
Escrito há dez anos. Eram tempos de crise. Ressuscito o texto: hoje são tempos de reclusa aridez
Hoje há passarinhos. Pelo menos havia: nas esquinas do passado, alegrando as montras das cervejarias com clamorosos atentados ortográficos. Escrevia-se com desembaraço: “à passarinhos”. Juraria que vi até um “á paçarinhos”, assim, cedilhado, na limpa janela dum restaurante de Campo de Ourique. Cedilhas destas cortam um passarinho ao meio.
Não há passarinhos no futuro com que os filmes antecipam a vida. O futuro no cinema é a distopia, escandaloso palavrão usado pela academia para designar o “Total Recall” de Schwarzenegger, em que a então desconhecida Sharon Stone nos revelou, para memória futura, as lábeis qualidades do corpo humano.
Distopias, esses filmes em que o cinema se aventura no futuro com maus modos e um pessimismo de Medina Carreira, são “Blade Runner”, “Soylent Green” e “The Fifth Element”. Mais recentes, todos viram “Matrix” e “Minority Report”, filmes onde o mundo futuro, nalguns casos de prodigioso deslumbramento tecnológico, descamba em sociedades opressivas, de autoritarismo impenitente.
Não há passarinhos nas distopias, seja na frieza do “Alphaville” do Godard, seja na minha distopia favorita, o miserabilíssimo filme que é “A Boy and his Dog”.
Nada se parece com “A Boy and his Dog”. Com nada se parecem o rapaz e o cão desse filme. A acção decorre após uma 4ª Guerra Mundial que traz ruína, imunda aridez pós-apocalíptica, roupas andrajosas, oleados rotos a simularem tendas, buracos necrófagos e uma fome de alto lá com ela: é que não há mesmo passarinhos.
O rapaz e o cão têm um trato. Ainda não disse: o rapaz fala com o cão. Responde-lhe este por telepatia. Há nas falas do cão um irónico desespero swiftiano, um tom moral que Hobbes não desdenharia. Conversa com que vos distraio antes de confessar o indecoroso trato: o rapaz descobre comida para o cão; o cão, que por acaso se chama “Sangue”, fareja fêmeas escondidas para o insaciável rapaz. Não há passarinhos e as mulheres são mais raras do que pérolas em ostras. Cão e rapaz, cada um come do que gosta e, “no food, no females”, cada um dá o que pode.
O rapaz e o cão andam cá por cima, num mundo imundo e bárbaro. Mas por baixo do esfomeado mundo do rapaz e seu cão, subsiste outro, uma paróquia asséptica, de subterrâneos valores tradicionais. Com um sério problema: de viverem nas catacumbas secou-se nesses homens a fonte da vida. O vigor que o rapaz tem a mais, têm os civilizados catacumbeiros a menos. Deles, em espanhol, dir-se-ia: “ya se les murió el pajarito”. Os ecos da lendária produção seminal do rapaz levam o poderoso “mundo de baixo” a capturá-lo para suprir o défice orgástico e garantir a reprodução da impotente tribo.
Juntar fome com vontade de comer daria o melhor dos mundos se o “mundo de baixo” não dissociasse o prazer da cópula da funcionalidade seminal. O rapaz percebe que não vai ser ele a dar: são eles que vão tirar. E, depois, quando tiverem o que querem, lá, como em Campo de Ourique, também cedilham passaritos. Para quem, como nós portugueses, julga que, de défice em défice, já viu levarem-lhe tudo, um seminal filme do futuro mostra-nos que há sempre uma cedilha pronta a cortar cerce o mais recôndito tesouro.
A Boy and his Dog , de 1975, é um dos meus filmes de culto. Meu e de muito boa gente. Realizou-o o desvairado L.Q.Jones e, além do cão, foi seu superior intérprete um Don Johnson orgástico, descomplexado e a fazer-se à vida, antes da vida se fazer a ele. Têm mesmo de ver para ver se o rapaz se salva.