Uma noite no Soho

Esta foi uma crónica escrita num tempo em que se podia ir ao cinema. E em que se podia ir aos bares. Um tempo em que havia uma boémia descomandada, desregrada. Trago esta crónica de volta, amarrada, quase amordaçada, no dia em que me dizem que já se vai poder ir ao cinema. Talvez a um bar. Desde que não se vá, como faziam Francis Bacon e Lucian Freud, a cavalo.

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Bacon e Freud

Hoje não vou ao cinema. Iria, se me prometessem que lá estavam Francis Bacon e Lucian Freud. Digo-vos quem são. São dois tipos que se revoltaram contra o futuro. Haverá quem diga que são ou eram dois pintores e eu, com a arrogância dos ignorantes, insisto: eram dois tipos sentados pantagruelicamente no presente. Comiam o presente, embebedavam-no e fodiam-no como quem respira, desvairado. Jogavam nas corridas, andavam à porrada, mergulhavam em champagne e caía-lhes o corpo exausto nas cavalariças, ao lado dos cavalos que tanto amavam.

Se eram amantes? Se isso não meter sexo, eram. Bacon, descendente do filósofo homónimo e empirista, era homossexual dia e noite, com vincada preferência por homens mais velhos que lhe arriassem forte e feio. Freud, neto do seu psicanalítico avô, era mais novo treze anos e preferia afundar-se na primordial e perlada fonte feminina. Caroline Blackwood, mulher de Freud durante parte dos anos de vida louca com Bacon, dizia: “Jantei quase todas as noites do meu casamento com Bacon. Ah, e também almocei.”

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Bacon, por Freud

Sim, gostavam de jogar nos cavalos, de se atirar sem rede para os bares do Soho e frequentar vigaristas, ladrões, putas, chulos e mais gente prendada, mas o cimento dessa vida gelatinosa era a paixão pela pintura figurativa que cultivaram como flor de preço.

Ora lembrem-se: aquele tempo era um tempo que prometia arte abstracta para toda a santa e imóvel eternidade. E Bacon, primeiro, e Freud com ele, sentaram-se no presente, com o passado entre as pernas, pintando retratos de pessoas, nus com chapéu, papas aos gritos, meninas com cão branco, a carcaça de um boi no talho. Tenho de dizer: estilhaçaram o raio do futuro. Ainda há dias, seis anos, que interessa, o “Três Estudos de Lucian Freud”, em que Bacon pintou o amigo num delicado equilíbrio de luz e ouro, atingiu o francamente estúpido recorde de 120 milhões de euros, o que, a meu ver, já é mesmo gozar e humilhar o futuro.

Na arte e nas noites do Soho, e ai de quem veja alguma diferença entre uma coisa e outra, o que os uniu foi um paradoxal optimismo niilista. Tinham os músculos carregados de energia, de uma força nietzschiana, amoralíssima. Queriam, por junto, luxo e luxúria: pintavam, comiam, bebiam, esmurravam e eram esmurrados como quem faz amor. E eu, hoje, afinal, já nem preciso de ir ao cinema.

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Freud, por Bacon

Água quente para o banho

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Françoise Gilot elle même. E num desenho de Picasso

Tivesse eu podido roubar uma das nove mulheres de Picasso e raptaria, com o ardor de um Rómulo, Françoise Gilot. Não só pela doçura do seu redondo talento de pintora, mas também pela bela cabeça morena, comandada pela arguta simetria das maçãs do rosto a que a velhice daria, depois, proeminência não destituída de ternura. E nem sequer falei do seu peito comovente que negava, distraído, a lei da gravidade.

Foi esse aroma flutuante que chegou à mesa a que presidia Pablo Picasso. O restaurante era o Le Catalan, 25 rue des Grands Augustins, margem esquerda do Sena, reinava em Paris a besta nazi de 1943. Françoise tinha 21 anos e jantava com outra amiga pintora e o actor Alain Cluny. Picasso conhecia-o e logo veio, prato de cerejas na mão, sentar-se à mesa deles. (Quem, podendo, não andaria sempre com um prato de cerejas na mão!)

“O que é que fazes?”, “Sou pintora”, “Boa piada. Uma rapariga como tu jamais podia ser pintora.” Um ao outro, foi o que disseram. Ou dispararam, que era tempo de guerra. A implicância provocadora desencadeia, sabe-se, erupções e terramotos. Os 21 anos de Florence adivinharam nos 61 de Picasso a catástrofe, uma catástrofe que – seu legítimo livre arbítrio – não queria evitar.

E já solicito o encarecido apoio dos leitores: o restaurante, Le Catalan, tem toda a responsabilidade. Há sítios que rimam com o milagre e a epifania – duas estranhas máscaras que escondem o apocalipse. À mesa de Picasso sentavam-se a bela Nusch e o lírico Paul Éluard, Dora Maar, amante e musa que o pincel do andaluz imortalizou como “a mulher que chora”. E foi no Le Catalan que o poeta parisiense Léon-Paul Fargue tombou nos braços de Picasso, com um inopinado AVC. Ao Le Catalan viriam, mal a bota nazi perdeu a sola, Dorothea Tanning e o seu Max Ernst, Hans Bellmer, e mais viriam Cocteau, Paul Valéry, Boris Vian. Ali se inventaria o melhor do existencialismo, uma balada, um hino, que rezava assim: “Nada mais tenho na existência / do que a essência que me definiu / porque a existência precede a essência / e por isso o dinheiro me fugiu.”

Do Le Catalan ao estúdio de Picasso foi um fósforo. Ofereceu-lhe a água quente que, nesse tempo de guerra, o estúdio ainda tinha, para os banhos que quisesse. Françoise batalhava então contra esse fino entrave da virgindade, que persistia, irrevogável, pela falta dos homens que conhecia, clandestinos na Resistência. Picasso era invasivo e dominador – beijou-a de surpresa a primeira vez, e ela, para surpresa dele, beijou-o de volta –, mas Françoise tem dois desenhos autobiográficos, que traçam com ironia os princípios constitucionais da relação deles, que garantiram a sua feminina autonomia. A um chamou “Adão forçando Eva a comer a maçã”, ao outro “Não me toques”.

Separado embora, Picasso ainda era casado com Olga Koklova – a lei francesa proibia-lhe o divórcio. Casamento suspenso, repartira-se por duas mulheres. Primeiro, Marie-Thérèse Walter, jovem, de corpo solar e saudável, seduzida aos 17 anos; depois, Dora Maar, que, quando soube de Françoise, se cobriu com o lençol da depressão. Marie-Thérèse procurou Françoise e avisou-a: que não tentasse ocupar o lugar dela. “Não se inquiete, o lugar que ocupei estava vazio.”

Ninguém ocupara nunca o lugar que Françoise teve na vida de Picasso. Fascinada pelo espírito lúdico, pela sedutora força física, pela paixão exsudante dele, Françoise tinha vida própria e deixou-o quando quis e entendeu. E disse-lhe. Picasso respondeu: “Nenhuma mulher deixa um homem como eu.” Até Picasso se pode enganar.

Crónica publicada no Jornal de Negócios

David e a cabeça de Golias

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Nada é real. Um rapaz, túnica presa de um só ombro, tem uma tranquila espada na mão direita enquanto a esquerda segura pelos cabelos uma cabeça de homem, apenas uma surpreendida cabeça de homem, sem corpo. Poderia ser de uma violência inaudita – se fosse real. Mas nada é real.

As figuras saem do negro, um negro saturado. Não é um negro de noite, é um negro inventado por olhos iníquos, olhos de bas-fond. O negro donde emergem o rapaz e a cabeça do homem, digo, David e a cabeça de Golias – negro tão liso, tão cego – só pode ser um negro completamente pintado. Houve quem dissesse que pintar assim era destruir a pintura.

E, no entanto, David, a espada e a cabeça de Golias vêem-se tão bem, tão definitiva e vivamente recortados. E basta olharmos um segundo para sabermos que não há nenhuma forma física da luz os iluminar desta maneira. Nem é preciso. Esta é uma pintura anterior ao fiat lux do Génesis: a luz não vem, não tem de vir de lado nenhum: a luz é o que, por pura ilusão, pensamos ser os corpos. O braço, o torso, o linho branco da túnica de David, David ele mesmo, o fio da espada, são luz. Luz de dentro, não luz de fora. Teatro negro, teatro de luz. Sem uma única sombra.

 Não admira que, corria o ano de 1609 e tendo Caravaggio 38 anos, tenha sido uma das suas obras finais.

Vão-se lá fender

Les Baigneuses
A dulcíssima indolência da carne

Ninguém voltará a pintar a mulher nua. A dulcíssima indolência carnal das “Banhistas” e das “Grandes Banhistas”, que Pierre-Auguste Renoir pintou há mais de cem anos, é varrida com escândalo para baixo do tapete pelo austero progressismo de género da revista New Yorker. Há 40, mesmo 30 anos, eu juraria, olhos rasos de lágrimas, mão sobre a New Yorker, muito mais do que sobre a Bíblia. Depois vi os novíssimos catecismos invadir-lhe as páginas, o reaccionarismo teórico-progressivo a julgar as artes, o cinema, agora a pintura. O pintor Renoir, diz um crítico, deve ser corrido do cânon: o olhar masculino e patriarcal ofende. Ora, se a vogal inicial me dá licença, vão-se lá fender!

Eis a sombra que teima em derramar-se sobre as nossas vidas: temos medo de passar a língua pela sensualidade e de enfiar o dedo no deleite. O prazer está a tornar-se clandestino

Quem poderá hoje pedir, como o poeta Herberto Helder, “dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra e seu arbusto de sangue, com ela encantarei a noite”? Quem poderá pintar, como Renoir ou Manet, a nudez das banhistas, a deitada Olympia, os pequenos almoços sobre a erva? Pior, quem ousará voltar a pintar a volúpia trágica, arrepanhada, de dedos no crânio ou na vulva das mulheres de um Egon Schiele?

Onde está a América inocente, de grandes olhos juvenis e curiosos, a descobrir o sabor e requinte da França, essa América de Gene Kelly e de Vincent Minnelli, a sapatear bons dias na cara sorridente de Paris? Onde está a América que recebeu em Hollywood, o cineasta Jean Renoir, filho do agora execrado pintor de banhistas opulentamente nuas?

Eis o que penso: a New Yorker é como o dono do urso que Jean Renoir contratou para o seu filme, “Swamp Water”, em 1941, nos pântanos selvagens de Okefenokee. Renoir precisava de um urso. Um homem, nas profundas da Georgia, tinha um em cativeiro. Capturara-o bebé, a conselho de um velho feiticeiro índio, para fazer companhia à linda menina sua filha, que tinha crises de epilepsia. O feiticeiro tivera razão, na companhia do urso a menina não voltou a ter ataques epilépticos.

Renoir foi buscar o urso e ficou abismado com a sua gulodice. Passaram por uma casa de gelados e o urso urrou sem parar até lhe darem meia cassata. Preparou-se tudo para as filmagens e o urso ficou com o dono a dormir na aldeia. Foram buscá-lo, no dia seguinte, e a Renoir ia-lhe caindo uma coisinha indigna aos pés. O dono tinha levado o urso ao cabeleireiro e fizera-lhe uma juba que o deixava entre um caniche e um leãozinho. Para ultraje e desespero do seu dono, o urso de Okefenokee não entrou no filme. Eis o que querem pôr nos filmes: o urso que já não é urso. Eis o que querem verter na tela: a nudez que já não é nudez.

Jean Renoir estraçalhava a língua inglesa com a sua pronúncia francesa. Nesse filme, deu os pequenos papéis à gente dos pântanos, aos habitantes de Okefenokee. Numa cena com o actor principal, Dana Andrews, uma jovem vinha da margem de um ribeiro e subia para uma canoa. Nervosa, fez a coisa a alta velocidade. Iam repetir, ela vinha de novo acelerada. Renoir gritou “Miss, wait a little”, mas o “wait” saiu-lhe com pronúncia de “wet”. Em vez de a mandar esperar, estava a pedir-lhe que, “wet a little”, fizesse um bocadinho de xixi. A jovem, escandalizada, perguntou a Dana Andrews: “Ele quer mesmo que eu faça…” O actor, vivíssimo e deliciado, disse-lhe: “Querida, sabe que estes cineastas estrangeiros têm ideias muito esquisitas.” Os pintores também.

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Outro Renoir: nos pântanos selvagens de Okefenokee

Publicado na minha coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

O corpete e a inútil bengala

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Rolla, Henri Gervex

A propósito de taxas de juros e outras trocas monetaristas e de coisinhas da silly season, tomem lá  o apogeu da procura e oferta do corpo feminino, no quadro de um tempo em que o bordel começou a rivalizar com a igreja como lugar de destino e culto. Visitem este quadro de Henri Gervex (que hoje nos cheira, se permitem que meta o nariz onde não se deve, a academismo).

“Rolla” (1878) foi pintado alguns anos depois da “Olympia” de Manet, e inspirado por um poema de Alfred de Musset. O centro do quadro é Marie, a prostituta pela qual Rolla, consumido pela paixão, pagou uma noite de amor. Dissipou assim as últimas notas, conseguidas com a venda da sua pistola, e algumas emprestadas pelos amigos aos quais jurara que, obtidos os favores de Marie (Marion), a luz do sol já não o voltaria a encontrar com vida. Cara, muito cara, Marie. Agora, a morte espera o apavorado Rolla enquanto o corpo macio de Marie se delicia com um sono tão lascivo como a satisfeita noite que os lábios entreabertos denunciam.

Gosto do luxo do leito, da invasora luz matinal, do corpete caído no sofá (diz-se que por sugestão de Degas), atravessado pela cana da inútil bengala. Para além da portada aberta, Paris, o boulevard.

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Henri Gervex em auto-retrato: Discussão de Amantes

A mulher casada

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Nicolas um ano antes do fim

Matou-se. Lançou-se de um terraço, em Antibes. Era órfão, exilado e príncipe russo. Pintor sobretudo. Do terraço fatal via-se o mar, essa oscilante antecipação da eternidade.

O suicida, Nicolas de Staël, tinha só 41 anos. Há dois anos que os americanos tinham desatado a comprar-lhe telas: a fanfarra da glória começava a tocar a seus pés, logo a ele que, entre guerras e em Paris, chupara a miséria e mastigara a fome.

Em 1953, ano em que nasci, ainda eu não sabia o que era uma mulher e muito menos uma mulher casada, Nicolas apaixonou-se pela casadíssima Jeanne Mathieu. Era morena, uma luz boa para cegar poetas e pintores, a mesma luz que fizera Staël viver um ano em Marrocos e descobrir as cores, ponta de lança da sua pintura.

Nicolas não lhe tocara com um dedo e já o invadia uma reaccionaríssima paixão: possessiva, ubíqua, omnipresente. Tal como eu vi o fulgor tropical da transcendência nas praias e mangais do km 36, entre Luanda e a Barra do Kwanza, a imagem de Jeanne foi a limalha incandescente no olho e coração de Nicolas. Queria-a, verbo que passou a conjugar com veemência sussurrante.

Mandado e recomendado pelo amicíssimo poeta René Char, seu gémeo em altura, Staël viera com mulher e filhos, passar férias à quinta onde os Mathieu criavam bichos-da-seda. Os Mathieu, pais de Jeanne, eram família patrícia, com gosto pela cultura. Recebiam Char e Albert Camus, melhor amigo de Urbain Polge, marido de Jeanne. O molho vinagrete de Jeanne salvou Camus do tédio de Sartre e salvou meia literatura.

No fim da estada, Staël alugou uma camioneta e viajou a Itália com mulher e filhos, convidando Jeanne a vir com eles. Ela, com a liberdade patrícia de 1953, aceitou. Viagem de tormento familiar, de amor reprimido, garrote apertado no desejo. Regressam e ele despacha a família para Paris. Quer ficar sozinho para pintar, diz. Quer ficar e fica sozinho com Jeanne. Libertou-se o desejo em todas as assoalhadas, sala, cadeirões, varanda, quarto, talvez cama. Não invento: basta ver como Nicolas desatou a pintar nus. Nu de Pé, Nu Deitado, Nu Deitado Azul, Nu Jeanne, e esse Nu Deitado (Nu) que, em 2011, se leiloou por mais de sete milhões de euros.

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fabulosas cores de Nu Deitado (Nu)

Mas Nicolas, príncipe russo, alma dostoievekiana, abomina o pecado. Quer e quer e quer casar com Jeanne. Ela assusta-se e foge para o marido gentil e camusiano. Arde nos pulmões e no estômago de Nicolas um fogo do inferno. Não pode já viver sem a amada. A rejeição do casamento é um punhal que, virasse-se ele de costas, lhe veríamos cravado entre os ombros.

Despreza a glória e os cifrões americanos. Pinta, obsessivo, 254 telas e 300 desenhos. Vive a cada semana uma revolução estética, que deixa os compradores mais estupefactos do que Moisés ao ver a sarça-ardente.

Nicolas não compreende e ainda menos aceita que Jeanne fuja do desejo e do seu amor sinfónico. Está só, abandonou a família e abandonou-o o amigo, um reprovador René Char. Com quem pode Staël falar que o compreenda? Talvez Deus! Queima, então, toda a papelada, menos as cartas que recebeu de Jeanne. Vai entregar-lhas. Jeanne, vestida de medo, manda o marido à porta recebê-las. Nicolas entrega-lhas e diz: “Ganhaste!”

Volta ao apartamento de Antibes e pinta, três dias e três noites, uma tela gigantesca, de 6×3 metros, o Grande Concerto, imponente piano negro à esquerda, contrabaixo dourado à direita, fundo vermelho. O dostoievskiano Nicolas escrevera numa carta: “Preciso desta mulher para me atirar ao abismo!” Acabado o Grande Concerto, subiu ao terraço e mergulhou.

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fulgurante Grande Concerto

Publicado na minha coluna Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo, no Jornal de Negócios

Mona Lisa

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Daniel Arasse, historiador e teórico de arte francês, que morreu em 2003, desafiou-me e desafia-nos, se o lermos, para um exercício que é prova provada de que surpresas, surpresas, as melhores vêm-nos do cemitério.

Já viste a Mona Lisa?”, perguntou-me. Olhei-lhe para o cadáver com superior vivacidade. Não ligou nenhuma e continuou: “Deixa-me descrever-te o quadro e não te admires do monte de coisas que vais admitir que nunca tinhas visto.” Tenho pena que não possam estar a vê-lo e ouvi-lo. Conto eu que não é mesmo a mesma coisa, mas é o que se arranja.

Ele disse-me e percebi logo que era verdade: a Gioconda, Lisa del Giocondo, está sentada numa varanda. Não vemos, mas há uma coluna à esquerda e outra à direita, típicas colunas duma loggia fechada por um murete baixo que no quadro, atrás dela, não distinguimos.

Ela, a Mona Lisa, está sentada num cadeirão (de verga, claro) de braços altos, num dos quais apoia (vejam!) o braço esquerdo. A loggia está num ponto alto – só pode,  porque a perspectiva é a de um fundo distante, difuso, de rochas, terra e água, de difícil legibilidade. Eu, por exemplo, juro que à esquerda da cabeça e do misterioso sorriso da Gioconda vejo uma massa em que se fundem rochas e árvores, enquanto Arasse diz que não senhor, nem uma árvore, só a linha fina de um lago, e nenhuma construção humana, nenhuma presença humana. O que, explica-me o paradoxal Arasse, não é verdade. O olhar de Gioconda denuncia a presença do pintor, de Leonardo Da Vinci? Sim, como o de quase todos os modelos. Mas não há só um olhar, há também um sorriso. (Arasse ensinou-me, mas desconfio da informação, que foi o primeiro sorriso da história da pintura). E o sorriso, digo agora eu, não está dirigido na exacta direcção do olhar.

Lisa Gherardini sorri para Francesco del Giocondo, seu marido, que, de pé, três passos atrás de Leonardo, a contempla, orgulhoso dela e dos dois filhos varões que ela lhe deu. Estão lá os dois, Leonardo no olhar, Francesco no sorriso. Nos dedos longos, os da mão direita entreabertos de acariciar a seda da manga, no peito que, depois de sofregamente beijado por Francesco, já amamentou, na alta testa, na pele ainda tão fresca, perpassa a felicidade de uma mulher que se cumpriu e que sabe que é modelo de uma pintura que vai colocar no novo palácio que Francesco comprou. Não sabe ainda, não pode adivinhar, que Da Vinci, vizinho deles, nunca lhe irá entregar o quadro.

Não grites

O que faríamos de Edvard Munch se  “O Grito” tivesse sido definitivamente roubado?  (E sim, as duas versões que Munch pintou foram ambas roubadas. Depois, felizmente, recuperadas.) Deixaríamos de o admirar e venerar como pintor?

Munch

Haverá menos angústia nesta “Separação” em que  desapareces silenciosa e branca e me deixas de atormentados olhos cegos? A mão, a minha mão, segura o quê, o peito cavo, o queimado coração?

E mesmo que “O Grito” tivesse sido estropiado, retalhado, não tremeríamos com a mesma ansiedade perante a intimidade desta “Maddona” tão serena e consentida a oferecer-se à Luz que do alto desce a nimbar-lhe as eróticas formas para que, feita senhor a tua vontade, hajas tu menino jesus?

Madonna