A cedilha e o passarinho

Sarau de Sharon em Total Recall

Escrito há dez anos. Eram tempos de crise. Ressuscito o texto: hoje são tempos de reclusa aridez

Hoje há pas­sa­ri­nhos. Pelo menos havia: nas esqui­nas do pas­sado, ale­grando as mon­tras das cer­ve­ja­rias com cla­mo­ro­sos aten­ta­dos orto­grá­fi­cos. Escrevia-se com desem­ba­raço: “à pas­sa­ri­nhos”. Jura­ria que vi até um “á paça­ri­nhos”, assim, cedi­lhado, na limpa janela dum res­tau­rante de Campo de Ouri­que. Cedi­lhas des­tas cor­tam um pas­sa­ri­nho ao meio.

Não há pas­sa­ri­nhos no futuro com que os fil­mes ante­ci­pam a vida. O futuro no cinema é a dis­to­pia, escan­da­loso pala­vrão usado pela aca­de­mia para desig­nar o “Total Recall” de Schwar­ze­neg­ger, em que a então des­co­nhe­cida Sha­ron Stone nos reve­lou, para memó­ria futura, as lábeis qua­li­da­des do corpo humano.

Dis­to­pias, esses fil­mes em que o cinema se aven­tura no futuro com maus modos e um pes­si­mismo de Medina Carreira, são “Blade Run­ner”, “Soy­lent Green” e “The Fifth Ele­ment”. Mais recen­tes, todos viram “Matrix” e “Mino­rity Report”, fil­mes onde o mundo futuro, nal­guns casos de pro­di­gi­oso des­lum­bra­mento tec­no­ló­gico, des­camba em soci­e­da­des opres­si­vas, de auto­ri­ta­rismo impenitente.

Não há pas­sa­ri­nhos nas dis­to­pias, seja na fri­eza do “Alpha­ville” do Godard, seja na minha dis­to­pia favo­rita, o mise­ra­bi­lís­simo filme que é “A Boy and his Dog”.

Nada se parece com “A Boy and his Dog”. Com nada se pare­cem o rapaz e o cão desse filme. A acção decorre após uma 4ª Guerra Mun­dial que traz ruína, imunda ari­dez pós-apocalíptica, rou­pas andra­jo­sas, ole­a­dos rotos a simu­la­rem ten­das, bura­cos necró­fa­gos e uma fome de alto lá com ela: é que não há mesmo passarinhos.

O rapaz e o cão têm um trato. Ainda não disse: o rapaz fala com o cão. Responde-lhe este por tele­pa­tia. Há nas falas do cão um iró­nico deses­pero swif­ti­ano, um tom moral que Hob­bes não des­de­nha­ria. Con­versa com que vos dis­traio antes de con­fes­sar o inde­co­roso trato: o rapaz des­co­bre comida para o cão; o cão, que por acaso se chama “San­gue”, fareja fêmeas escon­di­das para o insa­ciá­vel rapaz. Não há pas­sa­ri­nhos e as mulhe­res são mais raras do que péro­las em ostras. Cão e rapaz, cada um come do que gosta e, “no food, no fema­les”, cada um dá o que pode.

O rapaz e o cão andam cá por cima, num mundo imundo e bár­baro. Mas por baixo do esfo­me­ado mundo do rapaz e seu cão, sub­siste outro, uma paró­quia assép­tica, de sub­ter­râ­neos valo­res tra­di­ci­o­nais. Com um sério pro­blema: de vive­rem nas cata­cum­bas secou-se nes­ses homens a fonte da vida. O vigor que o rapaz tem a mais, têm os civi­li­za­dos cata­cum­bei­ros a menos. Deles, em espa­nhol, dir-se-ia: “ya se les murió el paja­rito”. Os ecos da len­dá­ria pro­du­ção semi­nal do rapaz levam o pode­roso “mundo de baixo” a capturá-lo para suprir o défice orgás­tico e garan­tir a repro­du­ção da impo­tente tribo.

Jun­tar fome com von­tade de comer daria o melhor dos mun­dos se o “mundo de baixo” não dis­so­ci­asse o pra­zer da cópula da fun­ci­o­na­li­dade semi­nal. O rapaz per­cebe que não vai ser ele a dar: são eles que vão tirar. E, depois, quando tive­rem o que que­rem, lá, como em Campo de Ouri­que, tam­bém cedi­lham pas­sa­ri­tos. Para quem, como nós por­tu­gue­ses, julga que, de défice em défice, já viu levarem-lhe tudo, um semi­nal filme do futuro mostra-nos que há sem­pre uma cedi­lha pronta a cor­tar cerce o mais recôn­dito tesouro.

A Boy and his Dog , de 1975, é um dos meus fil­mes de culto. Meu e de muito boa gente. Realizou-o o des­vai­rado L.Q.Jones e, além do cão, foi seu supe­rior intér­prete um Don John­son orgás­tico, des­com­ple­xado e a fazer-se à vida, antes da vida se fazer a ele. Têm mesmo de ver para ver se o rapaz se salva.

O peculiar ser humano

Todo o indivíduo é uma minoria

Pode alguém regalar-se com a fragrância da sua própria flatulência? O poeta W.H. Auden, autor do sublime “Funeral Blues”, jurava e somava: “Muitas pessoas deliciam-se com a sua própria caligrafia tanto como se deliciam com o cheiro dos seus peidos.”

É a peculiaridade de cada humano que quero, hoje, louvar. Imaginem que eram três da tarde, cruzavam a Avenida de Berna, em frente à vetusta Gulbenkian, e desaparecia a peculiaridade do ser humano, toda a humanidade espancada por uma igualdade indiferente e atroz. Mesmo o jardim e museu da Gulbenkian se ruborizariam de indignação. É por isso que a verdade de George Orwell é falsa: toda a distopia falece à boca da singularidade. Vejam os velhinhos que arrastam os pés na patética marcha. O que é comovente é que cada um os arrasta à sua maneira.

Nenhum dramaturgo foi mais peculiar do que Samuel Beckett. Amigo de Joyce, amante da filha dele, a peculiaridade de Beckett tinha até o pé boto do anómalo. Um dia, encenavam uma peça – não interessa qual, era uma das suas peculiares criações e tinha reticências. O actor fez no ensaio a paragem que as reticências ditavam. E agora ouçam o escândalo. Um Beckett ultrajado e impetuoso grita ao actor: “Estás a representar e a fazer uma paragem de dois pontos, ora no texto estão três!”

O meu ouvido distingue o passo cansado do vizinho do terceiro andar do passo ofegante do vizinho do segundo, mas o ouvido rútilo de Beckett distinguia mesmo cada um dos três pontos da perplexa reticência.

Julgo que Beckett nunca roçou ombros, para usar a cantabile expressão inglesa, com a jovial, repentista e imprevisível escritora americana Dorothy Parker, expulsa, ainda menina, da escola de freiras por ter, judiciosa, sugerido que o doce mistério da Imaculada Conceição seria, afinal, um fenómeno de “combustão espontânea”. Era uma autora de um tempo corrido a igualitárias máquinas de escrever e eis a peculiaridade de Miss Parker: quando a fita da máquina chegava ao fim, comprava outra – seria uma Remington, uma Olivetti? – por não saber mudar a fita.

E vou dizer do que gostava Percy Shelley, esse ser permissivo e promíscuo a quem sempre deverei a exaltação da sua “Defesa da Poesia”. Talvez por não ter sido ainda inventada a máquina de escrever, Shelley tinha a tonítrua paixão das tempestades. Com uma pérfida peculiaridade. Num arroubo anti-PAN, Shelley, por odiar gatos, respondia a cada descomandada tempestade de relâmpagos e trovões prendendo um gato a um papagaio de papel que lançava, desafiando os céus, e esperando que um raio fulminasse o bichano voador. Insolente e encristado viajou de barco, em Itália, de Pisa para Livorno, desafiando a inclemência de uma tormenta anunciada. Gatos e os deuses de todos os felinos devem ter-se juntado e afundaram-lhe o barco, afogando-o. O mar rejeitou-o, atirando-lhe o ímpio cadáver para a praia. Tinha no bolso um livro do trágico Sófocles, se a “Electra” ou “Édipo Rei” é que não sei.

Ralph Waldo Ellison, que foi engraxador, criado de hotel, porteiro de dentista, mas seria o autor de “O Homem Invisível”, que lhe levou seis anos a escrever, explicou: “Todos os romances são sobre minorias. O individuo é uma minoria.” Ele próprio era uma minoria dentro da minoria negra a que pertencia. Eis porque, raivosa do indivíduo, não pode haver arte soviética ou nazi Já cheguei, entretanto, ao Jardim da Gulbenkian e laguinho, bambus, patos reais, os corpos que se espreguiçam na relva, tudo canta a peculiaridade, o minoritário individuo, essência de toda a arte. Deus seja louvado.

Escolha a sua mala

Agora imagine que púnhamos à sua frente três malinhas. Todas com uma linha estética sedutora, cada uma com uma geografia própria. Qual escolheria? Quer saber mais, antes de arriscar, exige! Era o que já esperávamos. E nós não nos fazemos rogados. Ora veja.

A primeira mala chama-se “África: um Mundo”. Tem lá dentro um Atlas Histórico de África, que o guiará por séculos de História e pela geografia de uma África tantas vezes em brasa. E tem também, lado a lado, uma “Breve História Moderna de Angola”, da autoria de David Birmingham, e um pequenino livro sobre um tema hoje a escaldar, as questões identitárias, neste caso tratado pelo ensaísta Jonuel Gonçalves, sob o título “África no Mundo Livre das Imposturas Identitárias”.

A uma outra malinha de livros chamámos “Vozes de Angola”. Juntámos nela a mais leve, divertida e sonhadora novela da literatura angolano pós-independência, “Quem Me Dera Ser Onda”, de Manuel Rui, a mais ousada e hiperbólica sátira a um ditador, escrita por Adriano Mixinge, em “O Ocaso dos Pirilampos”, e a voz poética de José Luís Mendonça, em Angola Me Diz Ainda.

Por fim, na malinha que pintámos com o nome “Algarve e Lisboa: Três Escritores”, estão juntas duas escritoras algarvias e um lisboeta. São livros da mesma colecção, em que os autores falam a José Jorge Letria das suas vidas e obras em registo confessional. Os títulos são reveladores: “Lídia Jorge: A literatura é o prolongamento da vida”, “Teresa Rita Lopes: Pessoa do meu desassossego” e “Mário de Carvalho: Nem um dia sem uma linha”. São pequeninos livros desassombrados e cheios de histórias contadas pelos próprios.

Queremos encher este seu fim de semana de livros. São, afinal, três pacotes. Escolha um, dois ou os três e receba os livros em sua casa, por um preço irrisório. A mala é só imaginária: chegarão embrulhados em papel, que o papel é, página a página, a paixão de todos nós.

10 de Junho: Deixem ir o amador à coisa amada

Camões

Este texto foi uma encomenda. Escrevi-o com muito gosto e com um descaramento que se baseia numa ideia simples: os poetas, os pintores, os romancistas devem ser falados, interpretados e comentados pelos seus leitores, mesmo por aqueles que, como eu, só como amadores os comentem. Recupero-o neste 10 de Junho de 2021.
Os amadores, na sua exaltada e infantil incompetência, nunca dispensarão os especialistas. Os amadores são como as criancinhas que um tolerante Cristo deixa vir a si. Mas mal do especialista que não deixe, magnânimo, sentarem-se os amadores aos pés da coisa amada.

saiba o mundo de Amor o desconcerto,
que já coa Razão se fez amigo,
só por não deixar culpa sem castigo.

O Século de Camões
Manuel S. Fonseca

Se o século XVI não foi português, nenhum outro virá a sê-lo. As caravelas lusíadas atravessavam os mares. Cabral chegava ao Brasil, o Gama à Índia. E Colombo e Magalhães, um tocando a América, o outro circum-navegando o mundo, foram trânsfugas que a Coroa portuguesa sentou no colo de Espanha. A ousadia não tinha limites: Albuquerque pôs o Oriente a ferro e fogo, estabelecendo um Império. O escuro e hirsuto português comerciou com o Japão, aliou-se ao etíope, bordou de fortes e feitorias a costa de África, fortificou-se em Tuen Mun com ambição de conquistar a China, do que o dissuadiu o terrível poder dos Ming e, num tratado desmesurado, dividiu com Castela, ao meio, o mundo por achar.

Foi nesse mundo novo, de especiarias e ouro, que nasceu e viveu Luís de Camões. No século em que pela primeira vez olhos europeus viram o Grand Canyon, a baía da Guanabara e toda a extensão do Amazonas, também os dele viram Ceuta, a Índia, a China, a costa de Moçambique, três oceanos, o pequeno mar que, depois de Gibraltar, separa e junta a Cristandade e o Islão, homens e mulheres de múltiplas raças, estranhas crenças.

E é este Luís de Camões, de vivência universalista, que, a par das viagens, explorações e conquistas, ou também como expressão delas, faz do século XVI um século português. Mais claramente do que qualquer outra voz do século, Camões sente e pensa esse mundo novo numa poesia de admirável expressão épica e lírica.

Camões partilhou literariamente o seu tempo com Garcilaso de la Vega, Juan de la Cruz, Teresa d’Ávila, Christopher Marlowe, Gongora, Miguel de Cervantes, Pierre de Ronsard, Torquato Tasso. Parcialmente contemporâneos, John Donne e Shakespeare pertencem, no essencial das obras respectivas, já ao século seguinte. Comparada com as dos expoentes literários do século, a obra de Camões iguala-as no plano da emoção e apresenta, porventura, um superior fulgor filosófico.

Habitantes desse século foram também, e por ordem de nascimento, Copérnico, Kepler e Ticho Brahe. Coube-lhes fundamentar uma ordem nova, deslocando o centro do universo conhecido da Terra, que ajudaram a pôr em movimento, para o Sol. A missão de Lutero, outro contemporâneo, foi a de fragmentar a centralidade de Roma e a infalível entronização papal, enquanto Erasmo sublinhava a soberania da vontade e libero arbitrio como essenciais à condição humana. Também Maquiavel torna perceptível, pela primeira vez, a dinâmica em que radica o Estado, os mecanismos empíricos do governo das nações. Nem o Tempo escapou a essa onda avassaladora do novo: é neste século que se fixa o calendário gregoriano, acertando-se de vez o instável equinócio e corrigindo-se a medição do ano solar.

De quase nada sabermos biograficamente dele, não sabemos se, de Copérnico a Maquiavel, tudo ou parte disto foi de conhecimento directo de Camões. Mas sabemos que o ar  e o ambiente intelectual daquele tempo foram também os do poeta. O mundo que “Os Lusíadas” retrata, “com saber só de experiências feito”, é um mundo de triunfo do empirismo subjacente à revolução científica que os quinhentistas Francis Bacon e Giordano Bruno conceptualizaram. E em “Os Lusíadas”, os mares por onde navega a armada do Gama são os mares que o planisfério de Gerardus Mercator revolucionariamente então representou.

Sem renegar um saber clássico, conhecedor de Aristóteles e Platão, infiltrado de neo-platonismo, o movimento do amor para a razão faz da poesia de Camões uma esplêndida interrogação da condição humana em termos que talvez não tenha paralelo nas figuras maiores da literatura do século: “Quem será que não julgue por celeste / a causa donde vem tamanho efeito, / que faz num coração / que venha o apetite a ser razão.”.

A sensualidade camoniana tem, por certo, correspondência na erótica de Donne e no lirismo amoroso de Ronsard. Prescientes do dualismo que Descartes afirmará triunfante no século seguinte, os poetas proclamam a soberania do corpo, dando luminosa e às vezes urgente expressão a uma carnalidade que os distingue do ascetismo místico, por arrebatador que seja, dos avilenses Juan de la Cruz e Teresa de Jesus. Do mérito e superioridade da experiência física e plenamente erótica do amor, Camões deixou testemunho liminar: “Melhor é experimentá-lo que julgá-lo, / Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.”

A liberdade erótica tem a sua expressão suprema na imaginária Ilha de Vénus, do Canto IX, povoada de Ninfas que “Nuas lavar se deixam na água pura”. Como prémio terreno para os heróicos trabalhos dos lusitanos “Em cristalinos paços singulares / … / Os esperam as Ninfas amorosas, / De amor feridas, para lhe entregarem / Quanto delas os olhos cobiçarem.” E não se nega aos sentidos o que os olhos cobiçam: “Acende-se o desejo, que se ceva / Nas alvas carnes, súbito mostradas”.

A par dessa exposta sexualidade, a poética camoniana exprime, ao mesmo tempo, uma consciência reflexiva e intelectualizada do “eu” que parece adivinhar o cogito cartesiano: “Que, como um acidente em seu sujeito / Assim coa alma minha se conforma / Está no pensamento como ideia / E o vivo e puro amor de que sou feito / Como a matéria simples busca forma”.

Rendendo-se consoladamente à palpável realidade de um impetuoso erotismo, Camões não deixa de ser herdeiro da tradição neo-platónica e, com ela, de uma cosmologia sustentada num mundo superior que não se reduz à realidade sensível. Por isso, se no épico as Ninfas vão “Nuas por entre o mato, aos olhos dando / O que às mãos cobiçosas vão negando”, o Camões lírico há de cantar (ou já teria cantado) o quão cedo desses olhos a Alma gentil se aparta descontente.

Em Camões, o Amor assume ainda a forma de superior conhecimento do mundo, nele se fundindo o conhecimento de si e do outro que é transformar-se o amador na coisa amada: “Não tenho logo mais que desejar, / Pois em mim tenho a parte desejada”. Essa oscilação entre a clara e distinta objectivação da experiência e uma subjectivíssima fusão cujo conhecimento é inalcançável para a mente humana, dá lugar à, tão lúcida como angustiada, meditação camoniana sobre a condição humana que estes versos exprimem: “Que dias há que na alma me tem posto / Um não sei quê, que nasce não sei onde, / Vem não sei como, e dói não sei porquê.

Se o século XVI foi português, só o terá sido por nunca, como nestes versos, a poesia escrita em língua portuguesa ter estado tão adiante do que racionalmente noutras línguas do seu tempo se escrevia: “Morrendo estou na vida, em morte vivo; / vejo sem olhos, e sem língua falo; / e juntamente passo glória e pena.” Nunca mais a língua portuguesa voltou a ser um tão dramático palco de contrários, nunca mais, em sofrimento e glória, carne e espírito, voltou a viver uma dialéctica de permanência e mudança, mesmo e outro, como a que Camões lhe imprimiu.

O obstetra de John Barrymore

Dolores, John, a primeira filha. Do obstetra, nem cheiro

John Barrymore tinha três dons. Estava para Hollywood como a Rainha Isabel para a Inglaterra, adivinhava o futuro e sabia chorar. Era casado com a bela actriz Dolores Costello e ela engravidou. John já tinha uma filha, mas o seu sonho real era ter um filho varão. Eléctrico, mudava todos os dias de obstetra: queria o melhor para Dolores. E o melhor era o Professor Vruwink. Obrigou-o a visitar diariamente a mulher, apesar dos mil “não é preciso!” do médico.

Um dia chega a casa e vê-os a conversar descontraídos na sala. À saída, Vruwink diz-lhe: “Vê como está tudo bem!” “Está tudo bem de mais, meu filho da puta, não te quero voltar a ver aqui”, responde John, para espanto do médico. Entra e diz a Dolores: “Vais mudar de médico. Este tipo está apaixonado por ti e não admito que te volte a ver e a tocar.” Nos protestos e gritos de Dolores, “faltam sete semanas para o bebé nascer, não mudo de médico”, havia uma ligeira inflexão como numa peça de Marivaux, que logo o ouvido de John mordeu: “Não acredito, tu também estás apaixonada por ele.” Choveram paus e pedras, mas Dolores manteve o médico. Teve uma filha. Um ano depois, o casamento num inferno e Vruwink de novo como obstetra, tiveram um filho, para gáudio de John. A seguir, divorciaram-se. Tinta ainda fresca nos papéis do divórcio e não é que, para espanto de Hollywood, Dolores se casa com o Professor Vruwink?!

Garson Kanin convidou John a protagonizar “The Great Man Votes”. Fazia um alcoólico em risco de perder a custódia dos filhos. No final, John declamava um poema patriótico. A cena ficou óptima, mas John lembrou-se: “E se eu chorasse?” Kanin não queria, mas John insistiu e chorou. Um dilúvio. “Vamos repetir – disse John – isto é de mais.” A seguir, chorou uma lágrima pequenina, ligeira pausa e depois uma grossa. Virou-se para Kanin: “Posso fazer ao contrário, mas tem de fazer o travelling mais devagar.” Repetiram. Saiu primeiro a lágrima grossa e, gigantesco grande plano, a lenta lágrima pequenina e patriótica. Aplausos delirantes de todos, e logo John: “Isto não é talento de actor. É um truque. Como corar – e corou – ou mexer as orelhas – e mexeu as orelhas – mas em França há um tipo que toca a Marselhesa só com traques longos e puns breves. Isso já não consigo fazer.”

Jacques Tati

Jacques Tati. Ou Monsieur Hulot?

Foi dos últimos artigos que escrevi no Expresso antes de ir para a SIC. Fevereiro de 1992. Passaram 29 anos e Jacques Tati, morto e enterrado, já não é sequer um ilustre desconhecido. E eu estou a pensar que já me teria esquecido também, se não fosse essa noite, em Luanda, no cinema Império, em que, bouleversant, ele me apareceu em Playtime, filme prodígio de fina observação e nonsense. A noite era quente e colonial e eu vestia o inesquecível casaco vermelho, que décadas depois Spielberg daria a Christian Bale, herói de O Império do Sol.

A Casa e o Mundo
Manuel S. Fonseca

Donde vem o cómico de Jacques Tati? Da pura observação e dos seus efeitos burlescos? Foi essa, pelo menos, a judiciosa verificação de François Truffaut. Deve ser verdade, portanto. E deve ainda ser mais verdade se lhe acrescentarmos o valor suplementar que o silêncio tem nos seus filmes. Ao excluir da sua esfera de observação os dramas humanos que são os amores, ódios e traições, o cinema de Tati concentrou-se nos gestos mecânicos da vida, em particular na utilização que, dia a dia, os seres humanos fazem do mundo que habitam.

A relação entre o homem e o seu «habitat» talvez seja o grande, se não o único tema, das comédias de Jacques Tati. É o que O Meu Tio confirma e Parade só aparentemente desmente, como poderão ver sentando-se em frente aos televisores, domingo e segunda, respectivamente, no Canal 2 e na RTP1. [Nota para leitores contemporâneos: É extraordinário pensar que nos sentávamos em frente ao televisor! Hoje, não só ninguém sabe o que é um televisor, como já são raros os seres humanos que ainda têm uma vaga ideia do que é alguém sentar-se.] 

O Meu Tio confirma. E porque confirma, aí está um filme em que os locais de acção — a casa futurista dos Arpel e a fábrica Plastac — são protagonistas dessa mesma acção. Aí está, também, um filme em que os acessórios (o peixe-repuxo no jardim, ou o equipamento ultramoderno da cozinha) são cúmplices activos da mecânica dos «gags», lembrando (acidentalmente?) esse prodigioso triunfo da técnica moderna que Buster Keaton cantara já, nos anos 20, em Electric House, e que culminava em magnífica e alucinante catástrofe.

Primeiro filme a cores de Tati, O Meu Tio é um hino (com um lirismo que Keaton nunca se autorizaria) à inaptidão do herói (Monsieur Hulot) para seguir os padrões da vida moderna, ou do que era a vida moderna em 1958, data da produção do filme. Naquele que é, sem dúvida, o seu filme com uma história mais clássica, Tati mostra as tentativas da família de Hulot para lhe arranjarem mulher e trabalho. É esse o pretexto do filme. Mas a forma como Tati desenvolve este esboço sinóptico atesta que o verdadeiro tema é a lenta aproximação e posterior familiarização de Monsieur Hulot com os dois «décors» centrais do filme, a casa e a fábrica.

Parade, último filme de Tati, datado de 1973, parece desmentir tudo isto, mas é só para melhor o confirmar. Sem estar a recorrer às condições externas de produção, que fazem deste filme um caso especial na sua carreira, nem é preciso lupa para se ver que há uma clara alteração de estilo: por uma vez os rostos — e os dramas humanos de que são espelho — dominam os insistentes grandes-planos (também pela primeira vez) do filme.

É um filme de circo e de «clowns». O palhaço, na sua forma convencional, vem contrariar a lógica do cómico anterior de Tati. E a personagem de Monsieur Loyal substitui Monsieur Hulot, o tradicional herói. Paralelamente ao regresso a formas mais convencionais de construção dos «gags» — Parade é um espectáculo com números cómicos desenvolvidos frente a uma plateia — Tati teve oportunidade de experimentar novas formas cinematográficas, com a utilização do vídeo. Conclusão lógica a extrair: a mudança de tecnologia mudou também a relação de Tati com mundo. A obra do cineasta dificilmente poderia ter conclusão mais adequada.

Pintei-a eu!

O perdão segundo Vermeer, ou seja, Henricus van Meegeren

O Marechal do Reich Hermann Goering gostava de ter Cristo na mão. E pergunto em sobressalto: o nazi beijaria com o insurrecto amor de Judas a face desse Cristo ou adormeceria como os sonolentos apóstolos depois de se deitar a seus pés?

Vejam, Cristo não estava sozinho. Acompanhava-o a mulher adúltera. Pintara-os, à mulher de muita paixão e a esse Cristo absolvente e redentor, o talvez católico Vermeer, pintor holandês do século XVII. E pede-me Vermeer que vos apresente um seu compatriota do século XX, Henricus van Meegeren.

Han, como toda a gente lhe chamava, enfrenta o tribunal dos Países Baixos no pós-guerra. Está o nazi Goering em Nuremberga a ser julgado por crimes contra a humanidade, e Han é preso, acusado de conluio com o odioso inimigo e de ter vendido a Goering o tesouro nacional, que seria esse “Cristo e a Adúltera”, do genial Vermeer. E se o anafado marechal alemão é sentenciado com a pena de morte, também Han, por traição à pátria, pode sofrer igual pena.

Han teve educação católica e viveu até em Delft como Vermeer. Contra vontade do pai, que o obrigava a escrever cem vezes frases exaltantes como “sou um inútil e nunca serei nada na vida”, Han queria pintar.

Têm Costa e Marcelo talento para política? Eu juraria que Han o tinha em igual medida e já o vemos começar a carreira de pintor, que a crítica do tempo, toda impressionista e cubista, parecida com a sonsa crítica literária portuguesa destes dias, logo obliterou. Ou, nas mais cruas palavras do próprio, cortaram-lhe as pernas. As pernas, porque as mãos conservou-as Han, ágeis, minuciosas.

No tribunal, Han entra como um velhaco colaboracionista. Dão-lhe a palavra. Ergue o perfil charmoso e fala. E vejam, o acusado que fala, quase sempre sussurra, meigo, e regressa ao passado. Han volta lá atrás, à ferida cruciante com que a crítica de arte modernista o retalhou. Evoca esse dia de trovões e relâmpagos em que jurou vingar-se: “Hei de fazer uma coisa como nunca se viu, que pasme o mundo!”

Com a humildade de quem sabe que vai, com a ignomínia, arrebatar a glória, diz ao tribunal: “Esta tela, “Cristo e a Adúltera” não a pintou Vermeer, pintei-a eu!” Levante a mão quem não sentiu o arrepio e o estremeção daquela sala! Mesmo que fosse por um momento, Jerónimo de Sousa teria deixado de pensar nos interesses e concupiscência do grande capital e André Ventura esqueceria os ciganos.

“Eu aldrabei o nazi Goering”, vai dizendo Han, as suas roupas começando a colorir-se com as tintas do heroísmo. E aldrabou. Aldrabou o monstro de Hitler e aldrabou o mundo inteiro. Forjou obras de Frans Hals, Pieter de Hooch, mas sobretudo de Vermeer: rivalizou com os génios de ouro da pintura holandesa.

Han confessa: a sua obra-prima é “A ceia em Emaús”, com que pôs Vermeer a rimar com Caravaggio. Pintou a tela e envelheceu-a com a resina fenólica que é a base da baquelite. Passou a tela, agora endurecida, por um cilindro, provocando-lhe gretas que a lavagem do quadro em negríssima tinta-da-china encheu. Por portas travessas essa tela chegou aos museus e ao olho de águia e faro de pastor alemão do maior especialista holandês de Vermeer. Em genuflexão, disse: “É a obra-prima do pintor de Delft.”

E o tribunal descobre que uma, duas, três, 50 telas dos maiores pintores holandeses são de Han. Vendeu-as, não todas, pelo que hoje seriam quase 30 milhões de euros.

O nazi Goering, consta, soube que fora alvo do vexatório e descarado ludíbrio. Entretenho-me com a ideia de que, também por isso, mais depressa se suicidou.

Publicado no Jornal de Negócios

A cabeça careca do avô

Esta é a minha primeira foto desde que sou avô. Foi ontem à noite e esta manhã, cabeça lisinha como a de um bebé, aqui estou a fazer a minha primeira vénia ao Carlos, símbolo anarca ao peito, desejando que ele seja livre like a bird, a pensar sempre pela própria cabeça e que goste do mundo, dos seres humanos que se hão de atravessar na vida dele, das coisas e de toda a bicharada, do céu e da terra, dos rios e das montanhas, de um bom vinho, algum champanhe e de umas humildes iscas com elas.

Que leia muito e os deuses o cumulem de felicidades. À minha Rita e ao meu Paulo beijo-os de parabéns.