Kiki de Montparnasse inventou a mulher livre antes que alguém explicasse ao mundo o que era a mulher livre. Em Paris, aos 15 anos, por dez cêntimos, mostrava os seios, ainda mais bonitos do que os do busto da nossa República. Resgatou-a um miserável pintor expressionista da escola de Paris, Chaim Soutine. Para a aquecer, Soutine escavacou e pôs na lareira a última mesa, o que lhe restava de cadeiras. Eis o que devia fazer de todos nós defensores acérrimos do expressionismo francês.
Filha de mãe solteira, ou como ela diria, filha de uma coisinha de nada, Alice Prin, a futura Kiki, foi criada pela avó e veio ter com a mãe a Paris, aos 14 anos. Lavou pratos em restaurantes e deu-se mal com ordens e abusos. Tinha um corpo de Scarlett Johansson e ofereceu-se como modelo de escultores. A mãe, a visão da arte de um Santo Inácio de Loyola ou de um Santo Estaline, tomou aquilo por prostituição e pô-la no gélido olho da rua.
Soutine tirou-a da rua, aqueceu-a e vestiu-a. Alice logo posou para a alcateia de pintores que uivava, famélica, pelas vielas de Montparnasse. De Alice a Kiki, seu imortal nome artístico, foi um passo. Pintaram-na Modigliani, Kiesling, o franco-japonês Foujita. Oferecia-lhes um ventre lisinho, ainda sem um pêlo púbico sequer. Foujita vinha olhá-la de muito perto na esperança de assistir ao nascimento do primeiro.
E estou a ser cobarde, escondendo o essencial. Kiki veio posar por amar as artes. Sem estudos, descobriu na liberdade dos escultures e pintores, a sua liberdade. Fundiu-se nas artes e as artes nela com um primitivismo feroz. A primeira vez que foi, por 40 cêntimos, posar para Foujita, tirou o casaco comprido e logo ficou numa nudez de origem do mundo, mas mandou Foujita pôr-se com dono e, nuíssima, começou ela a desenhá-lo. Cantava, dançava, comia pão e camembert. No fim, cobrou o seu dinheiro, vestiu o casaco e levou o desenho. No café, um marchand, para espanto de Foujita, pagou uma pipinha de massa por ele.
Era boa e era livre. Foi o que descobriu Man Ray, pluralíssimo artista americano, pintor e fotógrafo. Conheceram-se num café e foram esconder o inconfessado desejo num cinema. Man Ray quis fotografá-la em esplendor bebé. Kiki recusou: a fotografia era uma reprodução mecânica da realidade e se ela se despia era para se dar à imaginação e à transfiguração. Ray demorou cinco dias a convencê-la. Convenceu-a e ela disse-lhe, com uma timidez de me fazer chorar, que não tinha púbis. Ele sorriu: “Tanto melhor, menos problemas temos com a censura.” Agora, num tabuleiro lá de casa, eu tomo o pequeno-almoço, todos os meus santos dias, sobre as costas nuas de Kiki, esse violino de Ingres, a mais famosa fotografia de Man Ray, que lhe assegurou a terna eternidade.
Violon d’ Ingres, a célebre fotografia de Man Ray
Foram amantes no sobressalto de seis e mais dois anos. Mas Kiki de Montparnasse foi mais do que a amante e modelo de Man Ray.
A primeira exposição de desenhos e pinturas dela vendeu todos os quadros. Fez espectáculos em Paris e Berlim, rivalizando ao tempo com a Piaf. Publicou as suas memórias, que Hemingway quis prefaciar. Deu fama ao corte de cabelo que Louise Brooks usaria no erotíssimo filme “Loulou”, do alemão Pabst. Usava as mesmas egípcias sobrancelhas de Cleópatra, o escândalo de uma boca escarlate, meias e ligas negríssimas nas actuações de cabaret.
Foi a alma e a rainha de Montparnasse nos loucos anos 20, há cem anos, guiada por uma filosofia simples: “Só preciso de uma cebola, um pouco de pão, uma garrafa de tinto e vou sempre ter alguém que mos ofereça.”
Kiki de Montparnasse: à esquerda por Kees van Dongen; à direita por Moise-Kisling
Publicado em Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo, no Jornal de Negócios
Que céu é este? Céu de terra ou céu de mar? De que Titanic é o passadiço de arcos de ferro? E as nuvens, última pincelada de pôr do sol, anunciam bonança ou tormenta?
“Não havia escola, nem cinema, nem teatro”. Xavier Camps e os amigos, protegidos pela impunidade dos 15 anos, acorreram aos Jardinets de Gràcia, em Barcelona, para ver o avião alemão que, abatido, se oferecia como espectáculo de bairro. Corria o ano de 1939 e a Guerra Civil, de Franco e republicanos, voara já, e em piloto automático, para o fim mítico e shakespeareno. Xavier e os amigos buscavam aventura e a palpável proximidade com as “metralhadoras, balas e bombas” que na sua imaginação enchiam a carlinga do alado monstro germânico.
Coincidiram, nesse dia, nessa hora, com a câmara do fotógrafo Robert Capa que sobre eles disparou com suavidade e discrição, ferindo-os para a eternidade. As fotos de Capa estiveram perdidas 69 dúbios anos. Guardou-as com nobre reserva o general mexicano Francisco Javier Aguilar González. Descobertas há dez anos e apresentadas pelo “NY Times” e pelo “El Periódico de Catalunya”, as imagens de Capa reencontraram-se com os fantasmáticos protagonistas que, em 39, correram pressurosos aos Jardinets de Gràcia e aos despojos que fulminados caíram do céu.
Xavier recordou, 69 anos depois, o orgulho e ousadia que, nesse dia, o fizeram avançar para uma posteridade que a estatura tímida e a deselegância de umas calças largas e de mau tecido não podiam adivinhar.
Poderia acontecer a qualquer um de nós? Poderia ter-me acontecido? Que Capa (e se fosse o local, competente e velho Quitos fotógrafo já iríamos muito bem servidos) terá fotografado o dia em que, sôfrego, vim a correr, com o RA, ao Terreiro do Pó, no Lobito, para assistir ao ataque (a metralha e granada) à delegação da Unita, por uma unidade mínima do MPLA, num só jipinho Suzuki amarelo (só quem viu sabe do que falo), comandada pelo camarada JM, que acabou atingido com um tiro na cabeça que o imobilizou por três meses? Alguém – que outro Capa? – terá em Luanda, e em 1975, fotografado a conveniente explosão do jornal “Provincia de Angola”, a que o JS e eu fomos os primeiros a chegar, já passava do recolher obrigatório, e que serviria depois, mutatis mutandis, como acusatório “incêndio do Reichstag” contra a FNLA?
Nunca ninguém nos avisa de que nem todas as livres escolhas de juventude garantem a música da eternidade.
Maio de 68, Cartier-Bresson: Jouissez Sans Entraves
A foto é de Cartier-Bresson. Maio de 68.
Um velho olha, perplexo, para um slogan utópico e inalcançável. Há quem diga que é um velho de direita, escandalizado. No taipal, uma mão escreveu a frase sem freio: «Gozai sem entraves.» Talvez seja um pouco mais do que escândalo, o que vem à mente do homem e se instala debaixo do seu chapéu. O incrédulo estupor deste homem é o mesmo que Philip Larkin, um poeta nos antípodas do Maio de 68, cantou sofregamente em “High Windows”:
When I see a couple of kids And guess he’s fucking her and she’s Taking pills or wearing a diaphragm, I know this is paradise
Everyone old has dreamed of all their lives– Bonds and gestures pushed to one side Like an outdated combine harvester, And everyone young going down the long slide
To happiness, endlessly. I wonder if Anyone looked at me, forty years back, And thought, That’ll be the life;
No God any more, or sweating in the dark
About hell and that, or having to hide What you think of the priest. He And his lot will all go down the long slide Like free bloody birds. And immediately
Rather than words comes the thought of high windows: The sun-comprehending glass, And beyond it, the deep blue air, that shows Nothing, and is nowhere, and is endless.
Ou no meu rançoso português:
Quando vejo um casal de miúdos E percebo que ele a anda a foder e ela A tomar a pílula ou a usar diafragma, Sei que é esse o paraíso
Com que todos os velhos a vida inteira sonharam – Sentimentos e gestos arrancados para um lado Como numa velha debulhadora E toda a juventude deslizando para o lado
Da felicidade, sem fim. Pergunto-me se Alguém olhou para mim, quarenta anos atrás, E pensou, Isto é que é a vida; Nem Deus, nem nada de suores no escuro
Por causa do inferno, ou ter de esconder O que se pensa do padre. Ele E todo o seu desejo vão por aí abaixo, deslizando Livres como aves rebeldes.E imediatamente
Mais do que palavras surge a ideia de altíssimas janelas: Vidros feitos de sol, E mais além, o fundo ar azul, que nada Revela, inefável, e sem fim.
Consola-me pensar que também o burguês da foto de Bresson rejeita por instantes a morte, imaginando “o fundo ar azul, que nada revela, inefável, e sem fim”.