tece em “Empire of the Sun”, filme de Ste­ven Spi­el­berg. Há um ata­que aliado. Um Chris­tian Bale novi­nho, o actor que dá corpo a Jim, corre eufó­rico para o telhado meio-destruído de uma das cons­tru­ções do campo de con­cen­tra­ção.

Lá em cima, salta, abraça-se a si mesmo, treme de exci­ta­ção, res­pira forte para não sufocar e explode num grito e num riso epi­lép­ti­cos. O mundo suspende-se, o movi­mento quase pára para dei­xar voar a beleza fan­tás­tica de um avião de fogo e morte.

O pin­dé­rico ingle­si­nho sobre­vi­vente berra: “P-51 Cadil­lac of the skies”. Vénus quando era vir­gem, Deus nosso senhor, a ino­mi­ná­vel Beleza, não seriam sau­da­dos com mais exaltação e exul­ta­ção. Jimmy salta de cos­tas, salta de frente, enquanto as bom­bas rebentam com tudo à sua volta. “P-51 Cadil­lac of the skies”, ó ale­gria de um catano: o fogo, a morte, a des­trui­ção, sabem-lhe a vitó­ria. O avião dos seus sonhos, que os seus dedos quase tocam fisi­ca­mente, arrasa de vez o mundo em escom­bros onde sobre­vive. Tudo morre, mas tudo morre para que ele renasça.

A ale­gria con­vulsa, epi­lép­tica, é pri­vi­lé­gio de cri­ança. Tem de ser inau­gu­ral. Lembro-me da minha pri­meira vez, dos sin­to­mas e do devas­ta­dor ata­que. Conto.

mar
o infi­nito len­çol oscilante

A pri­meira vez que eu vi mesmo o mar foi já no meio do Oce­ano Atlân­tico. De Angola, o meu pai cha­mava os meus 5 anos e lá iam eles agar­ra­dos à saia da minha mãe e a toque de caixa da minha irmã. O pouca-terra, pouca-terra, numa tarde de ver­me­lhís­si­mas cerejas, trouxera-nos da Beira fria, farta e feia. Em Lis­boa, Cais da Rocha, tínha­mos entrado no Vera Cruz, então sofis­ti­cado tran­sa­tlân­tico. Des­ce­mos logo ao cama­rote e quando vol­tá­mos a subir – no dia seguinte? –cercava-nos um vasto tapete ondu­lado, de um azul inú­til e livre. Flu­tuá­va­mos num infi­nito len­çol osci­lante: Hou­dini tinha escondido a terra.

Os pul­mões não me cabiam no peito de con­ten­tes; em riso e lágri­mas até pelos olhos os pul­mões me saíam. Dizem que é a ple­ni­tude. Gos­tava de me lem­brar melhor, se era igual o azul de céu e mar, se havia vento, quase nenhu­mas nuvens, e se can­ta­vam sereias ou sonhava já contigo.

Gangsters

bugsy

 

A 21 de Março de 1992 escrevi, no Expresso, esta cronologia para acompanhar a estreia de três gangsters movies. Houve uma coisa que, na altura, me impressionou: em todos os filmes – The Mobsters, Billy Bathgate e Bugsy – os gangsters primavam pela elegância. Vestiam-se bem e uns tipos que se vestem bem merecem, acho eu, algum crédito. Olhem, merecem que se lhes faça a folha, que foi exactamente o que eu lhes fiz.
E hoje, a continuarmos a cronologia, a quem teríamos de fazer a folha?

Os dias dos gangs
Manuel S. Fonseca

1920
A 17 de Janeiro, a Constituição americana declara ilegal o consumo ou o fabrico de bebidas alcoólicas. Os bandos criminosos, que detinham já o controlo do jogo ilegal e da prostituição, chamaram ao decreto música para os seus finos ouvidos. Estavam garantidos anos de vacas gordas. A aura do gangster, com estilo de vida faustoso, pairando com displicência acima da Lei, ia atingir extremos nunca sonhados. De Roaring Twenties, de Raoul Walsh, a Some Like it Hot, de Billy Wilder, o tema da Proibição constitui-se também como um maná cinematográfico, susceptível de um leque variado de tratamento, da tragédia à comédia.

1921
Johnny Torrio, patrão do maior bando de Chicago, contrata um pistoleiro de Nova Iorque. Duas cicatrizes paralelas, na cara, justificam a alcunha: «Scarface». De seu nome Al Capone, este homem nascera em Castel Amaro, perto de Roma, em 1895. Quatro anos depois de chegar a Chicago, já era o patrão do crime organizado na cidade, controlando também o tráfico ilegal de bebidas alcoólicas em todo o país. «Sou um benfeitor público», respondia ele à polícia que o elegeu como Inimigo Público nº 1. Revelou sempre total consciência da sua imagem pública, afirmando mesmo que fora consultado sobre o guião final de Scarface (32), de Howard Hawks, cuja personagem principal, interpretada por Paul Muni, se baseia na sua vida. Little Caesar (30), de Mervyn LeRoy, é outro dos grandes filmes de gangsters, em que o protagonista, incarnado por Edward G. Robinson, foi modelado em parte na sua biografia. Al Capone (59), de Richard Wilson, permitiu a Rod Steiger uma convincente interpretação da figura lendária desse gangster que morreu em casa, na cama, após oito anos de doença contraída em outros tantos anos passados na prisão, cumprindo pena aplicada por evasão fiscal. Outros Capone foram Neville Brand, Barry Sullivan, Jason Robards e Robert De Niro, respectivamente em The Scarface Mob (58), de Phil Karlson, The Gangster (47), de Gordon Wiles The St. Valentine’s Day Massacre (68), de Roger Corman e The Untouchables (87), de Brian De Palma.

1926
Hymie Weiss, o patrão dos «gangs» do Norte de Chicago, é abatido numa florista, em operação concebida por Al Capone. A personalidade de Weiss, um tipo de grande coragem física e dado a fúrias repentinas, serviu a William Wellman para esboçar a personagem principal de Public Enemy (31), interpretada por James Cagney.

1930
Estreia de Street of Chance, de John Cromwell, inspirado na vida e nos feitos de Amold Rothstein, um dos grandes patrões do crime organizado de Nova Iorque. Rothstein foi assassinado em 28. O cinema voltaria a tratá-lo em The Big Bankroll (59) e em King of the Roaring Twenties.

1934
Na noite de 22 de Julho, à saída do cinema Biograph, na Avenida Lincoln, de Chicago, John Dillinger foi abatido pelo FBI. Tinha acabado de ver Manhattan Melodrama, um filme de Woody van Dyke. A sua namorada, a famosa «lady in red» (que um filme como este título ficcionaria em 79), traíra-o, e Marvin Purvis, um obstinado detective do FBI, montara-lhe a armadilha fatal. No ano anterior, Dillinger roubara mais de 250 mil dólares. Meses antes da sua morte conseguira evadir-se da prisão de alta segurança, em Crown Point, utilizando os miolos (reputadamente excelentes) e uma pistola falsa. O Código Hays proibiu qualquer filme sobre Dillinger, tão forte era a sua aura mítica. Há, todavia, alusões breves em Public Hero no 1 (35). Mais próximo dos factos estava High Sierra (41), de Raoul Walsh, cujo herói, interpretado por Humphrey Bogart, se inspirava em Dillinger. Em 45, o recuo histórico autorizou já a saída de um filme-B intitulado Dillinger e, em 64, Young Dillinger retoma a biografia do gangster. Mas foi John Millius, com o seu Dillinger (73), e com a preciosa ajuda do actor Warren Oates, quem melhor lhe traçou a biografia. Outros Dillinger apareceram em filmes como The FBI Story (59), de Mervyn LeRoy, e Baby Face Nelson (57), de Don Siegel.

1935
História de amor com gangsters? Houve pelo menos uma paixão de arromba, a que «Big Jim» Colosimo, um gangster de Chicago, teve por Dale Winter, uma cantora (de dia na igreja, à noite no cabaret de Colosimo) com aspirações a diva de ópera. A paixão acabou em casamento. O enlace foi visto no «bas-fond» como um sinal de fraqueza de Colosimo, sinal reforçado pelas tentativas de «Big Jim» se tomar respeitável. Foi assassinado. Love Me Forever, de Victor Schertzinger, adaptou ao cinema essa história.

1939
Abe Reles, confessa ter levado a cabo vários assassínios, encomendados para um grupo ao serviço dos grandes gangs. O grupo passou a ser conhecido na América por «Murder Incorporated». Seguindo as indicações de Reles, o FBI descobre numa vala 56 corpos, mas Reles afiança ter «despachado» mais de 130. The Enforcer (51), com Bogart, e Murder Inc. (61), com Stuart Whitman, ficcionam a existência desse «serviço».

1942
O gangster Albert Dekker é convidado para vedeta de Yokel Boy, um filme sobre a sua própria vida.

1943
Depois do rapto, por um «gang», do filho do aviador Charles Lindbergh, que acabaria por ser assassinado, o Congresso deu carta branca a J. Edgar Hoover, o patrão do FBI, para um ataque ao crime organizado. Em poucos meses, Hoover eliminou grande parte das estruturas dos «gangs». O código Hays, em Hollywood, interditou também, nessa altura, os filmes sobre Dillinger ou outros bandidos, o que retirou publicidade e brilho à lenda desses gangsters.

1947
Em The Gangster, Gordon Wiles chama pela primeira vez «syndicate» à organização que reunia estrategicamente a Mafia italiana e judia de Nova Iorque. Era do domínio público que esse comité integrava criminosos como Joe Adonis, Willy e Solly Moretti, Albert Anastasia e Anthony «Tony Bender» Strollo. Os seus encontros tinham lugar no Duke’s Restaurant, junto a Palisades Park.

1952
O Governo americano reconhece a existência do «sindicato do crime», num relatório do Senador Estes Kefauver.

1957
Don Siegel serve-se de Mickey Rooney para fazer um retrato de adolescente retardado ao gangster Baby Face Nelson, no filme homónimo. Em 73, no Dillinger, de John Millius, a subida honra de fazer o papel desse gangster paranóico coube a Richard Dreyfuss.

1958
Roger Corman dá um pontapé nos factos e diverte as plateias dos «drive-in» com a biografia de «Machine Gun» Kelly, na comédia negra com o mesmo nome.

1959
Pretty Boy Floyd, realizado por Herbert J. Leder, é uma desinspirada versão da vida de Charles «Pretty Boy» Floyd, gangster que as canções de Woody Guthrie fizeram passar por um lavrador do Oklahoma forçado a entregar-se ao crime pela brutalidade da polícia. Floyd foi companheiro de Dillinger e de «Machine Gun» Kelly, surgindo, por isso, como personagem dos filmes que são dedicados a estes criminosos.

1961
Vic Morrow surge no papel de Dutch Schultz em Portrait of a Mobster, de Joseph Pevney. Segunda figura desse filme era outro gangster, Legs Diamond, interpretado por Ray Danton, o mesmo actor que fora já Legs no filme biográfico The Rise and Fall of Legs Diamond, dirigido por Budd Boetticher, e no qual Dutch Schultz era, por sua vez, segunda figura. Em Mad Dog Coll (61) e no Cotton Club (84), de Coppola, a personagem de Dutch Schultz volta a aparecer.

1967
The St. Valentine’s Day Massacre, de Roger Corman, aborda um episódio crucial da guerra entre os bandos de Chicago, que terminaria com a vitória total de Capone. Numa manhã do Inverno de 29, seis homens do bando de «Bugs» Moran, que dominava o lado Norte da cidade, foram abatidos a sangue-frio, contra a parede de uma garagem, por assassinos disfarçados de polícias e mandados por Capone. O «clássico» de Corman concentra-se no episódio, mas antes já outros filmes tinham utilizado essa famosa cena, a começar no Scarface, de Howard Hawks, até à citação cómica no Some Like it Hot, de Billy Wilder.

1968
Bonnie & Clyde, de Arthur Penn, propõe uma versão sublime da vida e tempo do famoso casal de gangsters. Clyde Barrow nasceu no Texas, em 1910, tendo descoberto bem antes dos vinte anos a sua vocação de criminoso. Os vizinhos contavam que, rapazinho ainda, Clyde fora apanhado a torturar animais, género partir uma asa a um pássaro e desatar a rir. Ou seja, a sua imagem real, sádico de personalidade e intelectualmente embrutecido, não corresponde minimamente à lenda cinematográfica que Fritz Lang, em You Only Live Once (37), evocou, através de personagem de ficção com um percurso semelhante, apresentado, juntamente com uma figura aparentada a Bonnie, como paradigma do par rebelde, cercado por um ambiente social hostil. A mesma lenda persiste em Gun Crazy (49), de Joseph Lewis. The Bonnie Parker Story (58), de William Witney, é, como o título indica, uma biografia directa, reportando-se mais objectivamente aos factos.

1969
Roger Corman retrata, em Bloody Mama, o gang constituído por «Ma» Barker (numa notável interpretação de Shelley Winters) e pelos seus quatro filhos. O bando tornou-se famoso nos anos 20, com assaltos a bancos em zonas rurais. A primeira baixa, ocorreu em 1927, com o suicídio (ou morte por ferimentos em assalto) de Herman. Arthur, outro dos filhos foi condenado a prisão prepétua, em 1928; LIoyd, o terceiro irmão, apanhou 25 anos de cadeia, por essa altura, Fred, o quarto irmão, reorganizou o bando com a mãe, o amante dela e o pistoleiro «Creppy» Karpis. Na sequência do rapto de um banqueiro, a polícia federal cercou-os e abateu-os, após quatro horas de tiroteio, numa casa de férias, em Lake Weir, Florida. Queen of the Mob (40), Guns Don’t Argue (55) e Ma Barker’s Killer Brod (60), já tinham biografado «Ma» Barker.

1972
É o ano de The Godfather, de Francis Coppola. A figura de Vito Corleone, interpretada por Marlon Brando, não corresponde a nenhuma personagem real específica. Diz-se ser uma amálgama de vários patrões da Mafia. Todavia, há uma figura histórica, a do chefe mafioso Carlo Gambino, um dos grandes gangsters do pós-guerra, que terá emprestado os traços biográficos essenciais ao protagonista do filme.

1973
Francesco Rosi conta, em Lucky Luciano, a «vida e obra» desse gangster, quase tão famoso como Capone. Gian Maria Volontè foi o intérprete. Antes, em 64, Cesar Romero fora o primeiro «Lucky» Luciano do cinema. Outro célebre intérprete, antes da recente vaga de filmes de gangsters destes anos 90, foi Joe Dalessandro, em The Cotton Club (84), de Francis Coppola. Luciano, à boa maneira de Capone, também não se foi desta para melhor de morte macaca: morreu velho, na cama, de ataque de coração.

1983
Scarface, de Brian De Palma, retoma a figura de Tony Camonte, a personagem de ficção com que Hawks, no filme original, disfarçara a biografia de Capone. AI Pacino deu corpo à figura do gangster. O filme reavivou o interesse pelo «gangster film» na indústria americana.

1984
The Cotton Club, de Francis Coppola, é uma festa de gangsters autênticos. Um dos mais comoventes retratos é o de Owney Madden (interpretado por Bob Hoskins), o dono do clube onde se reúnem figuras como Lucky Luciano e Dutch Schultz. Madden, apesar das cores simpáticas com que Coppola o pinta, aos 17 anos era já conhecido por «Owney the Killer».

1992
Estreiam sucessivamente Mobsters, Billy Bathgate e Bugsy. São os gangsters vistos pelos anos 90: Lucky Luciano, Bugsy Siegel e Meyer Lansky surgem em edições de luxo, servidas por excepcionais fotografias e sofisticado «production design». Dustin Hoffman, Ben Kingsley, Christian Slater e Warren Beatty dão-lhes corpo e não se pode dizer que sejam, como actores, uns «nobodies». À violência, apresentada em versão «hard» — violência gráfica, como dizem os críticos americanos — soma-se a pulsão libidinosa. O que estava implícito em Bonnie & Clyde deixou, agora, de ser um tema subjacente. O sexo vai de ombro a ombro com a pistola.

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Não é ministro e quer sangue

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Quer sangue. Não, não é direc­tor de jor­nal pop­u­lar, dos que se torcem e escorrem sangue. Quer sangue e não pro­grama tele­visão gen­er­al­ista. Nem min­istro, nem oposição  populista e quer sangue. Não é anjo vin­gador, mas quer sangue e tem asas. Mafar­rico, um minús­culo cen­tímetro, suga e quer sangue.

Ten­ham medo: a cor de âmbar que lhe adoça o corpo não pode escon­der a boca em forma de tubo, nem o sulco assas­sino da cabeça. É um lindo, ter­rível corpo de guerra. Voador de voos pic­a­dos, tiro à flor da pele e certeiro no alvo. Não teme, ataca de dia: frontal, vai­dosa do seu poder de fogo e sono.

Devo-lhe uma das glórias da minha vida: no meu primeiro emprego, em Luanda – 3º ofi­cial de pública função, eman­ci­pado por não ter ainda idade de homem – com­bati o inimigo, a Glossina Pal­pa­bilis (ou será a Glossina Morsitans?). Éramos a Divisão de Combate à Tripanossomíase. Gan­há­mos: em Angola, a mosca tsé-tsé, que é esse o seu nome de guerra, foi então con­sid­er­ada extinta. In illo tem­pore.

Mas já se sabe, ninguém ganha uma guerra de guer­rilha, muito menos con­tra um inimigo de asas transparentes.

Um pouco de pão, uma garrafa de tinto

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Kiki de Montparnasse inventou a mulher livre antes que alguém explicasse ao mundo o que era a mulher livre. Em Paris, aos 15 anos, por dez cêntimos, mostrava os seios, ainda mais bonitos do que os do busto da nossa República. Resgatou-a um miserável pintor expressionista da escola de Paris, Chaim Soutine. Para a aquecer, Soutine escavacou e pôs na lareira a última mesa, o que lhe restava de cadeiras. Eis o que devia fazer de todos nós defensores acérrimos do expressionismo francês.

Filha de mãe solteira, ou como ela diria, filha de uma coisinha de nada, Alice Prin, a futura Kiki, foi criada pela avó e veio ter com a mãe a Paris, aos 14 anos. Lavou pratos em restaurantes e deu-se mal com ordens e abusos. Tinha um corpo de Scarlett Johansson e ofereceu-se como modelo de escultores. A mãe, a visão da arte de um Santo Inácio de Loyola ou de um Santo Estaline, tomou aquilo por prostituição e pô-la no gélido olho da rua.

Soutine tirou-a da rua, aqueceu-a e vestiu-a. Alice logo posou para a alcateia de pintores que uivava, famélica, pelas vielas de Montparnasse. De Alice a Kiki, seu imortal nome artístico, foi um passo. Pintaram-na Modigliani, Kiesling, o franco-japonês Foujita. Oferecia-lhes um ventre lisinho, ainda sem um pêlo púbico sequer. Foujita vinha olhá-la de muito perto na esperança de assistir ao nascimento do primeiro.

E estou a ser cobarde, escondendo o essencial. Kiki veio posar por amar as artes. Sem estudos, descobriu na liberdade dos escultures e pintores, a sua liberdade. Fundiu-se nas artes e as artes nela com um primitivismo feroz. A primeira vez que foi, por 40 cêntimos, posar para Foujita, tirou o casaco comprido e logo ficou numa nudez de origem do mundo, mas mandou Foujita pôr-se com dono e, nuíssima, começou ela a desenhá-lo. Cantava, dançava, comia pão e camembert. No fim, cobrou o seu dinheiro, vestiu o casaco e levou o desenho. No café, um marchand, para espanto de Foujita, pagou uma pipinha de massa por ele.

Era boa e era livre. Foi o que descobriu Man Ray, pluralíssimo artista americano, pintor e fotógrafo. Conheceram-se num café e foram esconder o inconfessado desejo num cinema. Man Ray quis fotografá-la em esplendor bebé. Kiki recusou: a fotografia era uma reprodução mecânica da realidade e se ela se despia era para se dar à imaginação e à transfiguração. Ray demorou cinco dias a convencê-la. Convenceu-a e ela disse-lhe, com uma timidez de me fazer chorar, que não tinha púbis. Ele sorriu: “Tanto melhor, menos problemas temos com a censura.” Agora, num tabuleiro lá de casa, eu tomo o pequeno-almoço, todos os meus santos dias, sobre as costas nuas de Kiki, esse violino de Ingres, a mais famosa fotografia de Man Ray, que lhe assegurou a terna eternidade.

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Violon d’ Ingres, a célebre fotografia de Man Ray

Foram amantes no sobressalto de seis e mais dois anos. Mas Kiki de Montparnasse foi mais do que a amante e modelo de Man Ray.

A primeira exposição de desenhos e pinturas dela vendeu todos os quadros. Fez espectáculos em Paris e Berlim, rivalizando ao tempo com a Piaf. Publicou as suas memórias, que Hemingway quis prefaciar. Deu fama ao corte de cabelo que Louise Brooks usaria no erotíssimo filme “Loulou”, do alemão Pabst. Usava as mesmas egípcias sobrancelhas de Cleópatra, o escândalo de uma boca escarlate, meias e ligas negríssimas nas actuações de cabaret.

Foi a alma e a rainha de Montparnasse nos loucos anos 20, há cem anos, guiada por uma filosofia simples: “Só preciso de uma cebola, um pouco de pão, uma garrafa de tinto e vou sempre ter alguém que mos ofereça.”

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Kiki de Montparnasse: à esquerda por Kees van Dongen; à direita por Moise-Kisling

Publicado em Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo, no Jornal de Negócios

Um dedo a mais

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Lembrei-me de dedicar aos meus amigos matemáticos um poema, tão curto, do imor­tal Jorge de Sena só para saber se eles dão cien­tí­fico aval a esta inocente matemática seniana:

No pór­tico da casa, entre os lilases,
o par de namora­dos brin­cava de apertar-se as mãos
e de con­tar os dedos.
Havia sem­pre um dedo a mais.  

Pés pelas mãos

ball

Bica Curta servida no CM, 5.ª feira, dia 20 de Junho

O que têm os pés de João Félix que as mãos de Agustina, Lobo Antunes, Camões, juntas, não têm?

O Atlético de Madrid pagou 120 milhões e uma bica para ter João Félix na sua lustrosa estante. É o que os portugueses pagam, num ano, pelos livros das estantes lá de casa. Os pés de um miúdo de 19 anos valem quase o mesmo que o nosso miserável mercado do livro. Benfiquista, e editor, confesso: adoro os pés de Félix, as mãos de Agustina e Lobo Antunes. Mas o livro, ao contrário do pé de Félix, já não marca golos. O livro está fora de jogo: mais um penalty e morre. Grito e não é golo: livros e livrarias são bichos em extinção. Alerta!

joao-felix